Em passo leve e estugado percorro o empedrado em direcção à praça estrela, hoje muito descaracterizada. Passo-lhe ao lado rumo ao mar. Livro-me de um passeio bizarro que acaba abruptamente a um bom metro de altura, desemboco na rua do plurim de peixe, já fechado. Rapazes, cá fora, oferecem ainda pratos cheios de peixe: freguesa, seis é só cem escudos. Mulheres de cócoras,de saias entaladas entre as pernas, pesam a olho o conteúdo dos cestos e fazem o preço: é banana, é feijão, é peixe fresco que não pode ficar para amanhã. Pequenos tomates sopesados na palma da mão, écinquenta. Grupinhos aqui e ali sem pressas, tagarelando.
Não paro mas reduzo o passo, fujo de umas quantas pedras soltas da calçada que um vereador distraído há muito esqueceu. Passo pelo velho cais bem guardado pela águia, testemunha estática de tantos desembarques enjoados ainda na minha impúbere idade. Vou pela marginal e uma aragem oferece-me resistência, ajeito a camisola à volta das ancas, pois não está frio. Já regressam pessoas em traje de desporto da sua caminhada à beira-mar.
Chego à lajinha e descubro o banco de pedra à minha espera. Coloco as mãos na nuca, espreguiço-me interiormente. A brisa brinca com os meus cabelos, embora presos. Chega até mim o som de vozes de jovens na praia jogando à bola e atirando-se à água, num mar um tanto revolto.
Abstraio-me concentrada em mim e então sinto o toque quase físico, vivo, real, mas contraditoriamente etéreo, coisa sublime, vivida noutro plano, sinto o coração estalar em ondas de alvoroço e oiço joe dassin na sua canção eterna ...il y un an, il y un siècle, il y une eternité ...
fragmentos desencontrados trespassam-me, já não oiço o mar nem os miúdos, a brisa aquieta-se, sinto aquele arquétipo de antanho que se dilui ... deixando acesa a fogueira do mundo das emoções.
Que é isso de moçambicanidade, caboverdianidade, angolanidade, portugalidade ... ? Uma afirmação, uma vontade, uma necessidade, penso. Necessidade quase visceral, essa vontade de se afirmar a autodeterminação em relação ao outro. E no que diz respeito às ex-colónias creio que lhe estão subjacentes os conceitos/movimentos de negritude e pan-africanismo, que já aqui abordámos ainda que de forma breve. Mas acontece outro fenómeno, se é que se pode chamá-lo desse modo: ultrapassada a fase do colonialismo a premência coloca-se dentro dos próprios territórios independentes, uma espécie de tomada de consciência no quanto será possível chamar a si os parâmetros da sua cultura, da língua, história e nela a criação dos próprios mitos, numa busca da identidade nacional. Já antes, poetas como Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha e outros desbravavam o caminho que viria a desembocar na proclamação dessa Pátria que tanto desejavam.
E quando não se tem apenas uma língua, mas dez, trinta, quarenta ou mais? Como fazer para nos entendermos? Essa multitude de idiomas verifica-se na Guiné-Bissau, em Moçambique, em Angola (onde já se conhecem acções no sentido de se ensinar nas escolas seis de maior expressividade): línguas de origem bantu, grupo etnolinguístico que abarca o continente africano, principalmente desde o sul do Sahara e que engloba cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. E é assim que:
Moçambique acorda no pós-independência com um problema entre mãos. E agora? Como falar a todos de modo a fazer passar a mensagem, do Rovuma ao Incomati, território preconizado e querido desde há muito? Esse território cujo berço é preenchido por mais de quarenta línguas e outros tantos usos e costumes, ainda que aparentados, necessitava de algo em comum e que facilitasse a vida aos políticos. Assim, Samora Machel vê na língua portuguesa o elo que lhe faltava. Proclama-a língua do Estado, estatuíndo-a como língua de unidade nacional e, naturalmente, com a obrigatoriedade de ser utilizada em todos os actos públicos, em todas as instituições,
em todas as repartições, em todos os discursos,
em todos os contactos.
