sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Trapos (iv)

Do fundo do corredor chegou outra maca, empurrada por dois bombeiros. Atrás dela, uma mulher ainda jovem chorava num aflitivo silêncio. A esposa do homem desviou-se ligeiramente do local onde se encontrava para deixar passar a maca.

— É uma criança — disse ao marido quando regressou ao lugar.
— E isto não anda nem desanda — respondeu-lhe o homem.
— Sossega, por favor.
— Olha-me as horas que são!
A mulher fez um sorriso triste.
— As horas são uma invenção dos homens.
— E o deixa-andar é a desculpa dos tolos.

Calou-se, arrependido do que dissera. Observou a criança, serenamente acomodada na maca desproporcional ao seu tamanho, e pensou que nunca puderam ter filhos. «Se os tivéssemos, tudo era diferente. Mas agora não vale a pena pensar nisso. Podia era ter trazido um jornal...»

O doente que estava sentado na ponta do banco, ao pé do homem, levantou-se e perguntou:

— Onde será a casa de banho?
— Ao fundo do corredor, à direita — responderam.
O homem sentou-se no lugar deixado vago. Era gordo, e quase não cabia no espaço. Nessa altura, a porta de um dos gabinetes abriu-se e a voz da enfermeira chamou alto:
— Alexandre José.

Quando o doente que acabara de ser chamado se levantou, levando nas mãos a ficha amarela, o homem aproveitou o espaço e, deixando de sentir resistência da senhora que estava a seu lado, puxou a esposa por um braço e obrigou-a a sentar-se. Falou-lhe de passagem na mulher doente que estava na sala de nebulizações, mas nada lhe disse sobre o pedido que esta lhe fizera.
Uma das portas do corredor, que não aquela por onde já haviam entrado três doentes, abriu-se e os bombeiros empurraram a maca que tinha chegado há pouco, com a criança. Doentes de outras macas que já ali se encontravam quando chegaram, mantinham-se estranhamente calados.


— Nunca mais chega a nossa vez — voltou a resmungar o homem.
— Tem calma — disse-lhe a esposa. — Há pessoas mais necessitadas de assistência do que eu.
— Estamos aqui a sofrer e isto não anda. Um pobre muito sofre!
— Aqui somos todos pobres.
— Parece-te, mas não somos. Alguns têm mais sorte.
— Todos pobres — repetiu a mulher. — Os ricos não vêm aqui e, mesmo que viessem, sem saúde, eram iguais a nós. Quem está doente é pobre.
— Os que já entraram são ricos...

O rosto da mulher apresentava agora um estranho cansaço, estava pálido e baço.

Estou doente e muito cansada. E essa tua insatisfação ainda me está a pôr pior. Vê se te calas!


"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho
Continua...

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Meus amigos

Surgiram-me alguns compromissos inadiáveis que me fizeram abrandar a leitura, aqui, deste Conto.

Desde o início que a figura da mulher me chamou a atenção. Sempre pronta a desculpar os outros, procurando compreender a situação, esquecendo-se até de si própria. Até parece que parte dos seus males advém da maneira de ser do marido.

Ela faz-me lembrar alguém que eu conheço e por isso mesmo questiono-me: Tratar-se-á de uma bondade intrínseca que põe acima dos seus interesses os dos outros? Será receio de encarar os problemas de frente? Ou uma maneira de contrabalançar, quase inconscientemente, a verborreia do marido, adoptando uma atitude cordata e apagada?

Ciente de que na vida tudo tem de ser bem doseado, reconheço também a nossa complexidade como seres humanos.

Aguardando as vossas palavras, desejo a todos uma óptima sexta-feira.

Abraço.
:)

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Imagem: daqui


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Trapos (iii)

A porta de um gabinete abriu-se e, ainda antes de o doente que tinha sido chamado vinte minutos antes sair para o corredor, escutou-se a voz metálica da enfermeira:
— António Mariano.

Um homem que estava sentado no outro extremo do banco levantou-se e, lenta e silenciosamente, começou a dirigir-se para a porta aberta, com a ficha amarela presa entre os dedos de uma das mãos. O seu lugar ficou vazio no banco comprido.

— Senta-te agora — disse o homem, virando-se para a esposa.
— Senta-te tu, que estás a morrer.

