O que pode um escritor dizer sobre um tema como aquele que nos é proposto: "A Globalização da Tecnologia em Informática"? Ocorreram-me várias coisas enquanto pensava no assunto. No silêncio de uma velha sala, eu preparava esta intervenção quando me aconteceu observar na esquina do tecto uma teia de aranha. Esse pequeno animal concebera e construíra não uma casa onde morar, mas uma armadilha para caçar. Os ingleses chamam web a esse entrelaçar de fios. A tradução do termo é ambígua - pode ser rede, pode ser teia. (...)
Preocupa-me a maneira como estamos cedendo à tentação de olhar a tecnologia como solução global para os nossos múltiplos males. Muitos de nós acreditamos que é a técnica que nos vai salvar da miséria. Essa crença nos deixa vulneráveis a uns tantos vendedores de produtos mágicos. O futuro não seria apenas melhor - como diz o slogan - mas fácil, tão fácil como digitar um teclado. Para sermos como eles, os desenvolvidos, basta preencher uns tantos indicadores nos critérios de consultores e, num ápice, entramos no clube.
Sabemos que não é verdade. Desconheço por que motivo queremos tanto ser como "eles" e não como nós mesmos, seguindo caminhos nossos para destinos que nós próprios inventamos. O que nos separa da riqueza são, sobretudo, questões de natureza não técnica. São atitudes, vontades, uma determinação política e uma postura do domínio da cultura. Digitalizar não nos converte em seres modernos.(...) Caso não venhamos a exercer alguma soberania em actos que, afinal, são de cultura, entramos nesse universo a que chamamos sociedade digital como um mercado menor, um pequeno parceiro da periferia.
Não pretendo fazer a apologia de coisa nenhuma. Afinal, é inevitável que abracemos todo este trilho das inovações digitais. Gostaria apenas de saber que estamos pensando o nosso lugar nesse universo, nós que somos uma nação profundamente marcada pela oralidade. (...) Gostaria de saber se estamos acautelados sobre o quanto iremos perder dessa teia de relações que é o nosso quotidiano do espaço público. (...)
Há uns anos a fronteira entre civilizados e os povos indígenas era a sua integração na cultura europeia. Agora, uma nova fronteira pode estar surgindo - de um lado, os digitalizados e, do outro, os ex-indígenas que passarão de indigentes a indigitalizados. Uma nova proposta de cidadania está em curso. E nós estaremos, de novo, no lado dos subúrbios.
Enfim, a web é uma rede mas também uma teia. Nessa teia a que voluntariamente aderimos seremos a aranha se tivermos estratégia. Seremos a mosca se nos mantivermos pensando com a cabeça dos outros.
Excertos, pgs. 65 a 67: (Palestra na Conferência das Telecomunicações de Moçambique - TDM sobre Globalização da Tecnologia num Mundo Informatizado, Maputo, Abril de 2001). In: Pensatempos, de Mia Couto, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2005.
Na contracapa:
Com estes Pensatempos se publica, pela primeira vez, em Portugal, um livro de Mia Couto que não se localiza no território da ficção literária. Esta colecção de textos reúne, sim, artigos de opinião e intervenções que o escritor realizou nos últimos anos, dentro e fora de Moçambique. São textos dispersos e diversos, abrangendo uma vasta área de preocupações. Em todos eles, porém, está presente não apenas o escritor mas o cidadão envolvido com os problemas do seu tempo. (...)
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