Era precisamente o idioma que veículava as ideias dos intelectuais, a única ensinada nas escolas, e que aos poucos iam mesclando de palavras e expressões das respectivas línguas maternas. Língua viva que no quotidiano é enriquecida de novos vocábulos e também falada por poucos, cerca de metade da população ou apenas pelas elites da terra. Um paradoxo e factor de exclusão - diz-nos Ricardo Mudaukane. Exclusão essa que afecta todos os domínios do país: a nível político e económico, poucos são os moçambicanos que têm acesso ao teor do discurso político e a oportunidades de emprego e até de negócio que, infelizmente, é quase que exclusivamente veiculado e processado através da língua oficial. A nível social, e como se sabe, nalguns círculos de interesse, o não domínio da língua oficial, principalmente no contexto mais urbanizado, pode levar a que certos grupos de pessoas se vejam marginalizados.*
No que diz respeito ao ensino básico, os meninos falam as suas línguas maternas até irem para a escola, deparando-se depois com uma língua completamente estranha, na maior parte das vezes, com o ónus de terem de fazer nela a sua estrada, condicionando a sua vida profissional, no futuro. Por isso, já se discute seriamente a forma de se alterar esse estado de coisas e até há quem fale em se "livrarem" do português, não no sentido literal mas de modo a incluí-lo num sistema mais alargado onde as línguas maternas** também tenham o seu lugar, de direito.
==== E como adoro a Língua Portuguesa e admiro imensamente a carta escrita por António Ferreira, Sec. XVI, ao seu amigo Pêro de Andrade Caminha, defendendo o seu uso em vez do castelhano, pelo que penso: à chacun son Everest, aqui deixo um excerto da mesma:
Floreça, fale, cante, ouça-se, e viva A Portuguesa língua, e já onde for Senhora vá de si soberba, e altiva. Se téqui esteve baixa, e sem louvor, Culpa é dos que a mal exercitaram: Esquecimento nosso, e desamor. Mas tu farás, que os que a mal julgaram, E inda as estranhas línguas mais desejam, Confessem cedo ant´ela quanto erraram. E os que despois de nós vierem, vejam Quanto se trabalhou por seu proveito, Porque eles para os outros assi sejam.
- Bantus - Línguas de Moçambique aqui *A língua portuguesa é factor de exclusão em Moçambique -
Ricardo MudaukaneMoçambique -
27 de Julho de 2014, 3:31aqui - Mia Couto - A língua portuguesa em Moçambique - Ciberdúvidas aqui Texto publicado na antologia galega "Do músculo da boca", Ed. Encontro Galego no Mundo, Santiago de Compostela, 2001. - Ensino bilingue em Moçambique aqui - Ângela Filipe Lopes - Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Centro de Linguística da Universidade do Porto (Portugal) Maria da Graça L. Castro Pinto - Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Centro de Linguística da Universidade do Porto (Portugal) -Em Moçambique, idioma Português se mistura com as línguas maternas - Folha de São Paulo - aqui ** Línguas nacionais são receita de sucesso nas escolas moçambicanas: aqui
E então a noite se fez dia em dádivas de alvoradas boreais. Um deus criador de bonanças me aspergia de doçuras que inundavam o meu âmago. E eu procurava-o no seu génio de artista, inventor de palavras que transformavam o meu mundo. Nasciam rios, afirmavam-se planícies. E eu, ingrata, alegremente inconsciente, aceitava como se tudo me fora devido. Agora, começa a despontar-se a íngreme montanha
Nesta minha fase africanista muito severa, não que não tenha já passado por outras de igual cariz e com muito gosto, pretendo continuar a falar de Moçambique e da sua História, isto é, na óptica de alguns dos seus escritores. O tema em presença é o iniciado num post anterior intitulado: Ngungunyane ou as Areias do Imperador I. Começo com esta pergunta colocada por Mia Couto, sobre a questão dos mitos e dos heróis: Que nação no mundo não mitificou pelo menos uma parte da sua História? As nações precisam destas grandes mentiras. E, aqui, é quase cruel: cada vez que se gera um herói em Moçambique, ele está muito próximo de quem o criou. Um herói não pode ter essa proximidade.*
Na verdade e tendo em conta as experiências por que temos passado, verificamos que a História é uma construção humana. Documentos panegíricos é que o mais abunda. Por exemplo, na História de Portugal, bastaria lembrarmo-nos das crónicas de Fernão Lopes entre outros cronistas. E um dado interessante que agora me ocorre é que o que sabemos sobre os Gauleses foi-nos transmitido por Júlio César, em De Bello Gallico, onde narra a forma como venceu Vercingétorix (o verdadeiro Astérix da BD). Um simples apontamento. Isto para dizer que é preciso haver distanciamento para que os factos históricos sejam analisados, comparados, e lhes seja dado o cunho científico que se pretende nesta disciplina, muito embora ciência humana. E assim, a criação de mitos. Tratando-se de ferramentas importantes para determinada visão do mundo pátrio, é um elo que se quer forte na construção da identidade nacional.
