sábado, 26 de novembro de 2022

Há cidades...


Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.

Sophia de Mello Breyner Andresen
  in Poesia, 1944



SOPHIA


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Numa pequena pausa, meus amigos.

Abraços

Olinda




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Poema: aqui

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Manual de Pintura e Caligrafia

Para assinalar o dia do Centenário de José Saramago, 16/11, trago este livro. Confesso que tive alguma reserva em lê-lo, há uns anos, mesmo sem tomar conhecimento do prefácio ou dos dizeres da contra-capa. Partira do princípio de que o mesmo tratava os temas que o próprio título induz, embora interessantes, mas no momento não me senti atraída.

Esta edição traz um extenso prefácio de Luís de Sousa Rebelo que começa por falar dos romances Levantado do Chão e do Memorial do Convento, para a seguir tecer as suas considerações sobre o referido livro, cujo resumo pode ser lido na respectiva sinopse, nos seguintes termos:

«O Manual de Pintura e Caligrafia é uma obra ímpar no género da literatura autobiográfica entre nós e oferece-nos, no seu conjunto, um semental de ideias e uma carta de rumos da ficção de José Saramago até à data.
Nele se fundem as escritas de uma complexa e rica tradição literária e a experiência de um tempo vivido nos logros do quotidiano e das vicissitudes da história, que será a substância da própria arte.»


Caligrafia de Júlio Pomar

É o segundo livro escrito por José Saramago, 1977, com um estilo ainda a meio caminho daquele que viria a adoptar, sem espaço para a respiração do leitor, como se vê em Levantado do Chão, o primeiro que li e adorei. A partir deste li quase todos de uma assentada. O Manual de Pintura e Caligrafia é tido como autobiográfico. O que sei dizer é que o autor vai discorrendo sobre o presente, o do protagonista, aborda aspectos da pintura do antanho e a sua evolução, e a correlação ou a diferença entre a escrita e a pintura.

Sobre ser autobiográfico ele próprio começa a página 139 deste modo: "A isto que escrevi, chamei (primeiro) exercício de autobiografia, e creio não me ter enganado nem enganar (ter-me enganado e enganar, não será, em rigor, o mesmo?" ou então é a fala do personagem que dá pelo nome de H. e que é o narrador. 

Depois de várias elucubrações acaba por chegar à época imediatamente anterior à Revolução dos Cravos, e é na pg. 311 que diz isto: "O regime caiu. Golpe militar, como se esperava. Não sei descrever o dia de hoje: as tropas, os carros de combate, a felicidade, os abraços, as palavras de alegria, o nervosismo, o puro júbilo..."

Mas a parte que mais me surpreendeu é o capítulo onde fala de amor e das suas demonstrações, produzindo um dos mais lindos e apaixonantes textos:

"Meu amor", disseste, e eu o disse, abrindo-te a minha porta toda, e entraste. Abrias muito os olhos ao caminhares para mim, para me veres melhor ou mais de mim, e pousaste o teu saco no chão. E antes que eu te beijasse, disseste, para que o pudesses dizer serena: "Venho ficar contigo esta noite". Não vieste nem cedo nem tarde. Vieste na hora certa, no minuto exacto, no preciso e precioso patamar do tempo em que eu podia esperar-te. Entre os meus pobres quadros, cercados por coisas pintadas e atentas, nos despimos. Tão fresco o teu corpo. Ansiosos, e no entanto sem pressa. E depois, nus, olhámo-nos sem vergonha, porque o paraíso é estar nu e saber. Devagar (só devagar poderia ser, só devagar) aproximámo-nos, e, já perto, colados de repente e trémulos. Apertados um contra o outro...

Continuem a ler - o tema vai da página 303 à 305. 

Mas da 39, que começa assim: Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei, até à 302 é uma viagem e tanto.


Júlio Pomar
Camões - 1990


A encerrar a publicação, trago a notícia de 14/11, já sabida de todos, provavelmente, de que o Prémio José Saramago 2022 foi atribuído a Rafael Gallo, escritor brasileiro, pelo livro "Dor Fantasma". Veja mais aqui.


Continuação de boa semana, amigos.

Abraços.

Olinda


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NOTA:

A BRAÇOS COM O COMPUTADOR AVARIADO. EM PRINCÍPIO, DEMORAREI ALGUM TEMPO A PUBLICAR OS VOSSOS COMENTÁRIOS.

POR OUTRO LADO, OS COMENTÁRIOS DA MINHA AUTORIA, NOS VOSSOS BLOGUES, NÃO VOS CONDUZIRÃO AO "XAILE DE SEDA", PORQUE SÃO FEITOS A PARTIR DO TELEMÓVEL.

