terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Quinzena do Amor



Todos os anos temos aqui, no Xaile de Seda, esta Celebração do Amor. Os que me seguem sabem das várias formas como isso acontece, falando-se não só do amor romântico como também do amor nas suas várias facetas. Para isso, temos recorrido à poesia e à prosa por pesquisa própria ou pedindo aos leitores o seu contributo com autores da sua preferência ou facultando textos da sua autoria.

No ano passado aconteceu uma apoteose, todos os leitores solicitados aderiram, e a nossa Quinzena saiu das margens e inaugurou-se uma nova forma de contar ou deixámos de saber contar e ela viu-se com trinta e dois dias, e ainda com um remanescente de quatro poemas de autores que quiseram enviar dois textos.* O contributo de todos foi de uma beleza extraordinária e aqui se fez a Festa da Poesia. A época de caça ao amor, no dizer bem-humorado de pessoa amiga, foi um sucesso.

Em 2024 voltamos a ser disciplinados e a cumprir as regras do calendário, mas prometendo reincidir daqui a três anos data dos 15 anos deste blog. Mas isso não quer dizer que não possamos voltar atrás nesta decisão que apenas se prende, neste momento, com circunstâncias alheias à minha vontade como, por exemplo: o equipamento tecnológico nem sempre me assiste.

Começaremos a Quinzena no próximo dia 01 de Fevereiro a qual terá o seu terminus a 15 do mesmo mês, como mandam as boas contas. Privilegiaremos desta vez autores das nossas pesquisas.

Para já, temos aqui Manuel Maria Barbosa l'Hedois du Bocage a dar início, ou melhor, a anunciar este acontecimento de que o Xaile de Seda muito se orgulha:


Nascemos para amar

Nascemos para amar; a Humanidade
Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.
Tu és doce atractivo, ó Formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão na alma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

BOCAGE

in 'Sonetos'




DECLARACION DE AMOR


ABRAÇOS, MEUS AMIGOS.
OLINDA



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Soneto: citador

*o remanescente foi sendo publicado
nos dias que se seguiram, com conhecimento
dos autores.

Imagem: pixabay


domingo, 28 de janeiro de 2024

De Galveias para o Mundo



Ele é José Luís Peixoto, nascido em Galveias,  a 4 de Setembro de 1974. Narrador, poeta e dramaturgo, tem no seu palmarés muitas obras, algumas traduzidas e publicadas em vinte e seis idiomas. Aos 27 anos foi o mais jovem vencedor de sempre do Prémio Literário José Saramago.

De referir que:

"Morreste-me" foi escolhido como um dos 10 livros da primeira década do século XXI pela revista Visão. Nas mesmas condições, "Nenhum Olhar" foi escolhido como um dos livros da década pelo jornal Expresso. Este último título foi incluído na lista do Financial Times dos melhores romances publicados em Inglaterra em 2007, tendo também sido incluído no programa Discover Great New Writers das livrarias americanas Barnes & Noble.

Este autor tem colaborado com algumas revistas e jornais tais como Jornal de Letras, as revistas Visão, GQ, Time Out, Notícias Magazine, UP, entre outras, escrevendo crónicas deliciosas e dando a conhecer países e pessoas, com os seus usos e costumes. 

Já o trouxe ao Xaile de Seda algumas vezes com os seus poemas e a sua prosa, inclusivamente, numa Crónica sobre a Finlândia.


***

Transcrevo, para o nosso deleite, este pequeno texto, extraído de "Abraço":


Impossível é não viver

Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver. Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme, longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um único passo do seu/nosso caminho.

Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal. O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão-de receber-nos, serão pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a milímetro. Antes de estar à vista de toda a gente, prática e concreta, era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança. Esta vida pertence-nos.
(...)

In "Abraço" - José Luís Peixoto

(Excerto)


***


No domingo passado, 21/01/24, a Junta de Freguesia de Galveias homenageou-o inaugurando um Centro de Interpretação da sua Vida e Obra. 





Promover Galveias, freguesia do município de Ponte de Sor, através da Obra de José Luís Peixoto é uma ideia maravilhosa. Aliás, Galveias foi vila e sede de Concelho entre 1538 e início do século XIX.