E é na procura dessa identidade que Moçambique tem envidado esforços no sentido de marcar a sua moçambicanidade, focando a diversidade da sua cultura que se espraia nas muitas línguas nacionais e na sua relação com a língua portuguesa, cabendo aos intelectuais a maior parte dessa tarefa, com a utilização de uma língua que não é a sua, mas o veículo necessário para a transmissão das suas ideias.
Continuando com o tema proposto no titulo, depois de Ualalapi/As Mulheres do Imperador, de Ungulani Ba Ka Khosa,Mia Couto brinda-nos com uma trilogia sobre Ngungunyane, Gungunhana para os portugueses, (o último dos imperadores que governou toda a metade sul de Moçambique), quanto à sua acção, o seu tempo e son entourage: As areias do Imperador.** Nela, o autor prefere seguir um caminho diverso, uma estrada epistolar a par da oralidade (forma de transmissão dos ancestrais) afastando-se um pouco do conceito de romance histórico tradicional para se situar no campo de uma recriação quase poética ou recreação ficcional e também tendo em conta o maravilhoso, sem descurar, obviamente, os dados históricos em si. Mia Couto considera-se um poeta, e a partir desse dado constrói a trama dos seus livros, assinalando que a sua história não será menos verdadeira que as histórias oficiais tanto de Portugal como de Moçambique, sobre o assunto. Realmente, em toda a História do Homem, para cada momento há histórias e realidades que se sobrepõem. Uma visão unívoca pecará por insuficiente, creio eu. No caso desta trilogia, a acção se passa entre dois territórios: o dos documentos escritos e o da oralidade, como referi acima. Dois personagens contam a história: Um deles é osargento Germano de Melo. Mia Coutocoloca-o num posto no meio do nada e pô-lo a contactar os seus superiores através de cartas, nas quais lhes dá conta das dificuldades, da falta de recursos e em especial da falta de homens. É logo na primeira carta que diz isto, ele que participara na revolta de 31 de Janeiro e estava em Moçambique na condição de deportado: ...os nossos domínios, que tão pomposamente chamamos de "Terras da Coroa", encontram-se votados ao desgoverno e à imoralidade. Na maior parte desses territórios nunca nos fizemos realmente presentes durante séculos. E nas terras onde marcámos presença foi ainda mais grave, pois quase sempre nos fizemos representar por degredados e criminosos. Não existe, entre os nossos oficiais, nenhuma crença de que sejamos capazes de derrotar Gungunhane e o seu Estado de Gaza.*** Falta de homens e de recursos. E mais ainda: falta de organização dificultando a boa gestão dos poucos meios. Eis um dado histórico perfeitamente comprovado em todas as ex-colónias, um império demasiado vasto para um tão pequeno país. Esta acção decorre no último quartel do Século XIX, relativamente pouco tempo após a Conferência de Berlim de 1884/85 que retalha África e obriga os intervenientes a uma ocupação efectiva dos territórios. Então, um Ah! de espanto se evola dos nossos lábios perante as campanhas de pacificação e quejandos! Imani, menina de quinze anos, é o personagem que contará o outro lado da história, ela que pertence à tribo dos VaChopi uma das poucas que ousou opor-se à invasão de Ngungunyane. Tornar-se-à intérprete de Germano de Melo e apesar das diferenças entre os seus mundos há um envolvimento entre os dois que aumenta com o tempo, como se verá. A última carta do sargento, no primeiro volume, datada de 26 de Agosto de 1895, é escrita por Imani, que entretanto aprendeu a ler, porque segundo o próprio ficou sem mãos: ambas voaram como asas de anjo, rasgadas por uma bala desfechada à queima roupa. Assim também as cartas que se seguirão.
