terça-feira, 8 de julho de 2014

Um pobre xale que tem para mim uma carícia de asa

Julho é um mês especial para mim. É o mês da minha mãe e este é o seu dia. Disse-o no meu Centro do Mundo. Junto a minha saudade ao saudosismo de António Patrício através deste poema, um soneto que fala de um pobre xale que tem pra mim uma carícia de asa. Confesso que nunca vi a minha mãe de xaile, mas deixo-me ir na doçura das palavras do poeta, faço-as minhas, e transformo a sua Relíquia no meu Xaile de Seda, com um abraço do tamanho do mundo. É assim que a recordo, é este o meu tributo. 






Relíquia

Era de minha mãe: é um pobre xale 
que tem pra mim uma carícia de asa. 
Vou-lhe pedir ainda que me fale 
da que ele agasalhou em nossa casa. 


Na sua trama já puída e lassa 
deixo os meus dedos pra senti-la ainda; 
e Ela vem, é Ela que me abraça, 
fala de coisas que a saudade alinda.
 

É a minha mãe mais perto, mais pertinho, 
que eu sinto quando toco o velho xale, 
que guarda um não sei quê do seu carinho.
 

E quando a vida mais me dói, no escuro, 
sinto ao tocá-lo como alguém que embale 
e beije a minha sede de amor puro.
 

António Patrício
























InAntologia Poética

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Meus amigos, estarei ausente por alguns dias.

:)

Imagem:daqui

Espelho do Príncipe - Alberto da Costa e Silva

De volta com Alberto da Costa e Silva, agora com o título do livro pelo qual lhe foi atribuído o Prémio Camões - 2014, tendo também em conta toda a sua obra. Não que eu o tenha já lido, mas baseio-me na análise que dele faz Guilherme d'Oliveira Martins - um admirável livro de história e de memórias:

Ao lermos o “Espelho do Príncipe”, onde o memorialista e o historiador se encontram, somos levados à recordação de um jovem de Sobral, no Ceará, até à ida para o Rio de Janeiro, que relembra episódios onde a natureza, as tradições e a sociedade que evolui se encontram, como no célebre episódio do ritual da morte de uma galinha, onde percebemos que o lado melancólico apela à magia da existência: “a visão da moça a matar a galinha frequentou a sua infância. Ele acordava cedinho e, encolhido na rede, assistia à cena a repetir-se, com o corredor escuro, o quadrado branco da porta e, no patamar de tijolos gastos da escada que descia para o quintal, a moça, a mudar de modinha ou não mais cantando, porém sempre alegre, completa em seu riso, permanentemente ressonhada a degolar a galinha".*





Em relação ao autor refere que é dos mais completos escritores da língua portuguesa contemporânea e, simultaneamente, um dos intelectuais que melhor compreendeu o entrançado complexo da lembrança e de uma língua de várias culturas, cultura de várias línguas, na Europa, América e África. Palavras de Oliveira Martins que também nos mostra aspectos interessantes do percurso pessoal e literário de Alberto da Costa e Silva. Se quiser ler o artigo completo clique aqui.





De outro sítio trago este Soneto:

Soneto

Alto me sonho, mas sou apenas homem:
alguns dias a infância desterrada
em outro ser (e o ar que as mãos agarram
se vai movendo em nós, respiro fraco

com que me gasto, calmo, rês, mudado
no tempo em que me faço e me desfaço,
humilde, cego, em lágrimas sangrado,
passagem de luar, bicho deserto)

que sente, alguma vez, a despenhar-se
o espaço nas coisas, grande, alado,
ou sobre mim, em mim, no ser atado

à vida, à terra, a este adeus cortado
e vê o mundo a reerguer-se, aberto,
no refino da espera e de um abraço.

Alberto da Costa e Silva

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*Citação de Mia Couto, inserido no texto em referência.

domingo, 6 de julho de 2014

Res publica

Coisa publica, bem comum. É mais ou menos por aqui que deveremos procurar o sentido da República, um sistema político cujo ideário se movimenta no conceito de liberdade. Sabemos que a Revolução Francesa, 1789, é o veículo destas ideias que, entre nós, tem a sua visibilidade activa através do Partido Republicano fundado no século XIX e um dos motores do movimento revolucionário que decorreria nos dias 3, 4 e 5 de Outubro de 1910, tendo como desfecho a Implantação da República em Portugal. 

Assim, em 1911 é redigida e aprovada a 1ª Constituição da República, tendo como órgãos: o Presidente da República, sem direito a veto suspensivo sequer; o poder legislativo atribuído a um Congresso com duas câmaras de deputados, também com o direito de nomear e demitir o Governo sendo este, por sua vez, detentor do poder executivo. A somar a estes poderes o judicial, perfazendo os três poderes consagrados por Montesquieu no 'Espírito das Leis'. Esta Constituição estaria em vigor até 1926, altura em que a I República seria abolida por golpe militar, de 28  de Maio.