Na inauguração do Centro de Interpretação foi dito:

Este Centro de Interpretação será com certeza uma mais valia para o nosso território, que se quer cada vez mais dinâmico, mais atrativo e que conta agora, de forma ainda mais expressiva, com José Luís Peixoto como embaixador. aqui


***


Abraços, amigos.
Olinda



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Texto:citador
Veja, aqui, no Xaile de Seda

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Oito individualidades memoráveis (8)

Um homem não morre quando deixa de viver,
morre quando deixa de pensar.
António Sérgio






Como devem ser na escola as lições de linguagem

Um livro, para a escola velha, é um frasquinho cheio de «ciência»; um livro, para o laboratório, é como um estojo com instrumentos; por isso ele é decorado dentro da aula, e por isso no laboratório ele é usado.

As ideias, para o cientista, são ferramentas e são bússolas; para os estudantes, são ainda como panóplias de museu...

Precisa a escola de compreender: 1.º, que as ideias são instrumentos (instrumentos de experiência); 2.º, que a experiência não é a armazenagem dos golpes recebidos do exterior, mas a nossa ofensiva sobre as coisas, e os resultados que de aí provêm para a nossa futura actividade. Cumpre que nos objectos de uso humano, que em toda ideia de ciência humana, se veja o resultado de um trabalho, de muitos e pacientes esforços do homem.

Que é a linguagem, na realidade? Um instrumento de pensar e agir, uma moeda de uso diário no intercâmbio social; mas, nos programas, a linguagem não é um instrumento de intercâmbio, é uma peça de numismática: observa-se e revolve-se, põe-se a pino e põe-se chata e recoloca-se na vitrina de Luís Camões ou de António Vieira, não se estuda pelo seu uso, como instrumento de bem pensar... A ciência, a linguagem, a ginástica, o desenho, na escola do futuro, serão considerados como instrumentos de uma actividade social; e subordinados, como tais, aos fins superiores da acção humana – à humanização de todos os homens.

Subordinar o ensino — e todo o ensino — aos fins superiores da acção humana, é subordinar a escola inteira à actividade da Razão. Para que se exerça essa actividade há-de ensinar-se cada ciência segundo processos investigadores (onde as ideias são sugeridas pelos problemas a resolver) e definir no estudo da linguagem o objecto do seu ensino como o do «falar correctamente», mas não só, como até aqui, no ponto de vista da boa gramática, senão que também, e em primeiro lugar, no da boa observação e da boa lógica, procurando exprimir pelas palavras próprias uma realidade bem observada, ou um pensamento bem conduzido — e para isso, como é óbvio, abrir largas e luminosas as alamedas da intelecção.

Antes da correcção gramatical da frase, deve considerar-se a do pensamento que com essa frase se quis exprimir. As lições de língua serão de lógica, de observação, de estética — e de probidade.'





António Sérgio de Sousa Júnior ( 3/09/1883-24/01/1969) foi um pedagogo, jornalista, sociólogo, historiador e político português. 




Defendeu que é no indivíduo, em cada indivíduo, que a unidade da consciência se manifesta: «caminhe-se para a liberdade através da liberdade»! Neste contexto formulou a sua doutrina sobre o socialismo cooperativista, surgindo-lhe o cooperativismo como a forma de organização social mais consentânea com a sua concepção do homem como ser activo e criador. Com a proclamação da República (1910/10/05), passou a trabalhar a favor da reforma da educação no nosso país. 

Assim, foi um dos fundadores do movimento denominado Renascença Portuguesa, fundamentalmente voltado para as questões educacionais. Criou e dirigiu também várias revistas e jornais que tratavam do assunto, como a revista Pela Grei (1918). Titular da pasta de Instrução Pública (1923), no ministério reformista de Álvaro de Castro. Com a ascensão de Salazar ao poder, foi obrigado a exilar-se em Paris., depois em Madrid, de onde regressou a Portugal depois de ter sido abrangido por uma amnistia.

Dos seus livros mais importantes destacam-se: Educação cívica (1915) e os oito volumes de Ensaios (1920-1958).aqui

É um dos herdeiros da chamada Geração de 70, sendo evidente a influência que Antero de Quental exerceu sobre Sérgio, como homem e pensador. *

Com efeito inspira-se em Antero de Quental, Alexandre Herculano e Oliveira Martins para além de pensadores cosmopolitas de pendor voluntarista seus contemporâneos, defensores da democracia e de ideais socialistas, entre os quais se contam John Dewey, Guglielmo Ferrero, Ramsay MacDonald e Georg Kerschensteiner. aqui


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É como «seareiro» que António Sérgio entra para o governo liderado por Álvaro de Castro como ministro da Instrução Pública.

