segunda-feira, 30 de março de 2015

A corrida em círculos


Uma viagem perene na busca da nossa essência. Uma caminhada que começa onde acaba e acaba onde começa, connosco a empurrar a rocha das nossas imperfeições, incessantemente, montanha acima qual Sísifo. Ciclos que se renovam nem sempre pelos melhores motivos. Insanidades. Desvios de personalidade. A descrença e o espanto instalam-se no mais recôndito do nosso ser. E o caminho que falta percorrer é estreito, íngreme e longo.

Hoje trago-vos Ana Hatherly, professora, escritora e artista plástica portuguesa, em A corrida em círculos, e um seu desenho constante de uma mostra realizada no âmbito do projecto Acervo de Desenho da Casa da Cerca, em 2012


I


O círculo é a forma eleita:
É ovo, é zero,
É ciclo, é ciência.
E toda a sapiência.

É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.

II


A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.

A senda mais perigosa
Em nós se consumando,
Passamos a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.

Ana Hatherly

"Passamos a existência mil círculos concêntricos desenhando".Será que o desenho e o poema se completam?

Desejo-vos uma óptima semana, meus amigos.
Os meus agradecimentos pela vossa presença e pelos vossos comentários. 

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Poema em:As aparências, 1959 - daqui
Imagem:Desenho de Ana Hatherley 

domingo, 22 de março de 2015

A coroa do tempo




Respiro a maresia das palavras exactas,
prolongo as vogais, os ditongos,
visito as planícies da vida,
pernoito nos jardins da morte.
Comprimo, no peito, o passado/o futuro,
Escrevo no espaço em branco.
As horas dizem-me a coroa do tempo,
um diafragma aberto,
os olhos ardendo na trama da boca,
escrevendo o ouro, a carne,
a sombra esguia,
a aura da desordem suspensa
dos precipícios,
fabricando as vogais, as sílabas,
as palavras, planetas idênticos,
constelações de névoa,
recônditas sombras,

relógios astrais.


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Imagem:Praga.O espetáculo do Relógio Astronômico realizado de hora em hora entre 9h e 21h.Nas horas redondas, estátuas dos 12 apóstolos “desfilam” sobre o relógio enquanto outras quatro estátuas simbolizando a vaidade, a avareza, a morte e a invasão pagã (maiores preocupações da população no século 19) também balançam suas cabeças.daqui

quinta-feira, 19 de março de 2015

O poder das palavras e dos sons e dos sabores

Há poesia no ar por estes dias. Há poemas de todas as cores e sabores. Ah, se eu pudesse trincar a terra toda*, dar-lhe pinceladas de azul de amarelo de verde por cima da sua paleta e saboreá-la em toda a sua dimensão, do alvorecer ao negrume na noite. Tudo canta, tudo baila. Basta apurarmos os ouvidos e deixar que os sentidos se envolvam nesta sinfonia de amor e êxtase. Porque tudo no universo trabalha para isso, porque fazemos parte dele, é hora de escutar os ruídos que procuramos ignorar.

Escutemos estes sons que as palavras de Ana Pinto nos trazem. Bebamo-los de um só trago ou devagar da taça das palavras.

A taça, as palavras

Quero palavras como fruta viva ou pão cozido ao sol 
palavras verdes e roxas, com seiva a correr e bagas cheias,
palavras fermentadas entre a terra e a boca
ou palavras cereais
brotando no trigo das antemanhãs

Quero palavras que se possam plantar em campos extensos,
que estejam nuas e que mantenham intacto o orvalho

Ou palavras temperadas de oiro, entre o metal e a faísca
com o âmago do fogo puro
e a luz toda no seu centro

Afasto a taça das palavras ocas, apodrecidas
sob as trevas dos punhais

Ou então, deixemos o nosso lado místico fazer de nós seres completos e perfeitos. Ouçamos o cantochão numa catedral, imponente, erguendo-se aos céus, o nosso duomo, a nossa casa. Assim os sons dos clássicos, sinfonias, seja a quinta, a nona ou outra, ou sons que vêm desde tempos imemoriais, os dos tambores até aos nossos dias: sejam os ritmos, triste e belo de um fado, dolente de uma morna, remexido de um funaná, ou as rimas faladas e interventivas de um rap.

Tudo isto vejo eu na Catedral da noite desta autora, também artista plástica, que pinta com os olhos do pensamento:

A catedral da noite é como um berço
onde habitam harpas, acordes que procuram
a forma indivisível da casa
em colunas erguidas à última corda dos céus.

Dizem que no meio estão os anjos todos brancos
e que aí a música dos ares abre
crateras amplas de fogo e de cristal. 
E que nas entranhas da noite se move
o espírito do poema. Por isso
nas mãos, nos dedos, 
cresce-me a cadência, o uso
de revolver a palavra no negrume
até descer ao silêncio
e ouvir o som.

Sejamos receptáculos do que é belo e precioso na obra humana e acima de tudo das maravilhas com que a natureza nos brinda todos os dias.

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Pinturas e poemas de Ana Pinto
A 2ª imagem referenciada como "Fragmentos-Colagens"
*Referência minha ao "Guardador de Rebanhos" de Alberto Caeiro.

domingo, 15 de março de 2015

Mar ê morada di sodade

Não propriamente desaparecida em combate mas com os sentimentos e emoções repartidos entre dois continentes, aqui me têm a escrever-vos esta carta como no tempo em que o mar era o veículo privilegiado para as idas e vindas e que tanto servia para separar como para unir. 

