quinta-feira, 31 de março de 2022

Vem...senta-te que a história não é curta





O teu mensageiro

Não te afastes
aproxima-te de mim
traz a tua esteira e senta-te

Vejo tremenda aflição no teu rosto
mostrando desespero
andas
e os teus passos são incertos

Aproxima-te de mim
pergunta-me e eu contar-te-ei
pergunta-me onde mora o dissabor
pede-me que te mostre
o caminho do desassossego
o canto do sofrimento
porque sou eu o teu mensageiro

Não me subestimes
aproxima-te de mim
não olhes estas lágrimas
descendo pelo meu rosto
nem desdenhes as minhas palavras
por esta minha voz trémula
de velhice impertinente

Aproxima-te de mim
não te afastes
vem...

senta-te que a história não é curta

in: No fundo do canto


Odete Semedo (Maria Odete da Costa Soares Semedo), nasceu em Bissau, em 7 de Novembro de 1959. Poeta, contista, professora universitária e política. Aos 18 anos iniciou as suas atividades como professora. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1989/1990). Ao regressar à Guiné-Bissau, assumiu a Coordenação Nacional do Projeto de Língua Portuguesa no Ensino Secundário, financiada pela Fundação Gulbenkian. Foi Diretora da Escola Normal Superior Tchico-Té; exerceu ali ao mesmo tempo suas atividades de professora. Em 2006 mudou-se para o Brasil para realizar o seu doutorado em Letras, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, em 2010, defendeu a tese "As mandjuandadi – cantigas de mulher na Guiné-Bissau: da tradição oral à literatura".
Mais aqui...



Flor Ave do Paraíso



Eneida Marta - Mandjuandadi


Tenham uma boa quinta-feira, meus amigos.

Abraços
Olinda

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Veja, se interessar: 

Odete Costa Semedo - ancestralidade e a poética do desassossego

Título do post retirado do poema
Imagem: pixabay 

sábado, 26 de março de 2022

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges

 


Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?



Um dos quatro heterónimos mais conhecidos de Fernando Pessoa. Era latinista por formação clássica e semi-helenista por autodidactismo. Na sua biografia não consta a sua morte, no entanto José Saramago faz uma intervenção sobre o assunto em seu livro O Ano da Morte de Ricardo Reis, situando a morte de Reis em 1936. aqui

Falarei em breve das minhas impressões sobre esta 
obra de José Saramago.





Canção de HMB, ft Carminho
O amor é assim 
-Numa bela interpretação, tendo, o video, Lisboa como pano de fundo-


Bom fim de semana, meus amigos.

Abraços


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Poema: daqui
Imagem: pixabay

terça-feira, 22 de março de 2022

Uma lágrima no olhar / Ua lhágrima ne l mirar


Ceifaram dos teus versos o riso
e o alvoroço de searas maduras ondulantes.
No teu poema corre 
uma lágrima
e no sorriso um esgar de tristeza.
O teu olhar não se engana. Dói num amor, quase sem saída.
Caminhos incertos, sentimentos confusos, perdida,
como quem viaja na sombra
à procura de um apetecível cheirinho a café,
perfumado com a nata do afecto.
Mas não esperas na paragem.
Não ceifaram o mar de poesia
que derramas em lágrimas no teu planalto,
como gaivota que voa ferida e cruza o céu a agarrar a vida.




Segórun de ls tous bersos la risa
i l alboroto de senaras maduras ondiantes.
Ne l tou poema cuorre ua lhágrima
i na risa un cachico de tristeza.
L tou mirar nun se anganha. Duol nun amor, quaije sien salida.
Caminos anciertos, sentimientos cunfusos, perdida,
cumo quien biaija na selombra
a saber dun gustoso cheirico a café
prefumado cula nata de l agarimo.
Mas nun speras na paraige.
Nun segórun l mar de poesie
q'arramas an lhágrimas ne l tou praino,
cumo gaibota que bola ferida i cruza l cielo a agarrar la bida.