Sérgio alia-se a Jaime Cortesão, Raul Proença, Aquilino Ribeiro, Sarmento Pimentel, João Soares e outros, para intervir na restauração das instituições democráticas vigentes até à data do golpe militar. Participa na primeira revolução constitucionalista contra o regime, liderada pelo general Sousa Dias e outros, que estalou em 3 de Fevereiro de 1927. O movimento falhou. Sousa Dias e os promotores da revolução foram deportados para África, e Sérgio, juntamente com outros intelectuais e políticos, teve de exilar-se em França.aqui

Aliás, como é referido acima.

Em "Textos Políticos" a que tive acesso, faz uma interessante exortação aos jovens seareiros:

Aos jovens "Seareiros" de Coimbra, sobre a maneira de lidar com os inimigos da luz e da razão - 1926
[...] Em política, que deseja a Seara? A democracia. Mas a base da democracia é a" virtude", como já afirmava Montesquieu; isto é, a moralidade cívica de todos nós. Antes de ser um regime político, é a democracia uma atitude moral, e a maneira de fazer a democracia não é directamente pela política, mas indirectamente pelos costumes. A causa da imoralidade dos homens públicos é a imoralidade cívica dos cidadãos, e povo algum entre os mal governados se pode queixar dos seus governantes, pois são os povos, afinal de contas, quem os selecciona e quem os faz. Fundar a democracia é levar a substituir progressivamente a autoridade externa de certos homens (ou de um certo homem) sobre os outros pela autoridade "interna" em cada um de nós, isto é, pelo império do racional de cada alma cívica sobre os seus próprios interesses e paixões. Por outras palavras:a democracia corresponde, nos sistemas políticos, à ideia moral do autodomínio.. [...]
Pg 64
***



As Rimas são o único volume de poesia de António Sérgio (1883-1969), tendo sido editadas em 1908, por iniciativa de um amigo. Os poemas aí contidos terão sido escritos maioritariamente no início da primeira década do século, estando biograficamente ligados ao período em que Sérgio conhece aquela que virá a ser sua esposa e companheira intelectual - Luísa Estefânea Gershey da Silva (1879-1960). **

Não me foi possível arranjar um exemplar desse livro. Contudo logo que o consiga voltarei com um dos seus poemas.

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Embora haja muito para dizer sobre este grande autor, tenho de terminar, não é verdade? Mas antes, relembro que António Sérgio era um defensor acérrimo do Cooperativismo.

Esta casa, a casa de António Sérgio, construída em 1925, alterada em 1939 por iniciativa do próprio, recebeu  os serviços e actividades de António Sérgio para o Sector Cooperativo - Inscoop. Este edifício está classificado como Imóvel de Interesse Público.

Possui uma Biblioteca especializada em Economia Social e é de acesso público. Integra ainda um fundo composto pela biblioteca pessoal de António Sérgio (BAS) e por parte do seu espólio (originais e manuscritos, recortes de jornais, correspondência e fotografias). daqui




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* "António Sérgio e a Cultura em Portugal"
** aqui
Veja aqui "O espírito cívico e pedagogo de António Sérgio"


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Série

Oito individualidades memoráveis (7) - Miguel Torga
Oito individualidades memoráveis (6) - Fernando Namora

domingo, 21 de janeiro de 2024

João Carlos Silva, o cozinhador de utopias




É assim que me lembro dele, em 2011, altura em que comecei o blog e foi com esta imagem que fiz um post falando da sua arte de cozinhar, do seu encanto, das paisagens de São Tomé, onde fazia os pratos no programa de culinária que a RTP1 transmitia. 

Culto, dinâmico, carismático, não deixava de fazer uma referência poética ou filosófica no Sal na Língua. Eis o escrevi nessa altura, quando ainda tinha os bons propósitos de fazer posts pequenos:

“Na roça com os tachos”, João Carlos Silva deliciou-nos em tempos com a sua arte de comunicar e tanto nos fazia saborear as palavras, lendo-nos poemas, como criava em nós a vontade de participar das paisagens idílicas de São Tomé e Príncipe. Penso que os pratos que ele preparava eram apenas acessórios.

Ei-lo de novo, agora no programa “Sal na Língua”,RTP, com o objectivo de percorrer os 8 países da CPLP (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste), dando a conhecer usos e costumes de cada um e, em especial, a gastronomia.
Os caminhos da Lusofonia são infinitos.



