segunda-feira, 31 de março de 2014
Orações de Fé
Deus voltou-nos as costas,
zangou-se com as falas dos homens.
Mas virá de novo.
Deus voltou-nos as costas.
Nós somos o filho do criador,
não temos medo que nos mate.
Somos os filhos de Deus,
não temos medo que nos mate.
Como pode salvar-se
o povo em tempos de fome?
Eu, em tempos de fome,
serei salvo.
Porque rezei sem cessar,
a palavra do Senhor não será escarnecida,
a sua santa palavra conservar-nos-á a vida.
Denka - Baixo Vale do Nilo
in Oração dos Homens - Uma antologia das tradições espirituais
(apresentação, selecção e tradução de Armando Silva Carvalho
e José Tolentino de Mendonça)
Poemário 2012-Assírio & Alvim
.
domingo, 30 de março de 2014
Gramática do Mundo
Gramática do mundo
coração desperto no silêncio
da noite inteira e longa
murados horizontes espessos
densos, tensos, cerrados
limites sem limite
muros, murros, esforço vão
de penetrar no coração do mundo
gramática do universo
inútil, vazia, sem regras para
a necessária e urgente decifração
do significado das coisas
Floriram em Maio as cerejeiras
verdes os campos no Fevereiro frio
Quem? Como? Reverdecem
florescem todos os anos os campos
Quem? Como? Na linha do horizonte
ponte entre a terra fecunda e o mistério dos seres
Quem? Como? Na linha do horizonte
na brisa da tarde, suave, o Espírito
sustém na vida, no recesso, sem limites
do Seu Seio todas as criaturas do universo
Quem? Como? O Espírito, fogo, vida
recôndito, ardente, palavra, Deus, Pessoa?
Maria de Lourdes Belchior
In: GRAMÁTICA DO MUNDO, pg 69, Biblioteca de Autores Portugueses
Por todo este volume perpassam interrogações. Em quase todos os poemas. Inquietude? Procura de respostas nas entrelinhas de um mundo incongruente, onde, se regras existem, elas não são cumpridas? Ou retórica?
Segundo leitura de Maria Idalina Resina Rodrigues, aqui, são temas e tópicos bíblicos também do agrado do maneirismo e do barroco, mas sempre pessoalizando uma interpelação a Deus quanto ao sentido de um mundo que desejava decifrado sem rejeição.
Trata-se de uma figura realmente interessante, que se afirmou nas Letras e em inúmeras actividades e cargos na área da Cultura.
coração desperto no silêncio
da noite inteira e longa
murados horizontes espessos
densos, tensos, cerrados
limites sem limite
muros, murros, esforço vão
de penetrar no coração do mundo
gramática do universo
inútil, vazia, sem regras para
a necessária e urgente decifração
do significado das coisas
Floriram em Maio as cerejeiras
verdes os campos no Fevereiro frio
Quem? Como? Reverdecem
florescem todos os anos os campos
Quem? Como? Na linha do horizonte
ponte entre a terra fecunda e o mistério dos seres
Quem? Como? Na linha do horizonte
na brisa da tarde, suave, o Espírito
sustém na vida, no recesso, sem limites
do Seu Seio todas as criaturas do universo
Quem? Como? O Espírito, fogo, vida
recôndito, ardente, palavra, Deus, Pessoa?
Maria de Lourdes Belchior
In: GRAMÁTICA DO MUNDO, pg 69, Biblioteca de Autores Portugueses
Por todo este volume perpassam interrogações. Em quase todos os poemas. Inquietude? Procura de respostas nas entrelinhas de um mundo incongruente, onde, se regras existem, elas não são cumpridas? Ou retórica?
Segundo leitura de Maria Idalina Resina Rodrigues, aqui, são temas e tópicos bíblicos também do agrado do maneirismo e do barroco, mas sempre pessoalizando uma interpelação a Deus quanto ao sentido de um mundo que desejava decifrado sem rejeição.
Trata-se de uma figura realmente interessante, que se afirmou nas Letras e em inúmeras actividades e cargos na área da Cultura.
sexta-feira, 28 de março de 2014
4tº GRITO DE MULHER
Trata-se do 4º Festival Internacional de Poesia 'Grito de Mulher' que decorrerá de 29 a 30 do corrente mês. Trouxe esta informação do blog Chez George Sand, e a sua autora, Filipa Vera Jardim, participará do festival. Admiro a sua prosa e é pena não ter nenhum poema seu para aqui publicar, agora.