Teresa Almeida Subtil

in:
Rio de Infinitos/Riu D'Anfenitos
pgs 134/135


...esta obra ganha ainda um valor redobrado porque sendo a autora uma apaixonada pela língua mirandesa, que aprendeu, sem a ter mamado no leite materno, aparece traduzida, em mirandês, pelo próprio punho. dando um grande exemplo de que querer é poder e de divulgação daquela que é a segunda língua oficial de Portugal. ... pg. 7, in prefácio de Domingos Raposo.





Galandum Galundaina -
fraile cornudo . nós tenemos muitos nabos .
siga a malta . burgalesa


Galandum Galundaina (Miranda do Douro, 1996) é um grupo de música tradicional mirandesa criado com o objectivo de recolher, investigar e divulgar o património musical, as danças e o Mirandês, a língua falada em Miranda. Os instrumentos usados, réplicas de outros muito antigos, que mantêm o aspecto e sonoridade dos mesmos, são gaitas de fole mirandesas, flauta pastoril, sanfona, caixa de guerra, conchas de Santiago, castanholas, pandeireta, etc.. aqui

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Imagem: net

segunda-feira, 21 de março de 2022

Uma outra Europa?

Talvez. 

A Europa cindida, cultural e politicamente, em Leste e Oeste terá, efectivamente, muitas diferenças em termos de mentalidade, de vivências de séculos, mas sempre o mesmo ser humano com as suas alegrias e tristezas. No sofrimento somos todos iguais, tudo se esbate nas nossas fragilidades.

Quando invadem a nossa terra, bombardeiam os nossos hospitais, as nossas maternidades, os centros culturais; 

quando temos de fugir, quem sabe, para nenhures, com as nossas crianças nos braços ou pela mão, os nossos velhos a arrastaram-se de lágrimas nos olhos, com os seus parcos haveres; 

quando temos de deixar para trás, filhos, companheiros, pais, em idade activa, para combaterem por esse bem maior que é as nossas vidas organizadas em comunidades, com as instituições cujos representantes elegemos e que dão estabilidade à vida em sociedade; 

quando somos desalojados das nossas casas e somos acordados pelo barulho do seu desmantelamento, caindo pedra sobre pedra, ficando soterrados ou alvejados... 

Nessas horas a nossa condição humana, o instinto de sobrevivência, o apego ao quotidiano, uma espécie de paraíso perdido, irmana-nos na dor, e o sentimento de perda e impotência é o mesmo.



A invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de Fevereiro, tem feito desfilar perante os nossos olhos o espanto de um regresso a tempos que já pensávamos ultrapassados. A aquisição de valores como a democracia, o direito de um povo decidir do seu destino, parece não ter importância para quem diz que o ocidente não terá sucesso no seu domínio do mundo. 

Penso que temos estado um tanto adormecidos não ligando a ameaças que Vladimir Putin tem vindo a fazer, pensando, como dizem os entendidos na matéria, na reconstrução do antigo Império russo. No primeiro quartel do século XX caímos na mesma esparrela perante ao que Hitler vinha dizendo, palavras que ficaram registadas em livro tristemente famoso e na vida de milhões de pessoas.

Como e quando irá isto parar ninguém sabe, apesar do que dizem os muitos especialistas que por aí pululam, aventando várias saídas...ou saída nenhuma.

A cruel realidade é o sofrimento que esse desastre bélico está a causar a todo um povo que resiste e luta pelo direito à terra e à liberdade, com o perigo quase palpável de alastramento do conflito.

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Mapa: daqui

sábado, 19 de março de 2022

DEVAGAR




Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,

se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós

o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.

Maria do Rosário Pedreira



Tal como num belo bordado, ponto por ponto,
tacteando e escolhendo as cores certas e ideais para 
uma paleta perfeita, onde a imperfeição dos dias também tem o seu lugar.
Sigamos, andando por esse caminho, por vezes com encruzilhadas,
mas em que a meta estará sempre bem definida.
 





