Palavras de Fernando Dacosta, em depoimento recolhido por Isabel Faria*, promovendo uma escapadinha imperdível à ilha de São Miguel, com o aliciante ingrediente de o mesmo estar a descrever um passeio dado com Natália Correia:
Natália Correia retratada por Bottelho
A escritora Natália Correia, que me ciceroneava pela sua ilha (São Miguel, Açores) onde eu estava pela primeira vez, impôs-me: "Hoje vai acompanhar-me a um dos poucos sítios habitados por deuses. Só os iniciados são dignos de o comungar". Mais um dos seus exageros, pensei. Depois de a ouvir, no piano do hotel, dizer odes a ninfas de levadas e faunos de bosques, partimos para o éden anunciado. "Prepare-se que o milagre vai dar-se", e o milagre aconteceu.
Fernando Dacosta prossegue, agora referindo-se à rota do referido passeio, a qual poderemos também adoptar, se aproveitarmos a sua sugestão:
Terra Nostra é um dos bosques mais harmoniosos do Mundo, com as suas árvores e flores igualmente únicas no Mundo, e o seu hotel suavíssimo de águas e hortênsias, e o seu cozido nas furnas, em panelas enterradas durante horas, "manjar de eleitos", repetia Natália, a tarde e a noite caindo sem horas nem notícias, só aquele universo existindo e nós nele, com ele.
Sedoso, um chá Gorreana prepara-nos para a última fase da jornada, "a mais misteriosa e cósmica", no sublinhar da autora de 'Sonetos Românticos', que "foi desocultada a humanos": a Lagoa do Fogo. Siderados, emudecidos, ao desfazer de uma curva, ante a sua aparição. Não há nada de semelhante no Universo. Natália substitui os deuses por vir, deusa ela ungida para nos proporcionar a apoteose do ali revelado em madrugada de Lua Cheia. "Quando eu morrer encontram-me aqui", cicia. Tenho voltado lá, àquela hora e àquela lua.
No seu 'Guia da Viagem' com três itens, DaCosta diz num deles:
Desculpem a imodéstia, mas não devem perder o livro de Natália Correia ('O Botequim da Liberdade') a lançar a 13 de Setembro, 90º aniversário da escritora, entretanto falecida. É por ela e pela Terra Nostra, Açores.
Pela minha parte, vou agora ao Banco de Poesia Fernando Pessoa buscar um dos sonetos do 'Sonetos Românticos', para vos oferecer. Apreciem (apreciai) a força das palavras desta Mulher:
A Alma
Votada ao fogo obediente ao perigo
Feroz do amor ser muito e o tempo pouco,
Chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo
E eu não sei se por mim és anjo ou louco
Feroz do amor ser muito e o tempo pouco,
Chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo
E eu não sei se por mim és anjo ou louco
Num beijo infindo queres morrer comigo.
Nesse extremo és sagrado a eu não te toco.
Esquivo-me: o teu sonho mais instigo.
Fujo-te: a tua chama mais provoco
A incêndio do teu sangue me condenasI
E com ciumentas ervas te envenenas
Dizendo às nuvens que só tu me viste.
Bebendo o vinho de amantes mortos queres
Que eu seja a mais prateada das mulheres.
E de ser tão amada eu fico triste.
In Sonetos Românticos
Natália Correia
1923-1993
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*Revista Domingo, 18.08.2013
Imagens:Internet