Mas, fui em busca de mais informações e fiquei a saber, aqui e aqui, que é uma iniciativa que nasceu na República Dominicana e que hoje conta com um número considerável de países participantes, entre eles Portugal. Por cá, o Festival de 2014 é promovido pelo Círculo de Escritores Moçambicanos na Diápora, em Lisboa, tendo como curador o escritor moçambicano Delmar Maia Gonçalves.
quinta-feira, 27 de março de 2014
- Romeiro, Romeiro! quem és tu? - Ninguém.
CENA XIV
Madalena, Jorge e Romeiro
****
Jorge - Sois português?
Romeiro - Como os melhores, espero em Deus.
Jorge - E vindes?...
Romeiro - Do Santo Sepulcro de Jesus Cristo.
Jorge - E visitastes todos os Santos Lugares?
Romeiro - Não os visitei; morei lá vinte anos cumpridos.
Madalena - Santa vida levastes, bom romeiro.
Romeiro - Oxalá! Padeci muita fome, e não a sofri com paciência; deram-me muitos maus tratos, e nem sempre os levei com os olhos n'Aquele que ali tinha padecido tanto por mim... Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se obrou..., e as paixões mundanas, e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne, travavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar com Deus, nem naquela terra que é toda Sua. Oh! não merecia estar onde estive: bem vedes que não soube morrer lá.
....
Madalena - Pois éreis cativo em Jerusalém?
Romeiro - Era: não vos disse que vivi lá vinte anos?
Madalena - Sim, mas...
Romeiro - Mas o juramento que dei foi de que, antes de um ano cumprido, estaria diante de vós e vos diria da parte de quem me mandou...
....
Madalena (Aterrada.)
- E quem vos mandou homem?
Romeiro - Um homem foi, e um honrado homem a quem unicamente devi a liberdade... a ninguém mais. Jurei fazer-lhe a vontade e vim.
Madalena - Como se chama?
Romeiro - O seu nome nem o da sua gente nunca o disse a ninguém no cativeiro.
Madalena - Mas, enfim, dizei vós...
Romeiro - As sua palavras, trago-as escritas no coração com as lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que me correram por estas faces. Ninguém o consolava senão eu... e Deus! Vede se me esqueceriam as suas palavras.
Jorge - Homem, acabai!
Romeiro - Agora acabo: sofrei, que ele também sofreu muito. Aqui estão as suas palavras: "Ide a D. Madalena de Vilhena e dizei-lhe que um homem que muito bem lhe quis está vivo por seu mal e daqui não pode sair nem mandar-lhe novas suas de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Madalena (Na maior ansiedade.)
- Deus tenha misericórdia de mim! E esse homem... esse homem... Jesus! esse homem era... esse homem tinha sido...levaram-no aí de onde?...De África?
Romeiro - Levaram.
Madalena - Cativo?
Romeiro - Sim.
Madalena - Português?... cativo da batalha de...
Romeiro - Alcácer-Quibir.
Madalena (Espavorida)
- Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra debaixo dos meus pés?... Que não caem estas paredes, que me não sepultam já aqui?...
....
CENA XV
Jorge e o Romeiro
****
Jorge - Romeiro, romeiro! quem és tu?!
Romeiro - (Apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal.)
- Ninguém.
****
É o regresso de D. João de Portugal, do reino dos mortos quase. Percebe-se o terror, o pânico de D. Madalena de Vilhena que já se encontrava casada e mãe de uma filha, Maria. Uma tragédia.
Hoje, Dia Mundial do Teatro, trago ao Xaile Almeida Garrett, evocando a sua obra "Frei Luís de Sousa", através de excertos das Cenas XIV e XV, Acto II (pag. 117 a 123).Ed. Areal Editores.
E quem se interessar por estas coisas poderá deslocar-se ao antigo Picadeiro Real, na Rua da Escola Politécnica, que vai receber ou já recebeu, hoje, a exposição "Revista ao Parque", que reúne num só espaço os quatro teatros do Parque Mayer: Parque Mayer, Teatro Maria Vitória, Variedades, Capitólio. (Cenários, adereços, fatos de revista, programas e curiosidades).
