Nação pequena que foi maior do que os deuses em geral o
permitem, Portugal precisa dessa espécie de delírio manso, desse sonho acordado
que, às vezes, se assemelha ao dos videntes (Voyants no sentido de Rimbaud) e,
outras, à pura inconsciência, para estar à altura de si mesmo. Poucos povos
serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente
Quixote e Sancho. Quando se sonharam sonhos maiores do que nós, mesmo a parte
de Sancho que nos enraíza na realidade está sempre pronta a tomar os moinhos
por gigantes. A nossa última aventura quixotesca tirou-nos a venda dos olhos, e
a nossa imagem é hoje mais serena e mais harmoniosa que noutras épocas de
desvairo o pôde ser. Mas não nos muda os sonhos.
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Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra
e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que
estabelecia um resumo:
- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo
Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr.Padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele
todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr.
Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita
persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia... A generosidade, o
desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris,
não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo
um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em
compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará
todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão
grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão
palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acovarda, o
encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até
aquela antigüidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora
aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal,
sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal.
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Jornal das Letras, mas tendo como fonte "Portugal - identidade e imagem" in "Nós e a Europa ou as duas razões", por Eduardo Lourenço (1988)
Jornal de Letras, Artes e Ideias / 20030904.
In:Citador
2º texto
Excerto de "A Ilustre Casa de Ramires". Poderá ler este livro aqui