Apresentou nos dias 15 e 16 de julho, de 2023, showcookings às 18h e 21h, 
do evento "Há Prova", no Centro Histórico de Paço de Arcos.


Reencontrei-o não há muito tempo, numa das minhas pesquisas e quis saber dele.Mantém-se a ideia que tenho da sua personalidade, que a gastronomia é apenas uma das suas artes, somando o de "um dinamizador cultural em São Tomé e Príncipe, querendo que o país seja "um entreposto de cultura" porque "a arte pode levar São Tomé e Príncipe para o mundo e trazer o mundo para São Tomé. Veja mais: aqui

Amanhã, o Xaile de Seda faz 13 anos e escolhi festejá-los convosco recordando uma figura que fez parte das minhas primeiras publicações. A ementa para esta festa, está bem de ver, é precisamente a que consta do video acima, pela mão do Chef João Carlos Silva.

Mas aproveito, já que estou com a mão na massa, e trago um poema de Olinda Beja, autora natural de São Tomé e Príncipe:




RAÍZES

Há rumores de mil cores enfeitando o espaço
de gorjeios infantis
transportando aquele abraço de anãs juvenis
árias que perduram na mensagem
da nossa voz e da nossa imagem.

São rumores de tambores
repercutindo a esperança de olhares inquietos
toada de lembranças
liturgia de afectos.

São rumores maternais
presos à terra que nos diz
que só o maior dos vendavais
arranca da árvore a raiz.


***



Abraços, meus amigos.
Tudo de bom vos desejo.

Olinda



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Numa biografia de João Carlos Silva li que ele:
Nasceu em Angolares, S. Tomé em 1956. Estudou em S. Tomé, Angola e Portugal, onde frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra. Exerceu jornalismo, tendo, como artista plástico, iniciado as suas actividades em Lisboa. Fundou O CIAC e o Espaço Teia d'Arte (artes plásticas, teatro, dança, debates, oficina de letras, ateliers infantis, cine-clube) em S.Tomé. Participou em várias exposições colectivas de artes plásticas em S. Tomé e no estrangeiro. Dirige o Projecto Integrado de Desenvolvimento da Roça S. João (agricultura, pecuária, educação não-formal, ambiente, património, cultura e turismo) e é o coordenador da Bienal de Arte e Cultura de S. Tomé e Príncipe.

-João Carlos Silva, o "Chef" que cozinha utopias em São Tomé e Príncipe (leia esta entrevista, aqui)

-Imagem: Flor - daqui, Blog "Viagens a São Tomé e Príncipe"

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Oito individualidades memoráveis (7)




Nascer todas as manhãs

Apesar da idade não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.


Miguel Torga
in "Diário (1982)"







Adolfo Correia da Rocha, conhecido pelo pseudónimo Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 12 de agosto de 1907 — Santo António dos Olivais, Coimbra, 17 de janeiro de 1995), foi um dos mais influentes poetas e escritores 
portugueses do século XX...




MIGUEL TORGA, A FORÇA DA TERRA




E ainda, permitam-me inserir aqui este excerto da análise sobre Miguel Torga, "Ensaios de Literatura e Filosofia", identificada mais abaixo:

... o que verdadeiramente anima o poeta é que a cada novo homem é dada a possibilidade de vislumbrar a perenidade no ciclo das plantas e das estações do ano:

“Nada no mundo se repete.
Nenhuma hora é igual à que se passou.
Cada fruto que vem cria e promete
uma doçura que ninguém provou.

Mas a vida deseja
em cada recomeço o mesmo fim.
E a borboleta, mal desperta, adeja
pelas ruas floridas do jardim.

Homem novo que vens, olha a beleza!
Olha a graça que o teu instinto pede.
Tira da natureza
o luxo eterno que ela te concede.

(Libertação, 40-1).


Ideia presente também no Diário I:


“Às vezes ponho-me a pensar se a aceitação calma da morte no homem da terra não será o resultado desta íntima comunhão com o ritmo da natureza. No inverno, árvores despidas; na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno seguinte, árvores despidas; na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno a seguir..”


In: Miguel Torga - Ensaios de Filosofia e LIteratura - aqui


***



Boa quarta-feira, amigos.
Abraços
Olinda



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Alguns Posts onde aparece o nome de Miguel Torga, no Xaile de Seda
Imagem planta: daqui
imagem chá- pixabay

Série

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Dia de Limpeza






Hoje acordei cedo, determinada:

-Vou fazer a vida de lavado!

