segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Frágeis que somos

Uma sombra esgueira-se na noite. Dobrada, pescoço enfiado no corpo, olha para todos os lados com ar comprometido. Nota-se-lhe um andar claudicante que a bengala não sustém. Pousa-a no solo ao de leve como que receando o ruído que pudesse fazer, ecoando na cidade fantasma. Das janelas, frinchas franqueiam a olhares pouco amistosos o avançar da figura vestida de escuro. Perscrutam a noite, perscrutam-na a ela, perscrutam os relógios, tudo o que possa dizer as horas. E tudo indica que alguém se encontra na rua, furando o recolher obrigatório. E mais. Sem o respectivo acessório de uso obrigatório que a salvaria de um mau encontro com o vírus. O que fazer? Liga-se para a Polícia? Se dantes andar de máscara era caso suspeito, agora andar sem ela denota falta de civismo e de amor a si próprio e aos outros. Mas, o que se passa? Mais uma sombra sai da esquina também ostentando rosto desnudado. E não mostra constrangimento algum, com um à vontade como se fosse tudo seu. Que descaramento! Muito afoita, a segunda sombra aproxima-se da primeira: Ah, Ah, afinal tu também não trazes máscara. Acho bem, isso é tudo treta. Qual Covid, qual carapuça! Alguns vão ficar ricos com isso. Estou mesmo a ver. Esse negócio das máscaras, dos kits de protecção, do álcool, do gel desinfectante...enfim, e tanto plástico, meu Deus! A primeira sombra responde baixinho: Ando escondida, escapulindo-me pela rua a horas mortas para não ser denunciada... É que não tenho dinheiro para comprar uma máscara sequer. E dizem que é obrigatório! E quem não pode comprá-las?




Boa semana, meus amigos.

Saúde!


domingo, 22 de novembro de 2020

Festa da Vida

 

*

Que venha o sol o vinho as flores
Marés canções todas as cores
Guerras esquecidas por amores
Que venham já trazendo abraços
Vistam sorrisos de palhaços
Esqueçam tristezas e cansaços
Que tragam todos os festejos
E ninguém se esqueça de beijos
Que tragam prendas de alegria
E a festa dure até ser dia
Que não se privem nas despesas
Afastem todas as tristezas
Pão vinho e rosas sobre as mesas
Que tragam cobertores ou mantas
O vinho escorra pelas gargantas
E a festa dure até às tantas
Que venham todos de vontade
Sem se lembrarem de saudade
Venham os novos e os velhos
Mas que nenhum me dê conselhos

Que venham...


Contraponto à pandemia e ao confinamento.

Mas...

Cuidemos de nós e dos outros.

Boa semana.

Abraços


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"A Festa da Vida" - Letra de José Niza, música de José Calvário, interpretação de Carlos Mendes - Festival de Eurovisão da Canção de 1972. aqui


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Mia Couto, 
in "Raiz de Orvalho 
e Outros Poemas"

Mia Coutopseudónimo de António Emílio Leite Couto, n.  1955 -  escritor e biólogo moçambicano.


Conhecemo-lo não é verdade? Autor falado e admirado aqui no Xaile, por várias vezes, pela sua prosa, pela sua poesia, pelas suas ideias. Também pelo jeito de dar à Língua Portuguesa uma outra faceta, criando vocábulos e modo de dizer que retratam o ambiente moçambicano.

Hoje trago-o neste Poema, Identidade, que me dá a ideia (numa interpretação livre) de que para ser eu própria terei de entrar na pele do outro. Terei de sentir as suas lutas e fracassos. E congratular-me com as suas vitórias.

E assim lembro o povo moçambicano que atravessa momentos de grande dor. Na sua província de Cabo Delgado grassa o terror e a violência.  E desespera por ajuda internacional.


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Poema - Citador
Imagem - Wiki

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Ana Paula Tavares


Ana Paula Tavares - foto (...)


Aquela mulher que rasga a noite

com o seu canto de espera

não canta

Abre a boca

e solta os pássaros

que lhe povoam a garganta

- em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p.17.


“De uma coisa estou certa, venha quem vier, mudem as estações, parem as chuvas, esterilizem o solo, somos cada vez mais como as buganvílias: a florir em sangue no meio da tempestade.”
- fragmento de “O sangue da Buganvília”. Praia: Centro Cultural Português, 1998. daqui


Rosa de porcelana - Angola


Ana Paula Ribeiro Tavares, é uma historiadora e poetisa angolana.
Iniciou o seu curso de História na Faculdade de Letras do Lubango. Em 1992 veio para Portugal, terminando o curso em Lisboa. Em 1996 concluiu o Mestrado em Literaturas Africanas. Atualmente vive em Portugal, fez o Doutoramento em Antropologia na Universidade Nova de Lisboa (com o tema "História e memória. Estudo sobre as sociedades de Lunda e Cokve de Angola", e leciona na Universidade Católica de Lisboa. Sempre trabalhou na área da cultura, museologia, arqueologia e etnologia, património, animação cultural e ensino. Tanto a prosa como a poesia de Ana Paula Tavares estão presentes em várias antologias publicadas em Portugal, no Brasil, em França, na Alemanha, em Espanha e na Suécia. aqui

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Boa semana, meus amigos.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Noite longa


Na noite longa

minha alma
chora sua fome de séculos

Meus olhos crescem
e choram famintos de eternidade
até serem duas estrelas
brilhantes
no céu imenso.

E o infinito se detém em mim

Na noite longa
uma remotíssima nostalgia
afunda minha alma
E eu choro marítimas lágrimas
Enquanto meu desejo heróico
de engolir os céus
se alarga
e é já céu

Tenho então
a sensação esparsamente longa
de vogar no absoluto.

Mário Fonseca
    (1939-2009)


Mário Alberto de Almeida Fonseca nasceu a 12 de Novembro de 1939, na Praia. Foi professor de Francês no Senegal e administrador e tradutor na Mauritânia e Turquia.

Tem poemas dispersos em revistas, jornais e antologias - Boletim de Cabo Verde, Seló (que fundou juntamente com o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira), África, Internacional, Solidarité, Afrique, África, Raízes, Poésie du monde Noir (Presence Africaine d´Expression Portuguese). Das suas obras constam "O Mar e as Rosas", que foi confiscado em Lisboa, em 1964, aquando do encerramento forçado da então Associação Portuguesa de Escritores, pela Polícia Política.

Sob o título "Mon Pays est une Musique" publicou os livros de poesia: Près de la mer, Mon Pays est une Musique e Poissons. Participou das actividades da Associação de Escritores Afro-Asiáticos (Pequim, 1966), no Simpósio Literário Internacional contra o Apartheid (Brazaville, 1987) e nos Estados Gerais do Livro Francófono (Paris 1989).

O poeta foi colaborador e re-writer do Jornal "A Semana" por longos anos e, recentemente vinha colaborando com alguma regularidade o jornal Expresso das Ilhas. aqui





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Poema - daqui