O homem ia responder-lhe mal quando, uns bons metros à sua direita, uma porta se abriu. Era a última sala do lado nascente do corredor. Uma enfermeira, visivelmente arreliada, saiu, deixando a porta escancarada. Sem grande interesse, o homem soletrou a palavra que estava inscrita numa placa de metal afixada a meio da porta: «Nebulizações...»

A curiosidade levou-o a inclinar-se um pouco sobre a sua direita, de modo a poder observar o que se passava dentro da sala. Como o não conseguisse, desencostou-se, colocou ambas as mãos atrás das costas, tentando disfarçar a curiosidade, e deu uns passos, junto à parede, para o lado da porta escancarada. Lá dentro, ao fundo, havia uma fila de cadeiras pretas. Só uma estava ocupada por uma senhora de muita idade, magra, os cabelos completamente brancos contrastando com a cor preta das roupas que vestia. Tinha as pernas esticadas, as mãos esquálidas poisadas sobre os joelhos, com as palmas abertas voltadas para cima. A parte de trás da cabeça estava apoiada na parede. Uma pequena máscara de plástico transparente ajustava-se-lhe sobre a boca e o nariz, e o seu peito arfava em movimentos de grande desespero.

Quando o homem entrou no seu campo de visão, desencostou levemente a cabeça e falou-lhe qualquer coisa sem retirar a máscara. Os seus olhos eram dois pontos de lume e a sua voz um sussurro. O homem não entendeu o que a mulher lhe dissera e disfarçou, como se não fosse nada consigo. A mulher continuou a falar e a fazer gestos curtos e lentos com as mãos magras e muito pálidas.
A situação incomodava-o. Pensou em bater à porta por onde vira entrar a enfermeira, chamá-la para acudir ao desespero daquela alma, reclamar contra tudo e contra todos, mas reconsiderou: «Não é nada comigo».
Tentou virar as costas à porta, voltar ao seu lugar ao pé do banco, mas algo o impedia de fazê-lo. Os olhos da mulher, muito redondos e abertos, faiscavam numa súplica.

— Quer alguma coisa? — perguntou, dando um passo em direcção à porta e colocando apenas a cabeça do lado de dentro.
Num gesto débil, a mulher levou uma mão ao rosto e desviou ligeiramente a máscara.
— Que me telefonasse ao meu marido... que não sabe que estou aqui.

A sua voz saía a custo, entrecortada pelos movimentos forçados do peito num vaivém aflito. Voltou a colocar a máscara no seu lugar e, com os mesmos gestos lentos, retirou de um dos bolsos uma pequena agenda. Não conseguia falar. Tinha a máscara colocada sobre o nariz e a boca, os olhos toldados pelo desespero, uma mão de novo colocada sobre o joelho, com a palma virada para cima, enquanto a outra, trémula e magra, lhe apontava o pequeno bloco.



— O número está aqui.
— Não sei o que quer — mentiu o homem virando-lhe apressadamente as costas para se dirigir ao antigo lugar, entre o banco e a porta do gabinete médico. Sentia-se mal por nada fazer, mas pensou que talvez fosse melhor assim. Voltou a arrepender-se de não ter trazido um jornal, e depois perdeu-se a pensar no gato Manchinha que lhes tinha morrido quatro dias antes.

«Boa companhia», pensou. «Mas havemos de arranjar outro... Nem sei. Sempre escutei dizer que gatos ao pé de doentes não é bom... para mais, na nossa idade, o que queremos é quem olhe por nós».

Lembrou-se sem arrependimento de quantas ninhadas de gatos afogara quando era pequeno, e voltou a pensar em Manchinha e na companhia que lhes fizera durante mais de onze anos.

"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho

Continua...

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E que dizer quando nós próprios nos demitimos da nossa prerrogativa de ser solidários? O autor coloca a personagem perante a oportunidade de, num pequeno gesto, poder fazer a diferença. Mas vê-se que o egoísmo e o desinteresse são mais fortes. E perde-se em pequenos nadas, com a agravante de se sentir confortável com actos cruéis praticados na infância.
Num pequeno espaço, num tempo de espera alargado, com muita gente, sob pressão, de que comportamentos seremos nós capazes?