Por mais que a comunicação seja (e é) hoje facilitada, a evocação do mar surge-nos de imediato quando a imagem de terra longe nos bate à porta. O mar que beija as águas do Tejo e que no passado tanto trazia especiarias e escravos como levava marinheiros andarilhos para os quatro cantos do mundo. 

Pois, não vos trago a Cesária Évora como o título desta publicação poderia sugerir, mas Alexandre O'Neill na sua Gaivota, para uma releitura. 
E porquê?



Foto - UJM*

GAIVOTA

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.
Poema de:

Porque alguém de nome Raquel veio ao XailedeSeda, há dias, colocar-me as seguintes questões ( ver AQUI):

Será que me podia dizer qual o tema do poema? O amor por Lisboa ou o seu primeiro amor?

Achei estas questões interessantíssimas. Elas fizeram-me olhar com novos olhos para este belíssimo poema, tão diferente de outros que ele escreveu.

Eis o que eu disse, para já, à Raquel:

Interessantes as suas questões, Raquel. Trouxeram-me a preciosa oportunidade de reler este lindo poema de O'neill. Quanto ao tema que poderei dizer-lhe? Como saberá, A.O'neill é um poeta de intervenção e, por via disso, sofreu algumas represálias. Na sua obra, lança um olhar surrealista ao real, usando o humor como arma, e disso procurou fazer escola. 
Neste poema, porém, ele aparece-nos com uma poesia emocional. O autor fala de Lisboa mas também de certas características relacionadas com o modo de ser português. Fala do amor primeiro e também de uma certa desesperança, quando ele nos induz a ideia da morte, no final.
Fiz hoje um post convidando os meus leitores a darem-me a sua opinião. Portanto, voltarei.


Então, meus amigos, qual é a vossa opinião?


Desejo a todos um excelente domingo.

:)

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*Quem melhor do que UJM para fotografar e falar de Lisboa? 
E eu ali a fotografar, tão feliz por poder desfrutar toda esta beleza. Lisboa quase difusa, envolta em neblina, os veleiros difusos na paisagem, e a gaivota voando e gritando sobre as águas (...) clicar

Na minha pesquisa de imagens vi esta foto e soube logo de quem era. UJM, espero que não se importe... 

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NOTA: FIZ, NESTA DATA, UMA ADENDA AO POST "TRAPOS V".


segunda-feira, 2 de março de 2015

Trapos (v)

Mas o homem não se calou. Continuou a reclamar baixinho contra a velhice, contra o governo, contra o estado da saúde e contra os ricos de sorte que entravam primeiro que os que nunca tinham tido sorte na vida.

A esposa olhou o relógio redondo de alumínio, dependurado a meio do corredor, por sobre uma das portas. Marcava onze menos dez. Não fosse a doença e estaria em casa, ocupada a cozinhar para o marido. Mas há vários dias que se não sentia bem. Se lhe perguntassem, nem saberia dizer aquilo de que se queixava, mas sentia-se doente, cansada, muito cansada, como se o seu corpo franzino fosse apenas pele, e por dentro não houvesse mais nada, nem ossos, nem órgãos, nem nervos, nem veias. As palavras do marido entravam-lhe nos ouvidos como se viessem de muito longe, como se a boca que as pronunciava não existisse, como se o corredor fosse apenas um túnel por onde perpassavam palavras sem sentido e imagens sem contorno.

Assustada, a mulher levantou-se. Estranhamente, todas aquelas sensações foram desaparecendo. Não sentia as pernas, nem os braços, nem dores, nem o cheiro intenso a medicamentos que pairava no corredor.

— Estou melhor — disse ao marido. — Podemos ir-nos embora que estou melhor e já não preciso de médico.
— Já que aqui estamos...


Não completou a frase. A mulher caiu e foi levada às pressas pela porta escancarada de um gabinete. Não o deixaram entrar. Quedou-se sentado, por mais de meia hora, até que a enfermeira voltou a abrir a porta e chamou:

— Está aí algum familiar da senhora Carolina da Silva?


Nessa noite, ao homem, a casa pareceu-lhe demasiado grande, tal como o infinito silêncio que havia dentro dela.


"TRAPOS" - CONTO DE:


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Em 15/03/2015:

Meus amigos

Agradeço a vossa presença e comentários a este Conto de José Abílio Coelho. Um Conto rico em termos humanos, pondo em evidência fraquezas e virtudes que muitas vezes se encontram escondidos no nosso íntimo e que situações de pressão emocional podem fazer emergir.
Também estivemos perante o grande problema com que nos debatemos quando precisamos recorrer às urgências hospitalares, em que a nossa fragilidade devido à doença ou acompanhamento de familiares e amigos em aflição vem ao de cima.
O atendimento precário e insuficiente que se verificou ainda não há muito tempo nas urgências de alguns hospitais, resultando na morte de não poucas pessoas, faz deste conto uma leitura actual do nosso sistema nacional de saúde. É preciso reorganizá-lo, repensá-lo de forma a que em caso de surtos gripais ou outros os serviços estejam em condições de dar uma resposta atempada.
  
O vazio de quem volta para casa sem o(a) companheiro(a) de toda a vida encontra-se bem patente neste Conto. 

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Imagem:daqui