Maria do Rosário Pedreira (Lisboa, 1959) tem a sua obra poética coligida em Poesia Reunida, que a Quetzal publicou em 2012 (nomeadamente A Casa e o Cheiro dos Livros, 1996; O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001; Nenhum Nome Depois, 2014). Além de poeta, romancista (a de Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu), autora de literatura juvenil e um dos nomes mais importantes da escrita de fado – Maria do Rosário Pedreira é também uma referência de grande qualidade para a edição portuguesa contemporânea, sendo editora na Leya. Mantém o blogue As Horas Extraordináriasaqui


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Poema: Poemário
Imagem: net






quarta-feira, 16 de março de 2022

Terras de bruma

Bruma seca, diz-se em Cabo Verde. O céu envolto numa espécie de névoa uniforme, um pó que, como diz o povo, vem do deserto do Saara. Também os ventos alísios são chamados, empiricamente, creio, para explicar esse fenómeno atmosférico. Dentro das casas um pó avermelhado toma posse do chão e dos móveis. Sempre de vassoura na mão, aspirador e panos de limpar pó... E quem sofre de problemas respiratórios está sempre com o credo na boca.

Os Açores chamados de Ilhas de Bruma no hino de Manuel Medeiros Ferreira em que ele nos dá conta da névoa que as envolve e, de forma poética, encontra-lhe beleza e magia: Hino não institucional dessas ilhas da macaronésia. E tanta coisa haveria ainda a dizer sobre elas...


 

Por cá, estamos submersos numa bruma persistente. O céu cinzento, por vezes avermelhado, traz-nos augúrios não muito sorridentes. Consta que também a culpa é do Saara que liberta o seu excesso de areias aqui para estas bandas, o que atesta a nossa proximidade com África. 

A bem dizer, parece que o tempo nos lê o coração. 

Por essa Europa fora a acção de pessoas inconsequentes lança-nos na maior das tristezas e horror pela falta de humanidade demonstrada nos últimos dias. 

Igualmente, em outros lugares do mundo vive-se em bruma permanente, nomeadamente, no Iémen... que vive a maior crise humanitária do mundo. Desde que a guerra civil eclodiu em 2014, a fome aguda, as chuvas torrenciais, as inundações, a crise de combustível, a praga de gafanhotos, a cólera e a Covid-19 devastaram o país. O financiamento insuficiente do Programa Mundial de Alimentos dificulta a assistência a milhões de iemenitas.

A guerra esquecida...8 anos de conflito e 700 ataques aéreos em um mês. 

O mundo é uma ilha, uma aldeia global. As distâncias já não contam.
Mesmo quando se diz que é dia aqui e noite ali.  

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quinta-feira, 10 de março de 2022

POEMA SEM RIMA

Há neste tempo um prenúncio
Uma espera que germina
Uma fala inesperada...
Um murmúrio, uma corrente.
Há um rio que se adivinha.
Um rosto. Um desatino
Uma ferida que sangra
E uma sede desatada...

Há um sopro em cada esquina.
Uma promessa. Uma viola.
Uma canção que se afina.
Uma passagem. Uma senha
E uma luta pegada.

Há um poema sem rima.
Uma viagem. Uma flor. Uma arma.
Uma fronteira vencida.
Há um vento que se anuncia
E uma dor aziaga...

Há um barco que se anuncia.
E há uma ousadia sonhada...

Há um lume insubmisso.
Um hino. Uma bandeira
E esta paixão magoada...

In: Coreografia dos Sentidos
-Como se fora invenção minha-
pg. 26



...Na sua escrita, o Poeta dilui-se na euforia da Palavra e dos sentidos e declara-se Poema, em que soletra a Gramática do Mundo num abecedário que se reinventa a cada verso, e em que caminhos apaixonantes se adivinham, por vezes, em gestos delicados e eloquentes silêncios. 