Termino esta exposição que já vai longa, transcrevendo ainda um pequeno texto que inicia o livro Um: A estrada é uma espada. A sua lâmina rasga o corpo da terra. Não tarda que a nossa nação seja um emaranhado de cicatrizes, um mapa feito de tantos golpes que nos orgulharemos mais das feridas que o intacto corpo que ainda conseguirmos salvar. =====
O post que se seguirá está relacionado com: as línguas nacionais e a língua portuguesa - o último por agora :)
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*Entrevista a Mia Couto em Ler - Inverno 2017/2018
**As areias do Imperador: Mulheres de Cinza-I, 2015 ; A Espada e a Azagaia-II, 2016; O Bebedor de Horizontes-III, 2017
Por vezes esvazio-me de tudo: Dos sucessos e insucessos, das alegrias e tristezas, das ilusões e desilusões, das frustrações, das decepções. Então enovelo-me em mim, embrulho-me na teoria da tábua rasa e espero. Pouco a pouco reconstruo-me a partir do vácuo. Chamo a mim os meus átomos que, cuidadosamente, se encaixam no meu ser - matéria e espírito. Livre de todo o peso, subo facilmente ao monte mais alto e grito a plenos pulmões. A minha voz ecoa nos lugares mais recônditos. E danço e danço e danço. Rodopio até ver as estrelas a sorrir. Tonta, deixo-me levar e rolo ribanceira abaixo. O cheiro a terra molhada e a musgo envolvem-me e sinto que somos um só. Dedilho a música mais linda e oiço o som do silêncio da eternidade.
Num mundo encantado feito de belas sinfonias, cresciam flores de todas as cores. Todos os perfumes, fragrâncias nunca sentidas envolviam o ar em revoadas de azul e ouro. Miríades de miríades de estrelas cintilavam para além do imaginável. E a estrada de Santiago, dos caminhos da sua infância, indicava-lhe que a chuva ansiada e prometida não tardaria, fecundando a terra sedenta donde nasceriam belos frutos. Na regência desse mundo idílico existia um ser dotado de qualidades raras. Tocava alaúde, cantava belas trovas de que lhe fazia preito em meio a juras de grande estima. O seu jogral. Nesse embalo tudo lhe parecia, a ela, simples, bonito, possível... Em sonhos, estende a mão para alcançar o seu belo rosto. Este vai se distanciando mais e mais, incomensuravelmente, tornando-se difuso até se transformar numa mancha.
Vieram muitos à procura de pasto traziam olhos rasos da poeira e da sede e o gado perdido.
Vieram muitos à promessa de pasto de capim gordo das tranqüilas águas do lago. Vieram de mãos vazias mas olhos de sede e sandálias gastas da procura de pasto.
Ficaram pouco tempo mas todo o pasto se gastou na sede enquanto a massambala crescia a olhos nus.
Partiram com olhos rasos de pasto limpos de poeira levaram o gado gordo e as raparigas.
de Ana Paula Tavares, que conta uma história de sobrevivência. Beijo
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E outras vozes se alevantam - Ana Paula Tavares responde a Luís Vaz de Camões - Margarida Calafate Ribeiro - Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbraaqui
Foi um dos principais elementos do movimento Claridade. Poeta, romancista, contista, ensaísta, conferencista. Duas vezes laureado com o Prémio Fernão Mendes Pinto e ainda o do Meio Milénio do Achamento das Ilhas de Cabo Verde, ambos para ficção.(...)In: no Reino do Caliban, pg. 101
O realismo na sua escrita poética
O realismo apresenta em Cabo Verde particularidades próprias. Se em Portugal e noutros países foi um movimento literário e ideológico-político empenhado em soluções transformadoras da sociedade pela via da função social da arte, pela desmistificação da consciência e pela oposição ao capitalista e ao burguês, em Cabo Verde, por razões naturais, geográficas e sociais contextualiza-se assumindo outras preocupações. Manuel Lopes, com o tempo, sem esquecer o plano subjectivo, envereda por uma escrita poética com implicações objectivistas tematizando os problemas crioulos mais prementes: seca, isolamento, fome, emigração. A objectividade e a subjectividade são, por isso, duas características do realismo cabo-verdiano. Os paradigmas, São Vicente-Mar (urbanidade) e Santo Antão-terra (ruralidade) e ainda a dinâmica de oposição entre o partir/ficar enformam decisivamente a sua poesia. (...)
aqui e aqui - fich pdf (Autoria: José Manuel Leite Teixeira - Universidade de Lisboa) ===
Meus amigos: Desejo-vos um bom fim-de-semana. Abraços.
