segunda-feira, 24 de junho de 2019

Ngungunyane ou as Areias do Imperador - II

Nesta minha fase africanista muito severa, não que não tenha já passado por outras de igual cariz e com muito gosto, pretendo continuar a falar de Moçambique e da sua História, isto é, na óptica de alguns dos seus escritores. O tema em presença é o iniciado num post anterior intitulado: Ngungunyane ou as Areias do Imperador I.

Começo com esta pergunta colocada por Mia Couto, sobre a questão dos mitos e dos heróis:

Que nação no mundo não mitificou pelo menos uma parte da sua História? As nações precisam destas grandes mentiras. E, aqui, é quase cruel: cada vez que se gera um herói em Moçambique, ele está muito próximo de quem o criou. Um herói não pode ter essa proximidade.*

Na verdade e tendo em conta as experiências por que temos passado, verificamos que a História é uma construção humana. Documentos panegíricos é que o mais abunda. Por exemplo, na História de Portugal, bastaria lembrarmo-nos das crónicas de Fernão Lopes entre outros cronistas. E um dado interessante que agora me ocorre é que o que sabemos sobre os Gauleses foi-nos transmitido por Júlio César, em De Bello Gallico, onde narra a forma como venceu Vercingétorix (o verdadeiro Astérix da BD). Um simples apontamento.

Isto para dizer que é preciso haver distanciamento para que os factos históricos sejam analisados, comparados, e lhes seja dado o cunho científico que se pretende nesta disciplina, muito embora ciência humana. E assim, a criação de mitos. Tratando-se de ferramentas importantes para determinada visão do mundo pátrio, é um elo que se quer forte na construção da identidade nacional.


E é na procura dessa identidade que Moçambique tem envidado esforços no sentido de marcar a sua moçambicanidade, focando a diversidade da sua cultura que se espraia nas muitas línguas nacionais e na sua relação com a língua portuguesa, cabendo aos intelectuais a maior parte dessa tarefa, com a utilização de uma língua que não é a sua, mas o veículo necessário para a transmissão das suas ideias.

Continuando com o tema proposto no titulo, depois de Ualalapi/As Mulheres do Imperador, de Ungulani Ba Ka Khosa, Mia Couto brinda-nos com uma trilogia sobre Ngungunyane, Gungunhana para os portugueses, (o último dos imperadores que governou toda a metade sul de Moçambique),  quanto à sua acção, o seu tempo e son entourage: As areias do Imperador.** 

Nela, o autor prefere seguir um caminho diverso, uma estrada epistolar a par da oralidade (forma de transmissão dos ancestrais) afastando-se um pouco do conceito de romance histórico tradicional para se situar no campo de uma recriação quase poética ou recreação ficcional e também tendo em conta o maravilhoso, sem descurar, obviamente, os dados históricos em si. 

Mia Couto considera-se um poeta, e a partir desse dado constrói a trama dos seus livros, assinalando que a sua história não será menos verdadeira que as histórias oficiais tanto de Portugal como de Moçambique, sobre o assunto. Realmente, em toda a História do Homem, para cada momento há histórias e realidades que se sobrepõem. Uma visão unívoca pecará por insuficiente, creio eu.

No caso desta trilogia, a acção se passa entre dois territórios: o dos documentos escritos e o da oralidade, como referi acima. Dois personagens contam a história: Um deles é o sargento Germano de Melo. Mia Couto coloca-o num posto no meio do nada e pô-lo a contactar os seus superiores através de cartas, nas quais lhes dá conta das dificuldades, da falta de recursos e em especial da falta de homens. É logo na primeira carta que diz isto, ele que participara na revolta de 31 de Janeiro e estava em Moçambique na condição de deportado:

...os nossos domínios, que tão pomposamente chamamos de "Terras da Coroa", encontram-se votados ao desgoverno e à imoralidade. Na maior parte desses territórios nunca nos fizemos realmente presentes durante séculos. E nas terras onde marcámos presença foi ainda mais grave, pois quase sempre nos fizemos representar por degredados e criminosos. Não existe, entre os nossos oficiais, nenhuma crença de que sejamos capazes de derrotar Gungunhane e o seu Estado de Gaza.***

Falta de homens e de recursos. E mais ainda: falta de organização dificultando a boa gestão dos poucos meios. Eis um dado histórico perfeitamente comprovado em todas as ex-colónias, um império demasiado vasto para um tão pequeno país. Esta acção decorre no último quartel do Século XIX, relativamente pouco tempo após a Conferência de Berlim de 1884/85 que retalha África e obriga os intervenientes a uma ocupação efectiva dos territórios. Então, um Ah! de espanto se evola dos nossos lábios perante as campanhas de pacificação e quejandos!