Em registo impressivo, de tirar o fôlego, assistimos à inventariação poética de cada esquina da vida, num Poema sem rima em que se perde e se encontra numa promessa, numa viola, numa canção que se afina, numa passagem clandestina, numa senha, numa luta anunciada… aqui




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terça-feira, 8 de março de 2022

As Mulheres

...Pela cidade, as mulheres suportam malas e cuidam das crianças. São milhares, sem o companheiro. Só elas e os filhos. Os homens estão a combater. Outros, estão de prontidão. ...

O visor da minha máquina fotográfica já me limpou os olhos várias vezes. É difícil não chorar. Caros leitores, aqui o sofrimento é atroz. Podemos ser comentadores, analistas, de esquerda ou de direita. É sempre fácil no conforto do sofá. Aqui deixou de haver sofás. E berços só nos braços fortes das mães e das avós. Gosto de olhar olhos nos olhos. 

As mulheres são lindas. Transportam uma beleza que nem o desespero consegue vencer. São serenas. São solidárias. Carregam com elas o futuro de dois países. Meninos e meninas. Em Kiev ou em Moscovo, todos gostam de brincar. Bonecas e carrinhos. Existem linguagens universais.

As mulheres são o melhor que a humanidade tem.

Excerto de Crónica de 5/3, de Adriano Miranda, 
enviado do Público à Ucrânia.



Em Nome do Amor,

Ela espera fiel, confia, é puro clamor
Aos céus, confia no Alto com penhor.
Em nome do Amor,
Ela aguarda o tempo da dura espera,
Aguarda, no 💙, o cumprir da quimera.
Em nome do Amor,
Ela tem paciência, calma com sua dor,
Sabe o Amor paciente ser como a flor.
Em nome do Amor,
Ela é serena, com todo seu sofrimento,
Não cansa nem se cansa em tormento.
Em nome do Amor,
Ela sabe, um dia renascerá das cinzas,
Como fênix revigorada, sem tristezas.



Posto que o Amor também é feito de espera, o mesmo é dizer de esperança, hoje, Dia Internacional da Mulher, trago-vos este poema da amiga Rosélia. O direito de amar, de aspirar à Felicidade e de estar na vida de conformidade com as próprias escolhas. 

Esperança de que a Paz invada os corações de quem decide da vida das pessoas, de crianças, velhos e de quem é considerado mais fraco pelo poder das armas.

A canção que acompanha este poema foi-me indicada 
pela autora, a meu pedido, e verão como tudo está em consonância: 
palavras, música e esse sentimento que é 
o sal da vida, o Amor, 
 em todas as suas manifestações. 



A Miragem/Somente por amor


...somente por amor a gente põe a mão 
no fogo da paixão, deixa-se queimar 
somente por amor movemos terra e céus
rasgando sete véus, saltamos do abismo
sem olhar para trás...


Rosélia Bezerra, professora aposentada, é uma escritora com vários livros publicados. Confira aqui, em ClubedeAutores.

Este poema foi publicado em 2021 com o título "Como uma Fênix", no seu blogue  AMORAZUL. 


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Imagem: net


domingo, 6 de março de 2022

Memórias de Adriano

Livro de Marguerite Yourcenar que retrata a vida do Imperador romano Adriano, (76-138 d.C), o governante ideal, autobiografia romanceada e baseada em minuciosa pesquisa que durou cerca de trinta anos, uma das obras de referência da literatura contemporânea. Foi lançada em 1951 e tornou internacionalmente conhecida a sua autora.