Abri a janela, arejei a cama, fechei as mágoas no
roupeiro e sacudi os pesadelos.

Dobrei com cuidado a tristeza ao lado das ilusões,
das desilusões e das agruras da vida, e arrumei-as na
última gaveta da cómoda.

Fui buscar os sonhos que ainda me restam, e guardei-os
na primeira gaveta, para estarem mais à mão no caso 
de ainda se realizarem.

Na gaveta do meio, juntei um saquinho de alfazema 
às saudades que me chegaram com o vazio deixado
por alguém muito querido.

Faltava guardar a esperança que tinha perdido algures
entre o sonho e a realidade, mas, de repente, quando
já não a esperava, ela apareceu-me.
Dobrei-a com cuidado na gaveta de cima junto aos
sonhos.

Juntei as promessas todas, misturei-as com as 
mentiras e as injustiças, meti tudo no mesmo saco, e
fora, deitei-me no lixo!!!

No final, cansada, mas satisfeita, fiz as contas à vida,
do que já passou, e do resto que ainda me falta,
bem...respirei fundo.

Esta noite, bem mereço, vou dormir de alma
perfumada com cheirinho de alfazema.

(Fernanda)







Dia de Limpeza


Mulher corajosa, não teme mudanças,

prepara seus pertences, faz alianças

novas. Tem paciência e resiliência,

ganha alma nova, ela se renova.


Não tem temor, em Deus confia,

Ele nos prepara para nova alegria.

Arruma nosso eu interior com Amor,

ajeita nossas gavetas desarrumadas.


(Rosélia)



***

pgs.71/73
Fernanda Maria e Rosélia Bezerra
2023

***


Fernanda Maria (Fê) e Rosélia Bezerra fizeram-nos a surpresa de publicar mais um livro de Poemas, no final do ano de 2023. Também foi um grande prazer verificar a sintonia destas duas amigas que, como sabemos, apenas se conhecem virtualmente, estando geograficamente separadas pelo Oceano Atlântico: de um lado, Portugal e do outro, o Brasil. 

As distâncias não contam e as boas ideias voam, assim o queiramos. E estas duas poetisas dão-nos o exemplo de como se faz. No prefácio temos a grande poetisa Gracita Fraga, que sabe cinzelar as palavras e 
dar-lhes vida.

Diz a dado passo do prefácio:

"Cada poema desta obra é ímpar e peculiar. Possuem identidade própria inerente ao eu interior de cada autora. É a revelação metafórica dos sentires de cada poetisa."

Desejo-vos muito sucesso, 
caríssimas Fê e Rosélia.




Madredeus




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Publicação de conformidade com o livro.
Os dois poemas têm o mesmo título:
"Dia de limpeza"
Imagens: Pixabay

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Às vezes medito

 


49 29-4-1928


Às vezes medito,

Às vezes medito, e medito mais fundo, e ainda mais fundo

E todo o mistério das coisas aparece-me com um óleo à

     superfície,

E todo o universo é um mar de caras de olhos abertos para

     mim.

Cada coisa - um candeeiro da esquina, uma pedra, uma árvore,

É um olho que me fita de um abismo incompreensível,

E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos

     deuses.

(excerto)


ÁLVARO DE CAMPOS



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In: Fernando Pessoa

Obra completa de Álvaro de Campos

Pg. 225

sábado, 6 de janeiro de 2024

O Quarto Rei Mago

Para a amiga Elvira, que foi incansável,  
 contando-nos belas histórias durante 
toda a quadra natalícia. 
Neste momento está a passar por 
grande provação.






Uma história de Henry Van Dyke

Vocês sabem a história dos três reis magos que viajaram do Oriente para Belém para adorar a Jesus e lhe ofertar as dádivas de ouro, incenso e mirra.

Vou-lhes contar a história do quarto rei mago que também viu a estrela e resolveu segui-la e do seu grande desejo de adorar o Rei Menino e lhe oferecer as suas prendas.

Ele morava nas montanhas da Pérsia e o seu nome era Artaban. Era um médico, alto, moreno, de olhos bem escuros: a fisionomia de um sonhador, a mente de um sábio. Um homem de coração manso e espírito indominável.