Este golpe daria lugar à II República. Um aspecto que tem suscitado alguma polémica, quase em surdina, não se sabendo bem como é que a República e os seus fundamentos sobreviveriam, na sua essência, perante o sistema político autoritário que se seguiria: o Estado Novo. O certo é que o Congresso é dissolvido através de decreto seguindo-se um interregno de sete anos, ao fim dos quais surgiria em 1933 a Constituição por que se regeria o País durante mais de quarenta anos. O poder executivo detido pelo Presidente da República é, na verdade, exercido pelo Governo, na pessoa do seu presidente, o Presidente do Conselho de Ministros

Na sequência da Revolução de 25 de Abril 1974 teria lugar em 2 de Abril de 1976 a aprovação de uma nova Constituição, que tem sido alvo de várias revisões, sendo a última de 2005. Nela são corroborados os princípios fundamentais da República, designada, neste caso, República Portuguesa, soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária; um Estado democrático fundado no respeito e garantia das liberdades fundamentais e separação de poderes, os três poderes, independentes uns dos outros, legislativo, executivo, judicial. Como forma de governo estamos perante um regime parlamentar.

Vimos, aqui, algumas das competências do Presidente da República, na actual Constituição. Vimos também que, quando as instituições estão a funcionar em pleno, as suas funções limitam-se, praticamente, ao veto suspensivo e à promulgação das leis. Mas, em situações como a que estamos a atravessar, a figura do Presidente da República eleva-se acima dos partidos e do parlamento se as circunstâncias o exigirem.

Então, ele aparece investido na sua vertente máxima: Representante Supremo da Nação. E isso traz-lhe responsabilidades de grande envergadura. Nesta base, nós, cidadãos, temos o direito de ver e sentir que as suas opiniões e acções não são irrelevantes, isto é, que trazem em si a dinâmica necessária para se traduzirem em resultados práticos e visíveis. O Presidente da República ficará na História pelas decisões, concernentes à hora que passa, tomadas ou não aqui e agora.






Termino este momento de reflexão com o poema de Alexander Search, a Canção de Próspero:

Minha vara partida no fundo enterrada 
          Para sempre vai ficar; 
Mais fundo que nunca o prumo soou, 
          Afundarei meu livro no mar. 
          O encanto de Próspero desapareceu, 
          Arte e magia tudo morreu, 
Mortos e jazendo no fundo do mar. 

Nunca mais ligados a mim 
          Os alegres espíritos do ar, 
O que os chamava vinha daí, 
          E está afundado no cavo mar. 
          Embora não veja da luta um renovo, 
          Desejo contudo esta vida de novo, 
Jazendo p’ra sempre no fundo do mar.

Alexander Search
   (F.Pessoa)


Tenham um óptimo Domingo. :)


Poema: Casa Fernando Pessoa
Imagem: daqui
Se se interessar, veja as Constituições de 1911, 1933 e 1976.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura

Comecei a tentar escrever com 12 anos. Depois aos 14 escrevi mais e a partir daí fui sempre escrevendo. Aí entre os 16 e os 23 escrevi mais do que em todo o resto da minha vida. Tenho imensa coisa por publicar dessa época. Sophia




Paisagem

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.


Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

In Poesia, 1944

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JCV Os poemas mais antigos são...De quando tinha para aí 14 anos. Logo do princípio.

JVC Os primeiros versos incluídos na «Poesia» escreveu-os apenas com 14 anos!?
Sim, alguns, só dois ou três. Às vezes eram poemas muito mais compridos e que eu cortava, cortava, até ficarem três ou quatro versos. Mesmo no «Dia do Mar» há um poema que era muito longo e que ficou reduzido a dois versos. Chama-se «Evohé Bakhos».

MAP Há dois dos seus primeiros poemas intitulados, um, «Homens à beira-mar», outro, «Mulheres à beira-mar». As mulheres «têm o corpo feliz de ser tão seu» e «a boca colada ao horizonte». Os homens «nada trazem consigo» e os horizontes são-lhes longínquos e o seu corpo «é só um nó de frio»...Esses poemas têm a ver com as manhãs da Granja, com as manhãs da praia. E também com um quadro de Picasso. Há um quadro de Picasso chamado «Mulheres à beira-mar». Ninguém dirá que a pintura do Picasso e a poesia de Lorca tenham tido uma enorme influência na minha poesia, sobretudo na época do Coral... E uma das influências do Picasso em mim foi levar-me a deslocar as imagens. Quanto ao mais, eu penso que há uma diferença entre o homem e a mulher, e os feminismos não podem... Para mim o machismo não é considerar que há uma diferença entre o homem e a mulher, o machismo é tentar fazer um negócio dessa diferença...


                      1919-2004


Excertos de entrevistas:
Aqui: Biblioteca Nacional