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Imagem:daqui

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Trapos (ii)

(...)
O velho da hemorragia baixou a cabeça. Na posição em que se encontrava, o sangue que escorria do nariz entrava directamente entre a camisa e a pele, descia pelo peito e começava a alojar-se na parte posterior das calças, tingindo de vermelho o assento do banco. Voltou a procurar o lenço no bolso, limpou-se e ficou com ele a pressionar o local da ferida. Ao ver que o olhavam fixamente, disse, sem que lhe tivessem perguntado nada:

— Caí!
Ninguém respondeu.



— Podias ter-te sentado — disse o outro homem à esposa. — Ainda vamos ter muito que esperar.

A mulher, alta, esguia, evidenciando traços que permitiam avaliar ter sido na juventude muito bonita, vestia apenas uma bata sem mangas, com minúsculas florinhas estampadas, e calçava umas sandálias baixas de palha entrançada.

Aproximou-se mais do marido e falou-lhe baixo, perto do ouvido:
— Vê se te calas. Esse homem está pior que eu.
— Aqui ninguém está pior — resmungou o marido.
— Cala-te, homem, que Deus pode-te castigar.
— Deus?! Ora!, Deus...

A mulher deitou-lhe um olhar frio e o homem ficou calado durante uns segundos. Depois, voltou a resmungar alguma coisa imperceptível e saiu de ao pé dela para se encostar à parede branca, do outro lado do corredor, exactamente entre o fim do banco ocupadíssimo e a porta fechada de um dos gabinetes.
De vez em quando uma das portas abria-se, dando passagem a pessoal médico que transitava apressado no corredor, deixando atrás de si o chiar abafado das solas dos sapatos no piso sintético, para entrar noutras portas que se fechavam de seguida.
Uma enfermeira de meia-idade saiu do elevador e, saltitando, dirigiu-se à porta junto da qual o homem se encontrava.

— É uma vergonha — disse-lhe o homem, como se se dirigisse a um holograma.
— O quê?! — perguntou a enfermeira, apanhada de surpresa.
— Que estejamos todos aqui a morrer, e ninguém nos atenda!

A enfermeira não lhe respondeu; já estava habituada às reclamações. Abriu a porta com a sua mãozinha branca e pequena, entrou, vestida de anjo imaculado, e voltou a fechá-la. Quando o estalido da língua a correr na fechadura deixou de se escutar no silêncio quase absoluto do corredor, a mulher foi colocar-se ao pé dele e voltou a repreendê-lo em voz baixa:

— Não tinhas o direito. A senhora está a entrar ao serviço e nem sequer sabe o que se passa...
— Ora — disse o homem, gesticulando. — Estamos para aqui a morrer e ninguém nos atende...
— Como!? — exclamou a mulher, embora tivesse escutado perfeitamente as palavras do marido.
— Disse que estamos todos para aqui a morrer e que ninguém nos dá atenção...

A princípio, a mulher ficou calada. Depois, num ímpeto, respondeu-lhe com rispidez:
— Para o caso de tu ainda o não saberes, a doente, aqui, sou eu. E não me ouves lastimar.
— Não se falando, está-se aqui todo o dia. Morre-se para aí a um canto, como um desgraçado dum cão.
— Se alguém aqui está a morrer, não és tu— disse-lhe a mulher já visivelmente alterada com a impaciência do marido.

O homem respondeu-lhe nos mesmos modos:
— Aos oitenta anos, não são só os doentes que morrem. Cada minuto que aqui passo, à espera que te atendam, é um pedaço de vida que me tiram. Achas que isso não é morrer?!...
A mulher escolheu calar-se.

"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho

Continua...

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Imagem: daqui


sábado, 21 de fevereiro de 2015

Trapos (i)

O corredor era branco, estreito e comprido. De ambos os lados, aferradas às paredes nos intervalos existentes entre as várias portas que davam acesso aos gabinetes médicos, havia macas assentes em estruturas metálicas e sobre elas doentes e acidentados à espera de vez para serem atendidos. Estranhamente, todos eles se encontravam em silêncio, como se pensassem que só a morte é barulhenta.
A meio do corredor, encostado num pedaço de parede livre de portas, havia um banco corrido, com uns três metros de comprimento, no qual se sentava uma boa dezena de pessoas, também à espera de consulta. Todas tinham apertadas nas mãos as fichas de papel amarelo que lhes davam à entrada da Urgência, quando faziam a inscrição. Estavam caladas, a maioria de cabeça baixa e olhos esbarrados no chão azulado e muito limpo. Um relógio redondo, de metal, estava pendurado por sobre uma das portas do fundo e os seus ponteiros marcavam nove horas e dez minutos. O calor começava a apertar.