PEÇO DESCULPAS.
OLINDA


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"Manual de Pintura e Caligrafia" - o exemplar referenciado no post é uma Edição da 
Porto Editora, com 311 páginas. 
A imagem é da Editora Caminho para evidenciar a Caligrafia de Júlio Pomar.



segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A Demora



O amor nos condena: 
demoras mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

in " idades cidades divindades" 



Mia Couto (António Emílio Leite Couto) é um escritor moçambicano, nascido em 5 de julho de 1955, na cidade de Beira. Trabalhou como jornalista durante quase 10 anos, porém ingressou na Faculdade de Biologia e, posteriormente, tornou-se professor universitário, profissão que concilia com a sua carreira de escritor. Assim, em 1983, publicou seu primeiro livro de poesias — Raiz de orvalho.

Já seu primeiro romance — Terra sonâmbula — foi publicado, em 1992, com grande sucesso de público e crítica. Ganhador do Prémio Camões em 2013, Mia Couto é um autor da literatura contemporânea, e suas obras são caracterizadas, principalmente, pelo resgate da tradição cultural moçambicana por meio de uma linguagem marcada por neologismos. 
Ver mais aqui






Boa semana, meus amigos.

Abraços
Olinda



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Poema: daqui

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

O que se passa com o BLOGGER?

Têm acontecido coisas muito estranhas, tais como:

Comentários que vão para o SPAM, sistematicamente;

Comentários que são publicados e que depois desaparecem;

Comentários que não conseguimos publicar nos blogues que seguimos.

Agora o BLOGGER endoidou completamente, no que me diz respeito:

Resolveu reciclar os comentários de posts antigos, trazendo-os e colocando-os no SPAM.

A princípio resolvi publicá-los de novo. E desapareceram.

Depois optei por dar um tempo, mantendo os comentários no Spam.

A seguir, republiquei os que iam aparecendo, pensando eu que a coisa ficaria resolvida.

Afinal, não. 

Todos os dias aparecem 5, 6, 7 ou mais comentários no SPAM com a mesma proveniência, isto é, dos anos de 2012, 2013,2014, até agora...

O que se estará a passar?

Será uma forma de nos obrigar a renunciar à plataforma?

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Enquanto isso, festejemos o São Martinho. Vale relermos a lenda aqui. O dia está realmente maravilhoso, nem parece que há três dias o mundo quase desabou em Lisboa e eu no meio...

Diz-se que hoje é tradição fazerem-se belos Magustos e provar o vinho novo e que as castanhas querem-se quentes e boas, assadas ou cozidas.

Venham elas!




Assadas no forno 
Veja : aqui

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Bom fim-de-semana, amigos.

Abraços

Olinda

domingo, 6 de novembro de 2022

Sobre um desenho de Graça Morais




Nítido e leve ramo de oliveira:

Rijeza firme do tronco

As pálidas folhas como ponta de lança

E o pequeno fruto negro

Compacto e brilhante


in: Musa - 1994



Será esse o desenho de que fala Sophia? O que sei dizer é que com este poema homenageia a grande artista Graça Morais, a artista rural.

As origens e as tradições populares de uma artista nascida numa aldeia do distrito de Bragança, em Trás-os-Montes, e que viveu parte da sua infância (entre 1957 e 1958), em Moçambique, tornam-se a fonte de inspiração e temática privilegiada que, ao longo de mais 5 décadas, anima e acompanha o seu percurso artístico. Através da representação das gentes, sobretudo mulheres, das paisagens áridas e rurais, dos animais selvagens e domésticos, da flora autóctone, a artista explora nas suas obras cores quentes, texturas intensas e traços marcantes, que figuram uma visão muito própria do mundo que a sensibiliza. Veja mais aqui E pesquise sobre a sua obra aqui, por exemplo.



Transfere a arte do Paleolítico para a sua pintura


Graça Morais conclui, em 1971, o curso de Pintura da Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Entre 1976 e 1979 foi bolseira em Paris da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1984 representou Portugal na XVII Bienal de São Paulo, Brasil. Em 1997 foi agraciada pelo Presidente da República Jorge Sampaio com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. O Centro de Arte Contemporânea Graça Morais (CACGM) foi inaugurado em 2008 em Bragança. Em 2019 a Ministra da Cultura Graça Fonseca entregou-lhe a Medalha de Mérito Cultural em nome do Governo Português.



Madredeus
Grupo musical de excelência
E a voz de Teresa Salgueiro, incomparável!


Hoje, dia 6, data do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen, faço aqui o encontro destas duas grandes Mulheres.



Pintura de Graça Morais
Guerra, Verão de 2008

Capa da Revista Seara Nova
Edição Primavera 2020
Nº 1750


Nota: Quanto a esta obra ver, p.f., o comentário de Manuel Veiga.

Continuação de boa semana.




(Post actualizado em 9/11.)

Abraços
Olinda


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Veja de Sophia, aqui, no "Xaile de Seda"

"Sobre um desenho de Graça Morais" é o titulo do poema.

Flores - daqui

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Crioulo Cabo-verdiano - Língua Cabo-verdiana




Muito se tem escrito e inúmeras têm sido as tentativas de se inscrever o Crioulo Cabo-verdiano como Língua de pleno direito, com as suas próprias regras e sistematização de escrita. 

