sexta-feira, 30 de outubro de 2015

SOLTE-SE O VERBO




Nos últimos tempos, o vernaculismo ganhou asas. Por via disso, importa dedicarmos um pouco do nosso tempo à busca reflexiva da sua significação, mas sem grandes aprofundamentos. Há o vernáculo que significa uma linguagem pura, livre de estrangeirismos e há o outro que peca por se exceder no emprego de gírias e de calões em sítios e situações para que não são chamados. Por qual optar? Depende.

Se considerarmos o segundo uma expressão do bom portuguesismo desta Lusitânia, então estaremos no caminho devido, como não podia deixar de ser, sendo como são alguns dos nossos putativos representantes e outras figuras gradas que dele mais têm feito uso, sempre que está em causa a discussão de temas que impliquem um grande envolvimento de interesses que, muitas vezes, não nos beneficiam em nada. Antes pelo contrário. 

Temos ouvido pérolas e tropeços eivados de segundas ou mais intenções, como roubalheira, brincadeira, traição, buraco, cortes, pela boca morre o peixe, olhos embargados de lágrimas (e não voz), trepa, syrizando*, plafonamento*, enfim um sem-número de palavras que o Xaile não reproduz aqui por este ser um sítio de tolerância. Como o exemplo vem de cima, acredito que o seu emprego fará ou já fez escola e então não teremos com que nos preocupar. É tudo ao molho e fé em Deus.

Vejamos, contudo, o que diz João Medina, no seu livro Portuguesismo(s), porque nada como consultar quem tem voz na matéria. Logo no início, antes do prefácio, apresenta várias definições de portuguesismo extraídas de quatro dicionários. Vejamos estas:

1.Locução ou idiotismo próprio da língua portuguesa. 2. modismo próprio da linguagem do português lusitano; lusitanismo. 3.carácter distintivo do português e/ou Portugal. 4.sentimento de amor a Portugal, ao seu povo e/ou às coisas portuguesas.

Claro que por idiotismo optarei pela definição que o relaciona com a construção ou locução peculiar a uma língua. Mesmo assim não garantiria que as tais expressões vernáculas e portuguesismo sejam similares. 

Já agora, mais uma pitadinha do que venho falando: João Medina, em Portuguesismo(s), apresenta um trabalho de grande dimensão, tendo como base a Identidade Nacional. Um trabalho de esmiuçamento, desde os símbolos até aos heróis, santos e mártires. Veja-se, por exemplo, a evolução ou cristalização do Zé Povinho, uma das imagens de marca da Nação. Este autor persegue, como nenhum outro, a desconstrução de vários mitos  relacionados com o lusitanismo, com uma objectividade que dá gosto. Talvez não seja aquilo que muitos quereriam ler mas, digo-vos, é uma experiência ímpar.

Cá por mim, o Zé Povinho tem as costas largas. Normalmente, são-lhe atribuídas acções e intenções de conformidade com os objectivos e as ideologias de cada um. Aliás, se o visualizarmos com o seu ar matreiro e espertalhão, tal como Bordalo Pinheiro o idealizou, neste momento estará a rir-se a bom rir das cabecinhas pensadoras que por aí pululam. Por outro lado, é interessante verificar que ele é pau para toda a colher. Ou seja, nós.




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*Estrangeirismos em tempo de campanha, ou algo mais?
Ressalvo a cacofonia "como consultar", mas é o que se pôde arranjar.
Imagem1:pixabay
Imagem2:daqui

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Caminhos de pedras e de abrolhos