Era um homem de posses. A sua moradia era rodeada de jardins bem tratados com árvores de frutas e flores exóticas. Suas vestes eram de seda fina e o seu manto da mais pura lã. Era seguidor de Zoroastro e numa noite se reuniu em conselho com nove membros da mesma seita. Eram todos sábios!

Artaban lhes falou sobre a nova estrela que vira e o seu desejo de segui-la. Disse-lhes:

“- Como seguidores de Zoroastro aprendemos que os homens vão ver nos céus, em tempo apontado pelo Eterno, a luz de uma nova estrela e nesse dia, nascerá um grande profeta e Ele dará aos homens a vida eterna, incorruptível e imortal, e os mortos viverão outra vez! Ele será o Messias, o Rei de Israel.

E continuou:

“- Os meus três amigos Gaspar, Melchior, Baltazar e eu, vimos a grande luz brilhante de uma nova estrela há vários dias e vamos sair juntos para Jerusalém para ver e adorar o Prometido, o Rei de Israel. Vendi a minha casa e tudo o que possuo e comprei estas jóias: uma safira, um rubi e uma pérola para oferecer como tributo ao Rei. Convido-os para virem comigo nesta peregrinação para juntos adorarmos o rei!”

Mas um véu de dúvida cobriu as faces de seus amigos:

“- Artaban! Isso é um sonho em vão. Nenhum rei vai nascer de Israel! Quem acredita nisso é um sonhador!”

E um a um, todos o deixaram.

“- Adeus amigo!”

Artaban pesquisando os céus viu de novo a estrela.

“- É o sinal!” Disse ele. “- O Rei vai chegar e eu vou encontrá-lo.”

Artaban preparou o seu melhor cavalo, chamado Vasda, e de madrugada saiu às pressas, pois, para se encontrar no dia marcado com Gaspar, Melchior e Baltazar, que já estavam a caminho, ele precisava cavalgar noite e dia. Já estava escurecendo e ainda faltavam mais ou menos três horas de viagem para chegar ao sítio de encontro e ele precisava estar lá antes de meia noite ou os três magos não poderiam demorar mais à sua espera!

“- Mas, o que é isto?”

Na estrada, perto de umas palmeiras, o seu cavalo Vasda, pressentindo alguma coisa desconhecida, parou resfolegando, junto a um objeto escuro perto da última palmeira.

Artaban desmontou. A luz das estrelas revelou a forma de um homem caído na estrada. Um pobre hebreu entre os muitos que moravam por perto. A sua pele estava seca e amarela e o frio da morte já o envolvia. Artaban depois de examiná-lo, deu-o por morto e voltou-se com um coração triste pois nada podia fazer pelo pobre homem.

“- Mas o que foi isto?”

“- Que devo fazer? Se me demorar, os meus amigos procederão sem mim. Preciso seguir a estrela! Não posso perder a oportunidade de ver o Príncipe da Paz só para parar e dar um pouco de água a um pobre hebreu nas garras da morte!”

“- Deus da Verdade e da Pureza, dirige-me no teu caminho santo, o caminho da sabedoria que só tu conheces!”

E Artaban carregou o hebreu para a sombra de uma palmeira e tratou-o por muitos dias até que êle se recuperou.

“- Quem és tu?” perguntou ele ao mago.

“- Sou Artaban e vou a Jerusalém à procura daquele que vai nascer: O Príncipe da Paz e Salvador de todos os homens. Não posso me demorar mais, mas aqui está o restante do que tenho: pão, vinho, e ervas curativas.”

O hebreu erguendo as mãos aos céus lhe disse:

“- Que o Deus de Abraão, Isaac e Jacó o abençoe; nada tenho para lhe pagar, mas ouça-me: Os nossos profetas dizem que o Messias deve nascer, não em Jerusalém mas em Belém de Judá.”

Assim, já era muito mais de meia noite e vários dias mais tarde quando Artaban montou de novo o seu cavalo Vasda e num galope rápido prosseguiu ao encontro de seus amigos.

Aos primeiros raios do sol, chegou ao lugar do encontro. Mas… onde estavam os três magos? Artaban desmontou e ansioso, estudou todo o horizonte. Nem sinal da caravana de camelos dos seus amigos! Então entre uma pilha de pedras achou um pergaminho e a mensagem:

“- Não pudemos esperar mais, vamos ao encontro do Rei de Israel. Siga-nos através do deserto.”

Artaban sentou-se e cobriu a cabeça em desespero!

