Para assinalar o dia do Centenário de José Saramago, 16/11, trago este livro. Confesso que tive alguma reserva em lê-lo, há uns anos, mesmo sem tomar conhecimento do prefácio ou dos dizeres da contra-capa. Partira do princípio de que o mesmo tratava os temas que o próprio título induz, embora interessantes, mas no momento não me senti atraída.
Esta edição traz um extenso prefácio de Luís de Sousa Rebelo que começa por falar dos romances Levantado do Chão e do Memorial do Convento, para a seguir tecer as suas considerações sobre o referido livro, cujo resumo pode ser lido na respectiva sinopse, nos seguintes termos:
«O Manual de Pintura e Caligrafia é uma obra ímpar no género da literatura autobiográfica entre nós e oferece-nos, no seu conjunto, um semental de ideias e uma carta de rumos da ficção de José Saramago até à data.
Nele se fundem as escritas de uma complexa e rica tradição literária e a experiência de um tempo vivido nos logros do quotidiano e das vicissitudes da história, que será a substância da própria arte.»
Caligrafia de Júlio Pomar
É o segundo livro escrito por José Saramago, 1977, com um estilo ainda a meio caminho daquele que viria a adoptar, sem espaço para a respiração do leitor, como se vê em Levantado do Chão, o primeiro que li e adorei. A partir deste li quase todos de uma assentada. O Manual de Pintura e Caligrafia é tido como autobiográfico. O que sei dizer é que o autor vai discorrendo sobre o presente, o do protagonista, aborda aspectos da pintura do antanho e a sua evolução, e a correlação ou a diferença entre a escrita e a pintura.
Sobre ser autobiográfico ele próprio começa a página 139 deste modo: "A isto que escrevi, chamei (primeiro) exercício de autobiografia, e creio não me ter enganado nem enganar (ter-me enganado e enganar, não será, em rigor, o mesmo?" ou então é a fala do personagem que dá pelo nome de H. e que é o narrador.
Depois de várias elucubrações acaba por chegar à época imediatamente anterior à Revolução dos Cravos, e é na pg. 311 que diz isto: "O regime caiu. Golpe militar, como se esperava. Não sei descrever o dia de hoje: as tropas, os carros de combate, a felicidade, os abraços, as palavras de alegria, o nervosismo, o puro júbilo..."
Mas a parte que mais me surpreendeu é o capítulo onde fala de amor e das suas demonstrações, produzindo um dos mais lindos e apaixonantes textos:
"Meu amor", disseste, e eu o disse, abrindo-te a minha porta toda, e entraste. Abrias muito os olhos ao caminhares para mim, para me veres melhor ou mais de mim, e pousaste o teu saco no chão. E antes que eu te beijasse, disseste, para que o pudesses dizer serena: "Venho ficar contigo esta noite". Não vieste nem cedo nem tarde. Vieste na hora certa, no minuto exacto, no preciso e precioso patamar do tempo em que eu podia esperar-te. Entre os meus pobres quadros, cercados por coisas pintadas e atentas, nos despimos. Tão fresco o teu corpo. Ansiosos, e no entanto sem pressa. E depois, nus, olhámo-nos sem vergonha, porque o paraíso é estar nu e saber. Devagar (só devagar poderia ser, só devagar) aproximámo-nos, e, já perto, colados de repente e trémulos. Apertados um contra o outro...
Continuem a ler - o tema vai da página 303 à 305.
Mas da 39, que começa assim: Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei, até à 302 é uma viagem e tanto.
Júlio Pomar
Camões - 1990
A encerrar a publicação, trago a notícia de 14/11, já sabida de todos, provavelmente, de que o Prémio José Saramago 2022 foi atribuído a Rafael Gallo, escritor brasileiro, pelo livro "Dor Fantasma". Veja mais
aqui.
Continuação de boa semana, amigos.
Abraços.
Olinda
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NOTA:
A BRAÇOS COM O COMPUTADOR AVARIADO. EM PRINCÍPIO, DEMORAREI ALGUM TEMPO A PUBLICAR OS VOSSOS COMENTÁRIOS.
POR OUTRO LADO, OS COMENTÁRIOS DA MINHA AUTORIA, NOS VOSSOS BLOGUES, NÃO VOS CONDUZIRÃO AO "XAILE DE SEDA", PORQUE SÃO FEITOS A PARTIR DO TELEMÓVEL.
PEÇO DESCULPAS.
OLINDA
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"Manual de Pintura e Caligrafia" - o exemplar referenciado no post é uma Edição da
Porto Editora, com 311 páginas.
A imagem é da Editora Caminho para evidenciar a Caligrafia de Júlio Pomar.