Imagem: daqui
Ver: O Sebastianismo em Frei Luís de Sousa
quarta-feira, 26 de março de 2014
Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agoraPara te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.
A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão
Daniel Faria
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão
Daniel Faria
O mundo de Daniel Faria é o mundo do símbolo,
um mundo em que existe o tudo e onde tudo é lançado conjuntamente, um
mundo onde há um centro para o qual convergem todos os sentidos: «Desejo o
útero de tudo» (273) (*), escreve o Poeta, colocando-se na posição daquele
caminha para esse centro. Nesse mundo, onde o sentido é concebido como
absoluto, a escrita nasce da atenção e da escuta, que são atitudes daquele que
está em silêncio, não daquele que fala ou escreve. Os poemas de Daniel Faria
apontam muitas vezes para um tempo e uma experiência que lhes seriam
anteriores: antes do poema, haveria esse silêncio meditativo e a escuta que ele
propicia, haveria a condição daquele que ouve, ou vê, mas não fala; só depois
viria o poema, que, ao resgatar do silêncio o saber daquele que ouviu, ou mais
precisamente daquele que viu uma linguagem que excedia a palavra,
resolveria a incompatibilidade entre a escuta e a fala. Por consequência, nos
poemas, nós encontramos, então, as «Palavras do homem no lugar penetrante / De
quem ouve. Palavras / De quem cai em êxtase, e se ergue pelo tato // [...]
Palavras de quem vê e derrama / Os olhos e os cântaros sobre si» (203).
Continuar a ler texto: aqui
*****
Poema trazido do Bibliotecário de Babel
terça-feira, 25 de março de 2014
Uma cidade...pode ser apenas um rio, uma torre, uma rua com varandas de sal e gerânios de espuma... pode ser um coração, um punho
Uma Cidade
Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.
Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso
numa noite
de Junho.
Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.
Albano Martins
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.
Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso
numa noite
de Junho.
Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.
Albano Martins
in "Castália e Outros Poemas”
imagem: daqui
domingo, 23 de março de 2014
Música Calada
Dizias que nos sobram as palavras:
e era o lugar perfeito para as coisas
esse escuro vazio no teu olhar.
E demorava a dura paciência,
fruto do frio nas nossas mãos vazias
que mais coisas não tinham para dar.
Dizia então a dor o nosso gesto
e durava nas coisas mais antigas
a solidão sem rasto que há no mar.
Poesia Reunida (1985-1999)
imagem: daqui
sexta-feira, 21 de março de 2014
Quem é senhor de si cultiva a medida
A SI*
Inflexível serás. Darás sem perder nada.
Não cederás à morte. Põe-te acima da inveja.
Deleita-te contigo, e não penses que seja
Um mal se aqui e agora sorte te for negada.
O que te aflige e encanta a ti te foi destinado.
Aceita esse teu fado. Não há que arrepender.
Antes que alguém to mande, faz o que há a fazer.
Aquilo que tu esperas não te há-de ser negado.
Lamentos e louvores? Para quê? Sorte e azares
Cada um é que os faz. Olha as coisas da vida:
Tudo isso está em ti, deixa essa vã corrida,
Retoma a consciência antes de avançares.
Quem é senhor de si cultiva a medida,
Nada há no vasto mundo sobre que não decida.
Paul Fleming
(1609-1640)
****
* Há um título deste autor denominado, 'A Si Próprio'. Este poema tal como está no Poemário que abaixo refiro, denomina-se 'A Si'. Agora, a minha dúvida: estará o título incompleto?
Poema in: o Cardo e a Rosa(poesia do barroco alemão)-selecção, tradução e prefácio de João Barrento - Poemário- Assírio & Alvim - 2012Imagem: Homem vitruviano - Desenho de Leonardo Da Vinci 1490
Retirada daqui
Poesia Haiku: Um caminho pessoal de despojamento e de procura do essencial (10)
1
Canais de sofrimento:
percorre-os devagar
o barco da memória.
2
As copas dos pinheiros
outro mar,
outra respiração.
3
Amendoeiras em flor,
espuma do mar
no novo corpo da deusa.
4
Rocha vermelha:
um coração a pique
sobre o mar.