“- Como posso atravessar o deserto sem ter o que comer e com um cavalo cansado? Tenho mesmo que regressar à Babilónia, vender a minha safira e comprar camelos e provisões para a viagem. Só Deus, o misericordioso, sabe se vou encontrar o Rei de Israel ou não, porque me demorei tanto ao mostrar caridade,”

Artaban continuou a via pelo deserto e finalmente chegou em Belém, levando o seu rubi e a sua pérola para oferecer ao Rei. Mas as ruas da pequena vila. pareciam desertas. Pela porta aberta de uma casinha pobre, Artaban ouviu a voz de uma mulher cantando suavemente. Entrou e encontrou uma jovem mãe acalentando o seu bebé.

Três dias passados Ela lhe falou sobre os três magos que estiveram na vila a que disseram terem sido guiados por uma estrela ao lugar onde José de Nazaré, sua esposa Maria, e o seu bebé Jesus estavam hospedados. Eles trouxeram prendas de ouro, incenso e mirra para o menino. Depois, desapareceram tão rapidamente quanto apareceram. E a família de Nazaré também saiu à noite, em segredo, talvez para o Egito.

O bebê nos seus braços olhou para o rosto de Artaban e sorriu estendendo os bracinhos para ele.

“Não poderia essa criança, ser o Príncipe Prometido? Mas não! Aquele que procuro já não está aqui e eu preciso encontrá-lo no Egito!”

A Jovem mãe colocou o bebê no leito e preparou um almoço para o estranho hóspede que veio à sua casa. Subitamente, ouviu-se uma grande comoção nas ruas: gritos de dor, o chorar de mulheres, tocar de trombetas e o clamor:

“- Soldados! os soldados de Herodes estão matando as nossas crianças!”

A jovem mãe, branca de terror escondeu-se no canto mais escuro da casa, cobrindo o filho com o seu manto para que ele não acordasse e chorasse.

Mas Artaban colocou-se em frente à porta da casa impedindo a entrada dos soldados. Um capitão aproximou-se para afastá-lo. A face de Artaban estava calma como se estivesse observando as estrelas. Fitou o soldado um instante e lhe disse:

“- Estou sozinho aqui, esperando para dar esta jóia ao prudente capitão que vai me deixar em paz.”

E mostrou o rubi brilhando na palma da sua mão como uma grande gota de sangue.

Os olhos do capitão brilharam com o desejo de possuir tal jóia!

“- Marchem, Avante!” Gritou aos seus soldados. “- Não há criança aqui!”

E Artaban olhando os céus orou:

“- Deus da Verdade, perdoa o meu pecado! Eu disse uma coisa que não era, para salvar uma criança. E duas das minhas dádivas já se foram. Dei aos homens o que havia reservado para Deus. Poderei ainda ser digno de ver a face do Rei?”

E Artaban prosseguiu na sua procura entre as pirâmides do Egito, em Heliopólis, na nova Babilónia às margens do Nilo… Numa humilde casa em Alexandria, Artaban procurou o conselho de um velho rabi que lhe falou das profecias e do sofrimento do Messias prometido e receitado pelos homens.

“- E lembre-se, meu filho: o Rei que procuras não o vais encontrar num palácio ou entre os ricos e poderosos. Isto eu sei: os que O procuram devem fazê-lo entre os pobres e os humildes, os que sofrem e são oprimidos.”

E Artaban passou por lugares onde a fome era grande. Fez a sua morada em cidades onde os doentes morriam na miséria. Visitou os oprimidos nas prisões subterrâneas, os escravos nos mercados de escravos…

Em toda a população de um mundo cheio de angústia ele não achou ninguém para adorar, mas muitos para ajudar! Ele alimentou os que tinham fome, cuidou dos doentes, e confortou os prisioneiros… E os anos passaram… 33 anos.

E os cabelos de Artaban já não eram pretos, eram brancos como a neve nas montanhas. Velho, cansado e pronto para morrer era ainda um peregrino à procura do Rei de Israel e agora em Jerusalém onde havia estado muitas vezes na esperança de achar a família de Belém.

Os filhos de Israel estavam agora na cidade santa para a festa da Páscoa do Senhor e havia uma agitação e excitamento singular. Vendo um grupo de pessoas da sua terra, Artaban lhes perguntou o que se passava e para onde o povo se dirigia.