Os meus pés nus já palmilharam montes e vales e caminhos de cabra incrustados em rochas abruptas e levadas secas desenhadas em precipícios. Achataram-se em solos de cascalhos e de vidros partidos. Comi solas de sapatos demolhadas em suor e lágrimas. Em lugares quase ermos, sem recursos, levantava-me de noite à procura de socorro quando filhos meus se engasgavam e ardiam em febre. Em desespero, esburaquei as paredes da minha casa com as unhas em sangue quando alguns deles partiram para sempre, sem que para isso o ser supremo me desse uma razão plausível. Com os olhos cansados e enevoados já perscrutei os céus, caminhando pela estrada de santiago, via leitosa, em busca de sinais de nuvens prenhes dispostas a deixar cair o líquido precioso para a renovação e despertar da terra sequiosa. Por elas esperei vezes sem conta. Teimosas e sovinas deixariam cair algumas gotas. Antes que estas desaparecessem nas entranhas subterrâneas apressava-me a lançar as sementes que, contentes, germinariam. Sachando e mondando, tudo vicejando, a segunda fase do precioso líquido não marcaria presença, tudo mirrando e secando. Os ventos avaros carregariam as nuvens, levando-as para paragens desconhecidas. Vi estiolarem-se vidas numa sequência esmagadora. De lábios gretados e abdómenes inchados pela fome fariam a sua passagem para além desta vida terrena. Vi entes queridos partirem para longe. Lembro-me de um deles fazendo a sua despedida ao som do seu clarinete, a figura jovem, de fato branco, congregando atrás de si crianças e populares. Nunca mais voltou. A vida não lho permitiu. De todas as lembranças é a que mais me marcou. Não sei porquê. Mas nada aquebranta a minha esperança. Dos filhos que me restaram e da vida que me resta espero ainda grandes coisas. O quê não sei. On verra
O velho homem calou-se e olhou para mim. Tomou-me as mãos e apertou-as contra as suas. Depois pegou no terço e começou as passar as contas, movendo os lábios em silêncio. No seu olhar via-se todo o mistério do mundo.

Meus amigos, desejo-vos uma boa semana.

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Nota:Compus este texto a partir de situações reais, de que tomei conhecimento de muito perto. Olinda

Imagem:daqui 

domingo, 11 de outubro de 2015

É brando o dia, brando o vento





É brando o dia, brando o vento 
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento!
Assim fosse eu, assim fosse eu!

Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim ser eu assim!

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!


Fernando Pessoa
in: O Cancioneiro


Penso logo existo? A partir da minha existência percepciono o céu e a terra, sinto o vento e a luz a trespassarem-me e tudo o que me circunda porque a mente é a minha fonte. Se o mundo é o resultado daquilo que trazemos em nós, então poderemos influenciar o vento que passa, o rugir dos vulcões, o borbulhar do incandescente. E se na minha ânsia de encontrar um pensamento primeiro, depois de eliminar do meu entendimento o supérfluo e os ensinamentos de antanho, cairei na dúvida metódica. Será bom negócio? Duvidando de brandas glórias, de vitórias poucochinhas talvez exercite em mim o poder do raciocínio lógico. Ou talvez não. Poderei, no limite, tropeçar no erro de Descartes.


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Poema: O citador
Imagem:daqui

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Louros e Rosas




O Amor dá-se de graça; a Glória é cara;
Esta é matrona grave, o outro é menino;
Cuida o Amor dum canteiro pequenino
E a Glória lavra intérmina seara.

O Amor é gastador, a Glória, avara;
Esta com siso marcha, o outro sem tino;
E aos ventos desnorteados do destino
Enquanto o Amor se apressa, a Glória pára.

Em bronze escreve a Glória, o Amor, na areia;
E enquanto ele escorrega, ela tateia
Do futuro nas brumas misteriosas…

A Glória eternos louros faz crescer;
Frágeis rosas, o Amor. Quando eu morrer,
Dispenso os louros; cubram-me de rosas!

       1869-1944

Numa primeira fase, simbolista. Depois, neo-classicista. Voltado para a Antiguidade Clássica e com um pendor saudosista no que se refere ao passado português, características dos trabalhos das primeiras décadas do Século XX.

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Poema: Banco de Poesia Fernando Pessoa
Imagem: Pixabay