Uma enfermeira de meia-idade colocou a cabeça de fora da porta de um dos gabinetes e chamou alto pelo nome de um dos doentes.

— Sou eu — respondeu alguém.
— Pode entrar — disse a enfermeira, encerrando a porta logo que o doente a atravessou.

Os que ficaram sentados aconchegaram-se uns aos outros no banco, de forma a criarem espaço destinado a mais um dos muitos doentes que esperavam em pé pela sua vez, e o silêncio voltou ao corredor. Um homem enorme, de pele escura e bigode branco, vestindo uma calça clara de brim e uma camisa fina, de manga curta, apontou com o queixo a ponta livre do banco à mulher que estava a seu lado e mandou que se sentasse.

— Não, eu aguento — respondeu a mulher.
O homem teimou:
— Vá, Carolina, senta-te. Pelo que aqui vai, parece-me que temos muito que esperar.
— Senta-te tu.
— Não quero sentar-me — disse o homem secamente, enquanto enxugava as gotículas de suor que lhe salpicavam a testa. — Estou bem em pé.

Encostou-se à parede, entrelaçou os dedos das mãos atrás da costas e quedou-se em silêncio. Durante alguns segundos arrependeu-se de não ter trazido um jornal desportivo para entreter a espera, mas logo se esqueceu do jornal para concentrar a atenção no movimento que surgiu dos lados da porta de entrada, que se abriu, deixando passar uma lufada de ar fresco. A brisa momentânea fez diluir um pouco o inquietante calor e o intenso cheiro a medicamentos que pairavam na afunilada e silenciosa sala da espera.

Um maqueiro, trajando de branco da cabeça aos pés, vinha do fundo do corredor trazendo pelo braço um homenzinho acidentado. Era muito velho, e do nariz corria-lhe um fio de sangue que já empapara a camisa ao nível do peito. O velho mexia-se lentamente, como se aquela fosse a sua derradeira caminhada, e o maqueiro, quando chegaram a meio do corredor, indicou-lhe a ponta do banco, ainda livre.

— Sente-se e espere.

O velhote sentou-se e suspirou. Apalpou o bolso do casaco, de onde retirou um lenço com que secou o sangue do nariz, mas mal acabara de o guardar já um outro fio seguia o caminho sulcado nas rugas da face, contornando a boca, descendo-lhe até à ponta do queixo, para se precipitar em pingos grossos sobre a enorme mancha vermelha que lhe tingia o peito da camisa. Sentia dores horríveis, mas nem assim esboçou outro gesto que não fosse o de acomodar-se serenamente ao encosto do banco, levantando o rosto numa tentativa fracassada de estancar a hemorragia.





"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho
Continua...

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Meus amigos
Convido-vos para a leitura deste Conto de José Abílio Coelho. Para o publicar aqui, no XailedeSeda, dividi-o em cinco partes. Espero que o autor me perdoe esta ousadia. Contudo, quem quiser lê-lo de uma assentada poderá clicar no nome que se encontra hiperligado ao site de onde o retirei. Trata-se de um tema que nos toca a todos - a espera nas urgências dos hospitais.

Um bom fim de semana.
:) 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Dias de reflexão (3)

Alguém amigo enviou-me um artigo sobre o 60º aniversário, em 2013, do acordo de Londres, versando o tema do perdão de cerca de 50% das dívidas da Alemanha contraídas antes e depois da segunda grande guerra. Para também o poderem ler, caso o desconheçam, procurei-o e encontrei-o aqui. Dele ressalto o seguinte:

O acordo de pagamento visou, não o curto prazo, mas antes procurou assegurar o crescimento económico do devedor e a sua capacidade efectiva de pagamento.

O acordo adoptou três princípios fundamentais:
1. Perdão/redução substancial da dívida;
2. Reescalonamento do prazo da dívida para um prazo longo;
3. Condicionamento das prestações à capacidade de pagamento do devedor.

