A sombra das chamas, como um ninho de víboras, floria de remorso - mas que remorso? - e de saudade absurda a alvura em fuga da parede caiada, apojada de grumos que aquele luzeiro avolumava e que sempre eram, um por um, na hora da solidão, referências aos segredos antigos.
Uma pequena fogueira num cinzeiro de louça. Apenas um papel a mirrar, já negro, encarquilhado, e sangrando ainda, pelo canto que sobrava, aquele resplendor de uma última e cínica despedida. Não iria estalar o cinzeiro? Os dedos brancos, mas já envelhecidos pela barrela e pelas frieiras, pegaram, com jeito, na folha quase consumida, voltaram para cima o clarão ameaçador, que logo minguou.
Em breve, soltando-se da mão fanada, que prudentemente se retirava, o resto da carta caiu de novo, com o seu rasto de lume a extinguir-se, fantasma já dominado, na concha de louça.
Ficou só um castelo de cinza crepitando mansamente, num silêncio de redoma. Como era doloroso ver arder uma carta: era como se ardesse também alguma coisa, ainda alguma coisa, de quem a mandara! Numa extremidade do papel carbonizado, tenazmente, ou já só ilusoriamente, viva, continuava a afirmar-se, airosa e egoísta, uma assinatura que parecia sorrir daquele sacrifício: Delfino!
Da vasta obra de Urbano Tavares Rodrigues, retiro este livro, Bastardos do Sol, 1959, e leio a primeira página e parte da segunda, excertos transcritos acima. E reparo que antes das páginas referidas e mesmo antes da dedicatória, À memória de Jaime Cortesão, vem a citação que serve de título a este post: On n'a de droit que sur les choses pour lesquelles on a souffert, de Robert Montesquiou, homem de letras, um esteta, que Marcel Proust elegeu como o professor da beleza de toda uma geração. Voltando à citação, estou em crer que terá muito a ver com o desenrolar da vida das personagens de Bastardos do Sol. Para o saber vou reatar a leitura no ponto em que a deixei.
Chama-me a atenção um pequeno volume intitulado, Os poemas da minha vida, com poemas de vários autores e que se encontram entre as preferências de Urbano. Ele diz (prefácio da 1ª edição): Não sei bem quando comecei a ler poesia. Creio que principiei a amar as cantigas paralelísticas da nossa Idade Média muito antes de as ler, ao ouvir as modas alentejanas dos ranchos que saíam para os olivais, na apanha da azeitona.
Folheio-o e encontro poemas que também a mim me encantam e retenho:
Folheio-o e encontro poemas que também a mim me encantam e retenho:
O BEIJO (Paul Éluard)
Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
Vagamente mas em toda a parte
Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo
Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.
Ou Cristalizações, Cesário Verde, do qual insiro esta passagem:
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
E ficaria assim a acompanhá-lo, desde a primeira à última página, nesta selecção poética que, com tanto amor, produziu.
Ou Cristalizações, Cesário Verde, do qual insiro esta passagem:
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
E ficaria assim a acompanhá-lo, desde a primeira à última página, nesta selecção poética que, com tanto amor, produziu.
Dum manuscrito, diário de Urbano Rodrigues, saltam estas palavras, perfumadas: Simpatizo com a forma deste caderno. Estas coisas para mim teem importância: gosto do papel sedoso e das folhas ligadas.
Levantei-me há pouco e estou sem grande ânimo para me levantar. A Zita foi à praça. Tenho ainda as luzes acesas, embora a claridade do dia entre no quarto, através duma greta da janela. (...)
E termino aqui, de momento, esta viagem ao mundo de Urbano Tavares Rodrigues. A si, caro/a visitante, que acaba de me acompanhar nestas leituras parcelares, se quiser continuar para um maior aprofundamento, faço-lhe saber, se é que não sabe já, que está a decorrer, até 28 de Junho, na Biblioteca Nacional, uma Mostra da vida e obra deste grande autor da História Literatura Portuguesa do século XX, falecido em 2013.
E termino aqui, de momento, esta viagem ao mundo de Urbano Tavares Rodrigues. A si, caro/a visitante, que acaba de me acompanhar nestas leituras parcelares, se quiser continuar para um maior aprofundamento, faço-lhe saber, se é que não sabe já, que está a decorrer, até 28 de Junho, na Biblioteca Nacional, uma Mostra da vida e obra deste grande autor da História Literatura Portuguesa do século XX, falecido em 2013.