Tenho bem presente a obra, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, de Baltasar Lopes da Silva,  os textos em crioulo de Sérgio Frusoni, as mornas escritas em crioulo da Brava de Eugénio Tavares, todos tentando encontrar uma forma de transmitir a língua materna cabo-verdiana através da leitura e da escrita. Aliás é um esforço que já vem do século XIX. A dificuldade maior reside em unificar o que é diferente e variado, desde o inicio, tendo em conta as raízes que deram origem a esta forma de comunicar nas ilhas de Cabo Verde.

Essas raízes terão tido a sua génese nos escravos levados directamente da costa ocidental africana para as ilhas do Fogo, Santiago, São Nicolau e Santo Antão, nos reinóis, no dizer de Baltazar Lopes da Silva, e em outras influências, sendo depois levadas de ilha em ilha, sofrendo alterações com o decurso do tempo. O facto é que temos esta forma específica de comunicar, diferente em cada ilha, mas com a particularidade de ser o primeiro Crioulo cujos falantes pretendem elevá-lo a Língua Nacional. 

Um grupo de linguistas cabo-verdianos, contando entre eles Manuel Veiga e Dulce Almada Duarte, com o seu trabalho dedicado chega ao ALUPEC, Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano, baseado no alfabeto latino e aprovado pelo Governo, através do Decreto-Lei nº 8/2009, de 16 de Março. Mas este Alfabeto vem tão-só estipular as letras que devem ser usadas para representar cada som e, assim, é composto de 23 letras e quatro dígrafos. A responsabilidade de se desenvolver uma grafia que seja adoptada posteriormente por todos, ainda carece de concretização. 

Com efeito, o Crioulo continua num limbo donde estudiosos têm tentado retirá-lo, esforçadamente, estudando-o e analisando-o. Nesta senda, têm aparecido gramáticas e outras tentativas, mas parcialmente, o mesmo é dizer abordagens por "variantes", portanto, sectoriais. De referir uma gramática que apareceu, não há muito tempo, sobre o crioulo de Santiago, elaborada por Jürgen Lang e outros, bem como traduções levadas a cabo, nomeadamente por José Luiz Tavares, já com a aplicação do ALUPEC.  

Também há notícia de cerca de 200 personalidades cabo-verdianas haverem lançado em 2022, com Karina Moreira - jornalista e linguista - uma petição no sentido de o Crioulo ser padronizado conferindo-lhe o estatuto a que tem direito. Não há dúvida que, no estado em que as coisas se encontram, não será possivel uniformizá-lo a não ser por decisão política e estudos aprofundados por especialistas na matéria.

É neste contexto que surgem as Propostas de Manuel R. Melo Santos, com dois trabalhos que eu diria colossais, Ensino do Kriol de Soncente, com a respectiva Gramátika, fruto de estudo, observação e muita vontade de fazer algo de útil e concreto pela "variante" Crioulo de São Vicente. E com efeitos práticos, porquanto esta abordagem destina-se a Estrangeiros que sentiram a necessidade de aprender o Kriol, de modo a poderem compreender os naturais e a movimentarem-se no meio. Diria que é um Ensino que nasce a pedido. Nada mais aliciante. E como tal tem pernas para andar porque é posto em prática diariamente pelos falantes de outras línguas.

Tive o prazer de percorrer unidade a unidade, letra a letra, a Gramátika proposta. E fiquei emocionada. Eu, filha das ilhas, encontro em cada linha a expressão do que dantes dizia verbalmente sem qualquer sistematização e sem o integrar num processo lógico interno. Cada coisa com o seu nome, dentro das respectivas regras. Cada passagem dando passagem à passagem seguinte, com o conjunto de regras que definem uma gramática como tal: fonética, morfologia, sintaxe...enfim trabalho moroso com 50 Unidades, mas apresentado pelo autor com um cariz tal que facilita a sua assimilação.

Mercê dessa sistematização surge-nos a Proposta de Ensino do Kriol a Estrangeiros. Seguindo estritamente o alfabeto preconizado pelo ALUPEC, o autor, Manuel R. Melo Santos, conduz-nos por 35 lições, com frases, expressões, traduções, retroversões, exercícios, num discurso inclusivo e facilitado pelo cuidado que põe nas explicações dadas na própria língua do instruendo, ou seja, em português, francês ou inglês. 

Que este belo trabalho tenha aceitação e seja oficializado pelo menos no que diz respeito ao ensino do Kriol de São Vicente. Que sirva de inspiração  às altas esferas políticas e linguísticas no sentido de se caminhar para a uniformização do crioulo de modo a que possa ser declarado, de facto e de jure, como Língua Oficial Cabo-Verdiana. 

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Este é o Prefácio que tive o prazer de escrever para as Propostas de Ensino do Crioulo de São Vicente, da autoria de Manuel R. Melo Santos. Publico-o pretendendo que seja uma pequena achega na divulgação do seu trabalho.

Abraços
Olinda 


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ALUPEC - aqui
Decreto-Lei nº 8/2009, de 16/03 - aqui
Decreto-Lei nº 67/98, de 31/12 - aqui

Imagem - Ilhas de Cabo Verde : Net