Imani, menina de quinze anos, é o personagem que contará o outro lado da história, ela que pertence à tribo dos VaChopi uma das poucas que ousou opor-se à invasão de Ngungunyane. Tornar-se-à intérprete de Germano de Melo e apesar das diferenças entre os seus mundos há um envolvimento entre os dois que aumenta com o tempo, como se verá. A última carta do sargento, no primeiro volume, datada de 26 de Agosto de 1895, é escrita por Imani, que entretanto aprendeu a ler, porque segundo o próprio ficou sem mãos: ambas voaram como asas de anjo, rasgadas por uma bala desfechada à queima roupa. Assim também as cartas que se seguirão.

Termino esta exposição que já vai longa, transcrevendo ainda um pequeno texto que inicia o livro Um:

A estrada é uma espada. A sua lâmina rasga o corpo da terra. Não tarda que a nossa nação seja um emaranhado de cicatrizes, um mapa feito de tantos golpes que nos orgulharemos mais das feridas que o intacto corpo que ainda conseguirmos salvar.


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O post que se seguirá está relacionado com: as línguas nacionais e a língua portuguesa - o último por agora :)

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*Entrevista a Mia Couto em Ler - Inverno 2017/2018
**As areias do Imperador: Mulheres de Cinza-I, 2015 ; A Espada e a Azagaia-II, 2016; O  Bebedor de Horizontes-III, 2017
** *Mulheres de Cinza - pg 41

As areias do imperador - um resumo

A Obra é baseada em extensa documentação produzida em Portugal e Moçambique e entrevistas efectuadas em Maputo e Inhambane.

7 comentários:

  1. Estou a ler Mia Couto, Pensageiro Frequente...
    Desconfiava deste livro de crónicas, porém enganei-me, viver África com inteligência e humor é delicioso.
    Para divulgar a moçambicanidade, não conheço melhor que ele.
    Nunca ouvi falar nas Areias do Imperador, não consta na lista de obras de MCouto e não percebi se é novo. Mas gostei e agradeço a divulgação, até porque o assunto desperta-me interesse e curiosidade - adoro África.
    Agradeço a leitura e o conhecimento.
    Um verão muito aprazível, Amiga.
    Abraço grande.
    ~~~

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  2. Do Mia Couto li muito pouco apesar de ser um autor de que gosto muito.
    Li, Mar me quer, Antes de nascer o mundo, Raíz de Orvalho, e A espada e a Azagaia.
    Essa trilogia parece muito interessante, mas não sei se conseguirei lê-la. Tenho ainda tanta coisa para ler em casa.
    Abraço e boa semana

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  3. Nestas escassas incursões, é que tenho a real noção do que perco na minha ausência deste teu excelente espaço.
    Revisitei as minhas aulas de História de uma professora que adorava, precisamente pelo lado mais "romanesco" dos factos históricos. Talvez o meu gosto pela disciplina tenha nascido com ela.
    Não sendo a minha área, concordo em absoluto contigo e, claro, com a visão de Mia Couto, este homem-escritor-poeta-inventor linguísticos.
    E como tudo faz sentido, na tua publicação.
    Como me acompanhas, sabes que não sei quando aqui voltarei. Como sabes, igualmente, que aprecio imenso as tuas excelentes partilhas.
    Grata por te juntares aos meus espantos, sempre que os partilho, da forma completa como o fazes.
    Tudo de bom, Olinda. Bjinhos

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  4. Uma publicação interessante:))

    Voltei... Quando o sol surge pela aurora.

    Bjos
    Votos de uma óptima Terça - Feira

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  5. Mia Couto é alguém que aprecio como escritor e admiro como pessoa.


    Beijinhos

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  6. um texto fabuloso, carregado de erudição e conhecimento, sem contudo perder clareza e simplicidade.

    sou sensível a essa "aproximação" do mito e história (e mito/literatura). em verdade, como bem acentua, as grandes narrativas históricas são "discursos" mitológicos.

    muito interessante (des)construção do mito, na descrição da personagem/personalidade do sargento Germano de Melo

    gostei muito, amiga Olinda
    abraço

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  7. No comentário ao post anterior, esqueci-me de agradecer a sua presença lá pelo meu blog e as suas simpáticas palavras. Foi da hora serôdia a que acordei. Pelo facto peço desculpa.
    O seu post de hoje é uma pérola. Gosto muito de Mia Couto e da sua escrita, no entanto, apesar das suas apetitosas palavras, acho que desta vez não vou ler este livro, porque tenho outros em lista de espera - nomeadamente os autores sobre os quais já discorreu aqui em posts anteriores - e porque não tenho lá muita inclinação para gostar de romances históricos - apreciei "A voz dos deuses" (romance histórico?), do João Aguiar, mas já não tanto "A casa do pó", do Fernando Campos. Mas isto também é pouco para ajuizar do romance histórico!
    Gosto de Astérix e gostei de saber que Júlio César falava da Gália - o que veio confirmar as minhas suspeitas!

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