-Manuel Lopes (Manuel dos Santos Lopes, Ilha de Santo Antão, Cabo Verde) in No Reino de Caliban - de Manuel Ferreira pg 101 Optaria por este último, tendo em conta que Manuel Ferreira elaborou a "Antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa", - publicada em 1975.
Uma angústia profunda tomava conta de mim, Nhô Chic'Ana morreu de fome. Senti vontade de gritar, para que todos ouvissem. Nhô Chic'Ana morreu de fome. À direita, à esquerda, a vista era a mesma. As mesmas hortas, nuas no seu chão de barro e comidas pelos gafanhotos. (...)
Aproximei-me da cama. Nhanha Bonga recebeu-me com grande admiração de choro. Ah Chiquinho! Tinha morrido o meu grande amigo. Que iria Chiquinho fazer doravante na casinha do Campo? Nhô Chic'Ana não botaria mais aqueles exemplos que tanto me entretinham.
Nhô Chic'Ana estava todo mirrado, seu corpo magro a perfurar de ossos a manta que o cobria. O meu velho amigo morreu de fome. Encostei-me à cama, a cabeça tomada nas mãos angustiadas. Os meus dias de infância povoados da presença de nhô Chic'Ana. Ainda o vi, de corpo mais válido, na labuta da lavoura. Nas tardes, eu vinha à casinha do Campo. Nhô Chic'Ana fazia-me hominhos de barro, que ele baptizava com nomes da história de Carlos Magno. Outras vezes, talhava-me navios de purgueira. E o meu regalo era correr os navios no tanque de Jejê com os companheiros. Nhô Chic'Ana contava-me casos da sua vida de marinheiro, as terras que ele tinha conhecido. As suas palavras eram lentas, sentenciosas, pedia ao velho que me contasse histórias:
- Nhô Chc'Ana, você conte um caso...
- Não tem tempo...
- Conte, nhô Chic'Ana!
- Nhor não, contar histórias de dia faz pelar a capela dos olhos...
Mas eu conhecia-lhe o fraco. Tirava da algibeira um bocado de erva para fumar, e logo nhô Chic'Ana estendia a mão.
E começava. Antigamente tinha uma casa no fundo do mar (...)
Sérgio Godinho e Tito Paris
As chuvas de Cabo Verde
Meus amigos.
Sei que este post deveria ser dedicado à continuação do tema sobre Gungunhana e poderia fazê-lo, mas tive agora um apelo a que não pude resistir. Há muito tempo que queria reler Chiquinho, de Baltasar Lopes (da Silva). Surgiu-me, por estes dias, uma quase obrigação de o voltar a ler, a Teresa Baltasar que me perdoe a expressão porquanto ler e estudar esse Grande Senhor das letras cabo-verdianas é um privilégio para mim. Baltasar, um dos Claridosos, também poeta, já nos visitou aqui no "Xaile", com o poema Ressaca: Venham todas as vozes, todos os gritos e todos os ruídos; Venham os silêncios compadecidos e também os silêncios satisfeitos; Venham todas as coisas que eu não consigo ver na superfície da sociedade dos homens; Venham todas as areias, lodos e todos os fragmentos de rocha que a sonda recolhe nos oceanos navegáveis; Venham os sermões daqueles que não têm medo do destino das suas palavras;Venha a resposta captada por aqueles que dispõem de aparelhos apropriados;(...)
O certo é que cheguei ao capítulo 15, quase no fim do livro, e deparo-me com aquela parte lancinante das grandes fomes que devastaram Cabo Verde nas décadas de 40 e 50*. Desfilou perante os meus olhos a procissão de um povo paciente, confiante no poder de Deus porque o dos homens não lhes valia. Encontrei referências à pequena caminhada de protesto de alguns populares à Administração do Concelho, com dois garotos levando ao alto blusas pretas espetadas em paus, rebeldia essa que morreu logo ali. Penso que esse episódio viria mais tarde a inspirar o saudoso Gabriel Mariano no seu poema interventivo, "Capitão Ambrósio", do qual transcrevo uma pequena passagem:
1 Bandeira Negra bandeira Bandeira negra da fome. Em mãos famintas erguidas Guiando os passos guiando Nos olhos livres voando Voando livre e luzindo Inquieta e livre luzindo Luzindo a negra bandeira Clara bandeira da fome. Mãos erguidas duras erguidas pés marcando a revolta o povo marcha na rua. (...)