Tem a forma de uma longa carta dirigida por Adriano, Pontifex maximus dos territórios romanos entre 117 a 138 d.C., já minado pela doença, ao jovem Marco Aurélio, que deve suceder-lhe no trono de Roma (século II d. C.). Nessa carta promete contar-lhe toda a verdade, sem as reservas próprias da história oficial. Pouco a pouco, através desta serena confissão, suscitada pelo pressentimento de que a morte se aproxima, ficamos a conhecer os episódios decisivos da vida deste homem notável, que soube pacificar o império, tornar a sociedade romana um pouco mais justa, melhorar a sorte das mulheres e dos escravos.

Consta que Adriano teria deixado realmente uma autobiografia que, entretanto, não chegou aos nossos dias. 

Memórias de Adriano é prefaciado por Isabel Alçada, e poderemos ouvi-la, neste video, numa interessante reflexão sobre a obra.



A autora, Marguerite Yourcenar, de seu nome Marguerite Cleenewerck de Crayencour (Yourcenar - anagrama de Crayencour), -1903-1987- belga, foi uma escritora francesa e a primeira mulher eleita à Academia Francesa de Letras, ocupando a cadeira nº 3, 1980.

Marguerite Yourcenar refere no posfácio, "Carnet de note", à edição inicial, que havia escolhido Adriano como tema para o seu romance em parte porque este tinha vivido numa época intercalar, em que já não se acreditava nos deuses romanos mas em que o Cristianismo ainda não se tinha firmado, o que lhe despertou curiosidade porque ela própria viveu uma época semelhante na Europa do pós-guerra. aqui


Por cá, Memórias de Adriano é recomendado pelo Plano Nacional de Leitura, programa que abrange os anos de 2017 a 2027.

Bom domingo, meus amigos.

Abraços

Olinda

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Imagens: Net

quinta-feira, 3 de março de 2022

Ucrânia - um pouco da sua história


KIEV

A Resistência de um Povo

A história política depende dos acontecimentos e das suas circunstâncias. O momento de guerra na Europa que vivemos deve ser visto a essa luz. Longe de se saber qual o desenlace, temos de compreender a essência da situação. Ao falarmos da Ucrânia estamos perante um caso especialmente difícil, longe do que quer a narrativa de Putin, porque a história envolve, como habitualmente, um conjunto vasto de razões. Kiev está na origem da civilização russa. Segundo a tradição, no século VI, aí se reuniram 13 tribos eslavas orientais voluntariosas e determinadas, que fizeram prosperar a região do Dniepre. 

Se o primeiro Estado russo nasceu em Novgorod, quando o príncipe Riurik, um normando, não eslavo, foi convidado a assumir o poder, foi o seu irmão Oleg que transferiu para Kiev a capital da Rus. Iniciaram-se então as relações com Bizâncio e geraram-se as raízes dos povos russo, ucraniano e bielorrusso. Kiev tornou-se o coração da Santa Rússia, herdeira da segunda Roma (Constantinopla). 

Contudo, no ocidente da Ucrânia, em Lviv, cidade fundada pelo grão-duque da Ruténia, em 1256, encontramos, de certo modo, uma outra história. A cidade passou sucessivamente da soberania polaca, em 1340, para a austríaca em 1772, integrando o Império Austro-Húngaro. Depois, a cidade foi polaca, em 1919, no fim da Grande Guerra, e tornou-se ucraniana em 1939. Em 1945, nas partilhas territoriais do fim da Segunda Guerra, a região foi integrada na República Soviética da Ucrânia, que viria a ser fundadora das Nações Unidas, ao lado da URSS e da Bielorrússia. A soberania de Direito da Ucrânia é assim inequívoca e antiga. A libertação de 1991 e tudo o que se seguiu merecem especial atenção, no âmbito da aplicação da Carta das Nações Unidas.

 A Ucrânia é um Estado soberano, com raízes históricas complexas e claras, a partir de influências que se completam - eslava e europeia central. Kiev é uma das cidades mais antigas da Europa e uma referência matricial da rica cultura eslava. Fundada no século V é um centro da economia e da cultura. E o cristianismo ortodoxo, de bases profundas, teve Kiev como matriz. A própria língua ucraniana tem raízes próprias, próximas da língua russa, do servo-croata e do polaco.