5
Anoitecer de Setembro:
um casal abraçado
na varanda.
6
Horizonte feliz:
céu e mar
confundidos.
7
A trouxa do viajante:
roupa do corpo e
da alma.
8
Agarrar a Lua
e atirá-la
ao mar?
9
A estrela,
no meio das nuvens,
juga que está sozinha.
10
Águas bravas,
rochedos,
covas onde se encalha.
11
Palavras-tubarão
arreganhando
os dentes.
12
O amor é uma travessia?
o amor
é um afundamento.
Yvette Centeno
in:
DE FRENTE PARA O MAR, pgs. 138 a 149, Colectânea integrada por dez poetas portugueses e organizada por David Rodrigues.
Viajantes deste projecto:
Albano Martins, Casimiro de Brito, David Rodrigues, Dinis Lapa, Lécio Ferreira, Leonilda Alfarrobinha, Liberto Cruz, Lucília Saraiva, Luís Domingos e Yvette Centeno. pg. 9
Uma viagem efectuada em 2010 e que teve por base o 150º aniversário do Tratado de Paz, Amizade entre Portugal e o Japão. Para comemorar a Paz e Amizade nada melhor que esta poesia, mansa, simples, densa e complexa tal como são a Amizade e a Paz. Diz-nos David Rodrigues.
NOTA: No citado livro os poemas não vêm numerados. Cada poema ocupa uma página.
Imagem: daqui
quinta-feira, 20 de março de 2014
Poesia Haiku: Um caminho pessoal de despojamento e de procura do essencial (9)
1
A ponta da asa
toca de leve na água:
Para sempre as ondas.
2
Na maré enchente
Um tronco hesitante
Rio? Talvez mar?
3
Tarde de Inverno:
ainda voam as gaivotas
e os guarda-chuvas.
4
Clarão de Lua
sobre a vaga encrespada:
Espuma de prata.
5
tempo de calma:
só um delgado círculo
entre céu e mar.
6
Em Janeiro, a fúria
do mar vem do ciume
das magnólias.
7
Na luz do farol
uma gaivota cintila.
Ou será um anjo?
8
Passos de gaivota
na areia encharcada.
Carta para quem?
9
...aprender a ler
a caligrafia das algas
na maré vazia...
10
O caranguejo
só conhece a sombra
dos barcos que voam.
11
No fundo do mar,
passam devagar as sombras
das aves, dos barcos...
12
Lavarei os olhos
para lá do horizonte.
O mar. A noite.
Luís Ruivo Domingos
in:
DE FRENTE PARA O MAR, pgs. 124 a 135, Colectânea integrada por dez poetas portugueses e organizada por David Rodrigues.
Sobre o autor, lê-se na pg. 136:
Luís Ruivo Domingos, 57, professor de Matemática e aprendiz de marinheiro. De um e outro ofício a necessidade de concisão, rigor, silêncio. Nas letras, traduções várias publicadas e poemas nas gavetas. Como mestres, Borges, Andrade e Sena, senhores da música e da palavra exacta.
Guiando-me pelo prefácio de David Rodrigues, dele inscrevo aqui mais esta informação: Citaria as palavras de Gonçalo M. Tavares no prefácio do livro "Estações Sentidas: 111 Haiku" descreveu a arte do haiku da seguinte forma:"Iluminar, concentrar, tornar mais forte cada palavra; exigir atenção, impor outro ritmo ao leitor; obrigá-lo a desviar os olhos das direcções comuns. Em suma dar a conhecer o prazer corporal da desaceleração, da lentidão lúcida, eis a arte do Haiku..."
NOTA: No citado livro os poemas não vêm numerados. Cada poema ocupa uma página.
Imagem retirada daqui
Poesia Haiku: Um caminho pessoal de despojamento e de procura do essencial (8)
1
a minha casa
perdida no oceano -
lençol branco contra o céu
2
no fundo do mar -
uma concha adormece
sem ruído
3
na cumieira do telhado -
uma gaivota
atenta ao temporal
4
cai a noite -
no fundo do oceano,
o peixe dorme?
5
na linha do horizonte -
penduro cuecas e meias,
penso na vida
6
até as palmeiras
baixam os braços
após o noticiário
7
à beira-mar -
a vociferação matinal
das gaivotas
8
tempero as batatas -
penso no sal,
como cai no mar?