Já dinheirovivo refere o perdão de mais de 60% das dívidas, sendo de assinalar:

Há 60 anos, a 27 de fevereiro de 1953, 20 países, entre eles Grécia, Irlanda e Espanha, decidiram perdoar mais de 60% da dívida da Alemanha (República Federal ou Alemanha ocidental). O tratado, assinado em Londres, foi determinante para o país se tornar numa grande potência económica mundial e num importante aliado dos Estados Unidos durante as décadas da Guerra Fria contra a antiga União Soviética.

O perdão da dívida, que na prática foi uma extensão e reforço das ajudas financeiras diretas do Plano Marshall, liderado pelos Estados Unidos, permitiu aos alemães reduzirem substancialmente o fardo da dívida contraída antes e depois da Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, Adelino de Jesus referia-se ao assunto, em 2011, como Um resgate alemão, um caso muito interessante para a análise dos casos de insolvência soberana que, por sinal, continuam em cima da mesa.

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Sem casas não haveria ruas


Oh as casas as casas as casas

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo

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Da Casa Fernando Pessoa trouxe esta informação:

CICLO LEITURAS/CONTOS SEM CASAS NÃO HAVERIA RUAS*
LEITURAS E CONTOS ENTRE A CASA FERNANDO PESSOA, A FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO E A BOCA
Todos os meses a editora BOCA sai para a rua e celebra a palavra em casa amiga. À Fundação José Saramago leva contadores de histórias, reinventores da melhor tradição oral e popular. Na Casa Fernando Pessoa desfruta em voz alta dos vários géneros da literatura consagrada e por consagrar. Fica o encontro marcado: um sábado na Casa Fernando Pessoa, na Fundação Saramago uma sexta-feira do mês seguinte e por aí adiante alternadamente.
(*Oh as casas, as casas, as casas, de Ruy Belo)

E, claro, fui em busca do poema de Ruy Belo. Encontrei-o aqui, no site do Instituto Camões.

Depois da folia carnavalesca, centremo-nos na grande verdade da nossa fragilidade, no facto indesmentível de que somos pó. Apenas a nossa espiritualidade poderá colocar-nos acima da nossa condição.

A imagem - foto minha, uma vista da linha do Elevador da Bica - Lisboa. 


sábado, 14 de fevereiro de 2015

Histórias de amor - Pilar telefonou e...




...ele foi "tomar um café" com ela - uma jornalista sevilhana que admirava a sua obra. Foi o início de uma troca epistolar, uma descoberta de interesses comuns, nomeadamente nas áreas da literatura e da política. Até o dia em que ele, Saramago, lhe escreve a perguntar-lhe se não se importaria que a visitasse. Na mesma carta ainda lhe perguntava se ela estava ou não casada e se a sua disponibilidade poderia estender-se por todos os outros dias que se seguissem. Um ano depois estavam juntos. Um ano mais, casavam, na cidade de Ricardo Reis, de Fernando Pessoa - Lisboa. Pilar não tivera, de novo, qualquer hesitação: não duvidava de que era esse o lugar onde deveria viver.




Depois do veto pelo Governo português à candidatura ao Prémio literário Europeu de O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago desiludido com o seu País abandona Lisboa e vai com Pilar viver em Lanzarote, ilha das Canárias, vulcânica e deserta sem ribeiros nem árvores, uma morada que ostenta uma placa: "A Casa". Pelas paredes brancas há sobretudo relógios. Exceptuando um, chinês, do tempo da revolução cultural, todos marcam uma só hora: as quatro da tarde daquele dia de Junho de 1986, no hall do Hotel Mundial, em Lisboa - foi ideia de Saramago pará-los - marca a hora em que conheceu Pilar, a hora em que a sua vida.




Em 1998, o nosso escritor ganha o Prémio Nobel da Literatura. No vestido da bela mulher que o acompanhava, reluziam algumas palavras extraídas de O Evangelho segundo Jesus Cristo:

"Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe. Quero estar onde estiver a tua sombra, se aí estiveram os teus olhos." 


Foram 26 anos de sentida comunhão de amor, ternura e glória*.


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*Foram 26 anos de sentida comunhão de amor, ternura e glória -Palavras da Majo- Aqui

Veja este artigo do Público: A ilha de Saramago é como a escrita vulcânica de José

Nota: Segui a história, resumindo-a, constante do livro "10 histórias de amor em Portugal" de Alexandre Borges, bem como a citação que a encerra: "Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe. Quero estar onde estiver a tua sombra, se aí estiveram os teus olhos." 