“- Para o Gólgota!” lhe responderam, “- …pois não ouviste? Dois ladrões vão ser crucificados e com eles, um homem chamado Jesus de Nazaré, que dizem, fez coisas maravilhosas entre o povo. Mas os sacerdotes exigiram a Sua morte, porque disse ser o Filho de Deus. Pilatos O condenou a ser crucificado porque disseram ser Ele o Rei dos Judeus.”

“Os caminhos de Deus são mais estranhos do que o pensamento dos homens,” pensou Artaban. “Agora é o tempo de oferecer a minha pérola para livrar da morte o meu Rei!”

Ao seguir a multidão em direção ao portal de Damasco, um grupo de soldados apareceu arrastando uma jovem rapariga com vestes rasgadas e o rosto cheio de terror.

Ao ver o mago, a jovem reconheceu-o como da sua própria terra e libertando se dos guardas atirou-se aos pés de Artaban:

“- Tenha piedade!…”, ela implorou,…”e pelo Deus da pureza, salva-me! Meu pai era mercador na Pérsia mas faleceu e agora vão me vender como escrava para pagar seus débitos! Salva-me!”

Artaban tremeu. Era o velho conflito da sua alma entre a fé, a esperança e o impulso do amor. Duas vezes as dádivas consagradas foram dadas para a humanidade. E agora? Uma coisa ele sabia:

“- Salvar essa jovem indefesa era um gesto de amor. E não é o amor a luz da alma?”

Ele tirou a pérola de junto ao seu coração. Nunca ela pareceu tão luminosa! Colocou-a na mão da moça:

“- Este é o teu pagamento, o último dos tesouros que guardei para o Rei!”

Enquanto ele falava uma escuridão profunda envolveu a terra que tremeu consultivamente! Casas caíram, os soldados fugiram mas Artaban e a moça protegeram-se de baixo do telhado sobre as muralhas do Pretório.

“- O que tenho a temer,” pensou ele,” …e para quê viver? Não há mais esperança de encontrar o Rei, a procura terminou, eu falhei.”

Mas mesmo esse pensamento lhe trouxe paz pois sabia que viveu de dia a dia da melhor maneira que soube. Se tivesse que viver de novo a sua vida não poderia ser de outra maneira.

Mais um tremor de terra e uma telha desprendeu-se do telhado e feriu o velho mago na cabeça. Repousou no chão e deitou a cabeça nos ombros da jovem com o sangue a escorrer do ferimento.

Ao debruçar-se sobre ele, ela ouviu uma voz suave, como música vindo da distancia. Os lábios de Artaban moveram-se como em resposta e ela escutou o que o velho mago disse na sua própria língua:

“- Não meu Senhor! Quando te vi com fome e te dei de comer? ou com sede e te dei de beber? ou quando te vi enfermo ou na prisão e fui te ver?

Por 33 anos eu te procurei, mas nunca vi a tua face, nem te servi, meu Rei!”

E uma voz suave veio, mas desta vez dos céus. A jovem também compreendeu as palavras.

“- Em verdade, em verdade vos digo que quando o fizeste a um destes meus irmãos a mim o fizeste!”

Uma alegria radiante iluminou a face calma de Artaban.

Um suspiro longo e aliviado saiu de seus lábios.

A viagem para ele havia terminado.

O quarto mago, Artaban, compreendeu que havia encontrado o seu Rei durante toda a sua vida!

Colab: Ir.’. Weber Varrasquim, 33º

Dezembro / 2.003
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Texto retirado de: aqui
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Meus amigos, espero que tenham tido a paciência necessária para lerem esta bela história.
Grande abraço a todos.
Olinda 



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Imagem: pixabay

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

OS JUSTOS

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salv
ar o mundo.

             In "A Cifra"






Sobre este poema diz-nos Francisco José Viegas, aqui:
O poema “Os Justos”, de Jorge Luis Borges, resume a ideia de que há poemas que salvam a nossa vida. À medida que o tempo passa, que a morte se atravessa no caminho, que a memória exige esforço e sacrifícios cada vez mais pesados, a poesia parece transportar algum material de salvação. Não para a morte, física e real — mas para a vida, que falha tantas vezes. Não é uma solução nem um bálsamo; é um fragmento de beleza (e de alegria, e de serenidade, e de atenção) que busca a nossa perplexidade.



BOM ANO, MEUS AMIGOS.
ABRAÇOS
OLINDA


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Imagem:pixabay