 A palavra ukraina significa zona fronteiriça, onde o domínio cossaco se distinguia dos principados eslavos do norte e oeste e das hordas turcas do sul. Em 1240, a cidade foi ocupada e destruída pelo Império Tártaro-Mongol, na conquista iniciada por Gengis Khan. Kiev perdeu influência, mas manteve autonomia, no âmbito do Canato da Horda do Ouro. Em 1321, a cidade seria conquistada pelo grão-duque da Lituânia, passando ao domínio polaco-lituano até ao final do século XVII, quando Kiev passou para a esfera do Império Russo, tornando-se o mais importante centro cristão ortodoxo, antes da transição para Moscovo. 

Nos séculos XVIII e XIX a vida da cidade foi dominada pelas autoridades militares e eclesiásticas, em 1834 foi criada a Universidade de S. Vladimir e em 1846 constituiu-se a proibida Irmandade de S. Cirilo e S. Metódio, defensora de uma federação eslava de povos livres, animada por Nikolay Kostomarov. Kiev foi a terceira cidade do império, importante centro de comércio, beneficiando do rio Dniepre. Deste modo, as lágrimas e a vontade de um povo resistente reforçam a história, a herança e a memória de um dos fundamentos da civilização europeia, que a cegueira bárbara de um ditador será incapaz de destruir.

Guilherme de Oliveira Martins

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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Transcrevo este texto de 01/03, da autoria de Guilherme de Oliveira Martins, mais para informação minha do que para a vossa, pois deverão já conhecer a realidade histórica da Ucrânia. Nestes dias em que o centro de gravidade ali se situa, termos consciência disso parece-me importante.

Abraços
Olinda

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Texto: daqui
imagem: wiki

quarta-feira, 2 de março de 2022

A regra fundamental da vida

Quando nós dizemos o bem, ou o mal... há uma série de pequenos satélites desses grandes planetas, e que são a pequena bondade, a pequena maldade, a pequena inveja, a pequena dedicação... No fundo é disso que se faz a vida das pessoas, ou seja, de fraquezas, de debilidades... Por outro lado, para as pessoas para quem isto tem alguma importância, é importante ter como regra fundamental de vida não fazer mal a outrem. A partir do momento em que tenhamos a preocupação de respeitar esta simples regra de convivência humana, não vale a pena perdermo-nos em grandes filosofias sobre o bem e sobre o mal. «Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti» parece um ponto de vista egoísta, mas é o único do género por onde se chega não ao egoísmo mas à relação humana.

José Saramago, in "Revista Diário da Madeira, Junho 1994"


Tão simples como isso ou não fossem os provérbios uma fonte de sabedoria. Na liturgia católica hoje é o dia de cinzas, início da quaresma. Mesmo que não sejamos crentes aproveitemos esta quarta-feira para meditarmos sobre a nossa condição humana, de que somos pó e ao pó voltaremos, e que só as nossas boas obras nos salvarão. 

Solidariedade para com os nossos irmãos ucranianos que sofrem uma guerra de consequências imprevisíveis. E paz ao mundo de que beneficiaremos todos. Que sejam esses os nossos pensamentos mais acarinhados.

José Saramago traz-nos este adágio e, grande pensador que é, visita a filosofia popular para nos transmitir esta coisa fundamental que é o amor na sua expressão mais universal.

Boa quarta-feira, meus amigos.

Abraços
Olinda



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Texto: citador
imagem: net
 

terça-feira, 1 de março de 2022

Avó negra





Minha avó negra, 
de panos escuros
da cor do carvão
Minha avó negra, de panos escuros
que nunca mais deixou.
Andas de luto.
Toda é tristeza

Heroína de ideias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis dos quimbandas.
Não chinguilas no óbito
tuas mãos de dedos encarquilhados
tuas mãos calosas da enxada
tuas mãos que me preparam
(quitabas e quifututilas),
tuas mãos, ora tranquilas,
desfiam as contas gastas
de um rosário já velho.
Já não sabes chinguilar
não fazes mais que rezar.
Teus olhos perderam o brilho.
E da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas.