Ver o post anterior a este

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Histórias de amor

Das nossas quinzenas do amor, publicações compulsivas sob a égide do amor, desde composições vossas a poemas e prosas de autores vossos e meus preferidos, guardo belíssimas recordações. A ideia contida no dia dos namorados extravasou-se para a de amor universal, amor aos pais, amor à família, amor ao nosso semelhante. Desta vez atrasei-me em relação à data, mas não faz mal. Temos todo o tempo do mundo para falar de amor.


Para começar:

Tenho comigo um livrinho - o diminutivo é devido ao tamanho - que nos conta 10 histórias de amor em Portugal. Cá em casa acham-no meio lamechas. Eu que sou um coração mole e vá lá, um tanto lamechas, considero-o o máximo. Começa com a história de Pedro e Inês como não podia deixar de ser, seguindo-se a de Camões e Dinamene, de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido. Salto para a de Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis e a minha enumeração termina com a de José Saramago e Pilar del Rio. E é desta última que vou extrair algumas passagens.




Então é assim:

Pilar tinha trinta e seis anos e costumava gabar-se de estar a par de todas as novidades literárias; contudo, o nome "José Saramago" não havia ainda cruzado o interesse do seu olhar. Estávamos, então, numa tarde de 1986; Pilar entrara numa livraria com algumas amigas, quando viu um livro cujo título lhe despertou a curiosidade - tratava-se do célebre O Memorial do Convento. Retirou a obra da estante, leu uma página ao acaso, foi ao início ler a primeira e decidiu comprá-lo, sem hesitações. Mal chegou a casa, começou a lê-lo e já não pararia até o ter terminado. O encantamento começava.

No dia seguinte, regressou àquela livraria de Sevilha e, para que nada lhe escapasse nesta nova descoberta, comprou todos o livros de Saramago que estavam, então, traduzidos para castelhano. O passo seguinte seria dado com a leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis - quando acabou, foi invadida por uma comoção ainda maior e decidiu que qualquer coisa totalmente nova para si se impunha fazer. (...) sentiu uma obrigação de ordem moral de encontrar o homem, o autor, e dizer-lhe o que tinha experimentado ao ler o seu livro. (...) Pilar comprou o bilhete de avião e fez as malas (...) Quando aterrou na Portela, trazia um bilhete com o número de telefone de Saramago no bolso. (...)

Telefonou-lhe.
...

E fico por aqui. Voltarei.

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Da amiga Majoveio este precioso contributo:~ Também gosto de histórias de amor e desta em particular.~ Saramago conta-a nos «Cadernos de Lanzarote».
~Também considerava obra do destino, ter aceitado o convite e ter retribuído a visita a Pilar.~ Sempre foi muito tímido...~ ~ Foram 26 anos de sentida comunhão de amor, ternura e glória. ~ ~
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Ver Quinzenas do Amor
em 2012 e 2013, no arquivo do blog.
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Livro acima referido:
10 Histórias de amor em Portugal.
Alexandre Borges

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Dias de reflexão(2)

Hoje temos os olhos postos no Eurogrupo, instituição da União europeia composta pelos ministros da economia e das finanças dos estados-membros integrantes da moeda única, o euro.   

O Eurogrupo tem como funções examinar em comum os assuntos que afectam especificamente a Eurozona, proceder à sua discussão e adoptar as medidas necessárias com vista à execução das conclusões aprovadas. É o órgão onde se centra a coordenação e supervisão das políticas e estratégias económicas comuns relativas à Eurozona. O seu papel como órgão de governação económica europeia aumentou recentemente a sua relevância, em especial após a crise financeira de 2010 na Grécia, conforme se lê aqui.

Não falta muito e ficaremos a saber o teor dessas medidas, tendo em conta a situação da Grécia, e a incidência que terão na coesão da própria União Europeia. Mas, se o estado da união se pautar apenas por contas de somar e subtrair, privilegiando a vertente económico-financeira, não iremos muito longe. 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Dia Ramalho Ortigão

O dia de ontem foi dedicado a Ramalho Ortigão, um encontro promovido pelo Centro Cultural de Belém em parceria com o Centro Nacional de Cultura. No programa lê-se que não se pode compreender o Portugal do fim do Sec. XIX sem lermos a sua obra. Mas também não se pode esquecer a sua ligação a Eça de Queirós e exemplo disso são: "As Farpas" e o "Mistério da Estrada de Sintra". E mesmo não fazendo parte da Geração de 70 não só pela idade como por motivos ideológicos, Ramalho Ortigão inseriu-se naturalmente naquele grupo de jovens que se propunha com novas ideias fazer parte do mundo civilizado, diz-nos Guilherme de Oliveira Martins.

