Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio da cintilação das sombras pelo chão.
O silêncio onde me esvaeço, na negritude da noite.
...Vem de tão longe, meus filhos. Vem do começo
sagrado dos tempos e do silêncio dos dias ao acaso,
a grandeza de cada gesto. É preciso ter asas e deixar
que o fascínio vos conduza até ao infinito, onde a avidez
da vida inaugure no olhar o prodígio do espanto e a pura
nascente de todas as sedes. ...
Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio transparente do mar, dos barcos ao longe,
da sombra dos mastros, do brilho dos búzios.
Esbarro na sombra, na minha sombra, e alargo os
passos para encurtar a distância entre os barcos e a
ilha mais próxima, onde uso o declive certo do olhar
para deslindar a ausência da água em meus olhos
secos pela maresia.
Procuro o silêncio desconcertante das madrugadas,
com a luz ainda baça do orvalho a dissipar-se.
...
Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das sementes, da melancolia das árvores,
do restolho do trigo, do afago da terra.
No impulso da manhã, o nevoeiro esfarrapa-se sobre
os arbustos, incerto e sem peso. É o momento em que
o olhar não tolera a luz que incide sobre branquíssimas
açucenas. Digo pétala, e o perfume de cada flor
estremece no olfacto como um sismo brando, com
réplicas no chão flexível que me prende e torna
urgentes os caminhos repetidamente pisados. ...
Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O imenso silêncio dentro de mim, na ansiedade das
palavras distantes, quando, sem aviso, ele se afunda
no meu peito insensatamente, ...
Nas pontas dos dedos, uma insubmissa escrita teima
na promessa de um poema com sílabas luminosas.
Escrevo silenciosos vocábulos, agora que a poesia se
detém no fingimento de entrelinhas, soletrando
a febre nos lábios. Podem dizer de mim que nunca me
cansei das palavras porque foi com elas que me
aprendi inteira.
Regressa a mim, poesia!...
Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das montanhas azuis, da neve, das
planícies eternas, das glicínias, do vinho maduro, da
música de schubert, do coração dos pássaros
da fulguração da alba, ...
...O coração não cabe nas palavras quando a dádiva e o
fascínio se confundem.
Distancio-me de mim. Um breve lume acende na lembrança
o prodígio da luz de maio.
E deixo que a emoção encontre a ânfora onde guardei o
mel com que aclarei os gritos abafados no recato da noite.
Sinto ainda o cheiro do leite quente guardado em
meus seios para delírio precoce da boca que sugou
a minha sede. ...
Procuro o lugar onde começa o silêncio
O profundo silêncio de deus. O celestial silêncio dos
anjos.
...
Em minha garganta dilato os gritos sangrantes que
antígona não gritou para que ressoem em todos os
templos, em todos os palácios, em todos os mares,
em todas as praias, em todas as planícies, em todas
as montanhas, em todos os desertos, em todas as
casas. Na cegueira de uma febre maldita e benigna.
No amor sem perdão dos homens e dos deuses. ...
Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio definitivo da morte.
...