Avozinha, às vezes
ouço vozes
que te segredam saudades
da tua velha senzala
da cubata onde nasceste
das algazarras dos óbitos
do sonhos do alambramento
que supunhas merecer.
E penso que
se pudesses
talvez revisses
as velhas tradições. 

    (1934-989)




Welwitschia - Deserto do Namibe


Meus amigos:

Neste momento, no ano de 2022, encontramo-nos de luto perante a agressão da Rússia à Ucrânia. Movimentos da sociedade civil multiplicam-se em actos de solidariedade, no envio de medicamentos, roupas, apoio moral àqueles que procuram um lugar para se albergarem com crianças e idosos. Todos não seremos demais para uma ajuda efectiva, é um facto.

Mas eis que no meio dessa tristeza o que mais estaria destinado aos nossos olhos e aos nossos ouvidos? 

Discriminações nas fronteiras, que conduzirão à liberdade, a negros, indianos e outros que não estão na escala de valores de caucasianos, barrados sem consideração pelo tempo de espera ao relento, entregues às intempéries. Quando mulheres e crianças têm prioridade nos lugares nos comboios, autocarros e no atravessamento das fronteiras, em relação a mulheres e crianças negras essa atenção não se põe?

Tempos que se recuam ou então não temos emenda, mesmo...





Choremos!




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Poema  e glossário: daqui
Glossário:
cazumbi - espírito, alma dos mortos; feitiço,
quimbanda — curandeiro,
chinguila - dançar em êxtase,
quitaba - pasta comestível.
quifututila - doce angolano.
alambramento – dote ou presente de noivado.

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Poeta, contista, e ensaísta angolano, Mário António Fernandes de Oliveira, nascido em 1934 e falecido em 1989, ocupa um lugar de destaque na vasta literatura angolana.
Foi activista político, ligado à criação do Partido Comunista de Angola (PCA) e do Partido de Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUAA), conjuntamente com Viriato da Cruz, António Jacinto e Ilídio Machado. Por repressão da polícia política abandonou as actividades políticas.
Foi professor auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, director do Serviço para a Cooperação com os Novos Estados Africanos, da Fundação Calouste Gulbenkian e presidente da Secção de Literatura da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Enquanto ensaísta crítico, Mário António estudou, aprofundadamente, a literatura angolana, bem como as próprias estruturas histórico-sociais de Angola, ou não fosse licenciado em Ciências Sociais e Políticas e Doutorado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Quanto à sua poesia, poder-se-á dizer que Mário António começa por utilizar, inteligentemente, os modelos brasileiros (muito usados na época, até mesmo pela proximidade dos temas, sentimentos e realidades entre Angola e o Brasil), recorrendo também a linhas literárias europeias.
Entrando mais concretamente na temática da sua produção poética, pode dizer-se que esta está amplamente marcada pela temática da infância em que dominam os valores africanos da religiosidade e da fraternidade.
A sua poética está efetivamente marcada por esta "saudade" de um passado real: "saudade" do mundo da infância, em que as relações puras eram possíveis.
Em todas as fases poéticas de Mário António verificamos a permanente oposição entre dois campos distintos - campos esses que marcam a própria vida angolana: de um lado temos a cidade da infância, o tempo de todas as possibilidades, o local da união, o sítio e o tempo mágico em que o homem dependia apenas dos fenómenos da natureza e guiava os seus passos pelos astros; do outro lado, a camada do cimento, as grandes construções que destruíam o espaço amplo e livre do antigamente, a sociedade mesclada: brancos, negros e mestiços. aqui e aqui