As secas, o período das as-águas rareandoou não assegurando as colheitas, a miséria crescente, o descaso da Administração Central que viria a optar pela solução das grandes LEVAS de cabo-verdianos para São Tomé e Principe, sob a expressão eufemística de Contrato, marca a Literatura Cabo-Verdiana de forma indelével. As levas para essa ex-colónia ter-se-iam iniciado já em 1903.
Desejo-vos uma boa semana.
==== Chiquinho - Baltasar Lopes da Silva Excerto - pags - 256 a 258 Excerto "Capitão Ambrósio" - Gabriel Mariano in No Reino de Caliban de Manuel Ferreira P.176 a 179 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ARBÍTRIO NAS ROÇAS
as primeiras levas de caboverdianos em S. Tomé
e Príncipe nos primórdios de novecentos
por
Augusto Nascimento* aqui
*E em anos precedentes. A acção do romance decorre nos anos trinta.
No pós-independência houve tendência para transformá-lo num herói nacional. Mas o povo não o terá reconhecido como tal. Estava fresca na memória dos descendentes daqueles que sofreram os castigos e as invasões, a sanha hegemónica que comandava os actos do Imperador de Gaza, no Sul de Moçambique.
Vários foram os povos que sucumbiram sob o jugo da sua ambição desmedida. Diz-se que Mouzinho de Albuquerque lhe deu a mão numa altura em que, talvez, já não estivesse na sua pujança plena. Nos bancos da escola aprendemos que ele foi vencido e trazido para os Açores onde morreu. Os seus restos mortais foram trasladados para Moçambique mas também se desconfia que o esquife imperial apenas contivesse torrões de areia.
Ungulani Ba Ka Kosa, nome tsonga de Francisco Esaú Cossa, com a competência que a sua formação académica, como historiador, lhe confere e com a sua sensibilidade para assunto dessa importância, como romancista, traça em Ualalapi, 1987, a figura desse homem violento e cruel, um tirano para o seu povo bem como para os povos submetidos. Completa a sua narrativa, num só volume, com As Mulheres do Imperador, na qual conta a vida das mulheres que o acompanharam no exílio, secundarizadas e condenadas ao isolamento. Deixo aqui os nomes das sete mulheres deNgungunyane para que constem da nossa memória, aqui, e nos solidarizemos com elas, em espírito – Phatina, Malhalha, Namatuco, Lhésipe, Fussi, Muzamussi e Dabondi. O imperador foi mantido nos Açores até à sua morte, em 1906. As mulheres foram forçadas a deixar os Açores e enviadas para novo exílio, São Tomé, onde viveram até 1911, altura em que, apenas quatro, conseguiram voltar para Moçambique, após quinze anos.
Mas, o que era Moçambique? Para essas mulheres apenas existia o Império de Gaza, para o bem e para o mal. Nada no seu imaginário lhes falava dessa pátria que viria a povoar os sonhos e os anelos de José Craveirinha. Com efeito, de forma abrangente e concreta, ele estendia a sua preocupação sobre o território que ia do Rovuma ao Incomati:
A comunidade de território aparece em Craveirinha como o elemento fundamental de identificação nacional (...): Machava e Ilha de Moçambique, Gaza e Zambézia, Manhiça e Mussoril, Guijá e Mocímboa do Rovuma, Norte, Centro e Sul reaparecem frequentemente a delimitar poeticamente a unidade entre povos que o colonialismo procurava dividir, e a fazer surgir como um todo coeso a imagem de um país de homens escravos:
“Arroz de Gaza apodreceu nos armazéns
na Zambézia a seca rebentou barrigas negras na Manhiça milho sobrou nos celeiros e nem um milho para cem bocas no Mussoril. No Guijá deu muita mexoeira mas nem um grão de mexoeira nem ao menos um grão em Mocímboa do Rovuma Ai a passividade animal!”