9
sentada como um Buda -
apenas o ruído das ondas,
percute o meu crânio
10
no que resta da praia -
inerte,
um papagaio sintético
11
no alto da falésia -
as avencas
querem ser aloés?
12
longe do mar,
falta-me o mar
perto do mar,
faltas-me tu
Lucília Saraiva
in:
DE FRENTE PARA O MAR, pgs. 110 a 121, Colectânea integrada por dez poetas portugueses e organizada por David Rodrigues.
Sobre a autora, podemos ler:
Lucília Saraiva (1966), natural da Guarda, viveu em França, onde estudou. Reside actualmente em Lisboa. Da sua paixão pela cultura e literatura nipónicas nasceu o gosto pela escrita de Haikai. pg 122
Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel
A Primavera chega hoje às 16h57. É o que nos dizem aqui e, segundo parece, vai ser assim, no dia 20 de Março e não 21, até 2050. A tradição já não é o que era, está visto. Também a questão do equinócio da Primavera, com dias iguais às noites, não é bem assim. A ocasião em que isso se verificou foi há dois dias. E o especialista do Observatório Astronómico de Lisboa explica-nos porquê: No domingo, o Sol nasceu às 6h46 e pôs-se às 18h45, e a noite para segunda-feira terminou às 6h44. Contra estas circunstâncias nada há a fazer, mas o certo é que hoje o dia nasceu um tanto cinzento. Quem sabe se amanhã ela, a Primavera, não aparece esplendorosa, fazendo jus à cultura popular.
E como neste Xaile tudo é pretexto para mais um poema e também porque todo o tempo é Tempo de Poesia, leiamos, a propósito, António Gedeão:
Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.
António Gedeão
(1906-1997)
Interessante este homem. De seu nome, Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, cientista e pedagogo e, acima tudo, para nós, poeta. E da Pedra Filosofal, quem não se lembra?
Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos duma criança
*****
E quem não sonha é um triste. Que o sonho faça, sempre, parte das nossas vidas. Hoje decorre a 5ª edição da Happy Conference. Uma visão utópica? Há quem diga que a utopia é que nos faz avançar.
****
Tempo de poesia - retirado de aqui
Imgem: Internet
Poesia Haiku: Um caminho pessoal de despojamento e de procura do essencial (7)
1
Onda a onda
O mar
Se anuncia.
2
Cada onda do mar
É um oceano
De mensagens.
3
Persistente
O mar desdobra
Repetidos lençóis
4
Vista do mar
A terra
Não tem equilíbrio.
5
Por vezes o silêncio
Do mar
Prepara tempestades.
6
Pelo mar
Fomos.
Pelo mar somos.
7
Durante a noite
O mar
Espelha solidões.
8
Sereno ou medonho
O mar é o amante
Infatigável da areia.
9
O mar era imenso.
Grande era a terra.
Faltava o navegador.
10
Frente ao mar
Que voz é esta
Que nos seduz?
11
No cimo da onda
A gaivota espera
A dádiva do mar.*
12
Águas do mar
Que olhos te seguem?
Que segredos segredas?*
Liberto Cruz
* Estes asteriscos aparecem na publicação, assim como estão, e referenciam: 'Publicados em Sequências'.
DE FRENTE PARA O MAR, pgs.96 a 107, Colectânea integrada por dez poetas portugueses e organizada por David Rodrigues.
in:
DE FRENTE PARA O MAR, pgs.96 a 107, Colectânea integrada por dez poetas portugueses e organizada por David Rodrigues.
Voltando ao Prefácio, continuo a registar aqui as palavras de David Rodrigues:
Dez poetas portugueses contemporâneos aceitaram contribuir para que este livro que é, de certa forma, uma celebração da ponte que ligou Portugal e o Japão no século XVI: o Mar. "De Frente para o Mar" (e com a Europa nas costas) foi certamente a postura de sonho, de partida e de viagem que levou os navegadores portugueses a globalizar a geografia e as relações entre civilizações e pessoas. De frente, na fronteira do Mar. Hoje são diferentes as viagens e os seus meios; mas o sonho do outro e da distância permanece incólume como tão claramente se descortina nos haiku escritos neste livro. Pg.8
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