Sobre a sua preocupação com o património nacional encontrei este excerto, aqui:

“(...) Levaria muito tempo e seria excessivamente triste enumerar todos os atentados de que têm sido e continuam a ser objecto, perante a mais desastrosa indiferença dos poderes constituídos, os monumentos arquitectónicos da nação, os quais assinalam e comemoram os mais grandes feitos da nossa raça, sendo assim por duplo título, já como documento histórico, já como documento artístico, quanto há, sobre a terra em que nascemos, mais delicado e precioso para a honra, para a dignidade, para a glória da nossa pátria. (...)” - José Duarte Ramalho Ortigão, “O culto da arte em Portugal”, in Arte Portuguesa, tomo I,Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1943, p.25

Outros encontros para debates deste género, relacionados com autores de língua portuguesa, já estão previstos para este ano. Por exemplo, o dia 6 de Dezembro do corrente ano será dedicado a Eça de Queirós.

Desejo-vos uma boa semana.

Abraço

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Poderá ler "AS FARPAS" aqui

Imagem:Wiki

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente

Não eu, mas Ruy Belo. Não pude deixar de sorrir perante as suas palavras. Não sei se a Helena dos seus versos é ou não a Helena que nós conhecemos, mas a verdade é que há um heleno de sorriso aberto e ar de Aquiles que está a impor um novo ritmo aos senadores do velho continente. Pode ser que ainda nos dê a água pela barba mas vê-lo a abanar o status quo vigente é reconfortante.




To Helena

Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdoar e todos justiçar dente por dente
de tanto desistir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente

Ruy Belo (1933-1978). Diz-se na sua biografia que foi um homem de causas. A sua participação na greve de 1962 e candidatura a deputado, em 1969, pelas Listas da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, levaram a que as suas actividades fossem vigiadas e condicionadas.
A sua obra encontra-se organizada em três volumes sob o título, Obra Poética de Ruy Belo. 

Poema e biografia:Banco de Poesia da Casa Fernando Pessoa

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Uma curiosidade:
:)
“Dar água pela barba… que se diz de algo que dá enormes dificuldades a alguém? Ao contrário do que se possa pensar, esta expressão nada tem a ver com os pêlos da cara. Em termos náuticos, a “barba” é a proa de uma embarcação. Quando a água está pela “barba”, então a situação começa a ser preocupante para a estabilidade da embarcação.”Nas Bocas do Mundo, Sérgio Luís de Carvalho (aqui
E esta, hein?!

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Dias de reflexão (1)

Meditemos um pouco sobre os primórdios da União Europeia. Não irei alongar-me muito, fazendo uma retrospectiva extenuante, mas somente recordar num primeiro momento a Declaração Schuman, de 9 de Maio de 1950, que vem na sequência do fim da 2ª guerra mundial. 

Nesta linha, necessário se tornava a reconstrução da Europa e acautelar a paz tão duramente conseguida. Um dos pontos considerados importantes foi a criação da CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), a primeira instituição europeia supranacional, cujos fundadores foram: França, República Federal da Alemanha, Itália, Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo. Criando um mercado comum do carvão e do aço entre os países fundadores acreditava-se diminuir os conflitos em especial entre a Alemanha e a França. 

O que se poderá reter deste primeiro passo institucional é que os motivos foram primeiramente económicos, o que conduziria, segundo o desejo comum, à formação de uma comunidade alargada entre países até então antagonistas.




Robert Schuman, político, advogado e ministro dos Negócios Estrangeiros franceses entre 1948 e 1952, é visto como o arquitecto do projecto de integração europeia. Juntamente com Jean Monet, elaborou o Plano ou Declaração Schuman em que propunha o controlo conjunto do carvão e do aço, matérias-primas necessárias à produção de armamento. Todos dependentes uns dos outros, talvez fosse essa a melhor forma de firmar a paz...  

Desejo-vos um bom domingo.

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