quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Se eu soubesse a palavra, a única, a última...





A PALAVRA

Se eu soubesse a palavra,

a que subjaz aos milhões das que já disse,

a que às vezes se me anuncia num súbito silêncio interior,

a que se inscreve entre as estrelas contempladas pela noite,

a que estremece no fundo de uma angústia sem razão,

a que sinto na presença oblíqua de alguém que não está,

a que assoma ao olhar de uma criança que pela primeira vez interrogou,

a que inaudível se entreouve numa praia deserta no começo do Outono,

a que está antes de uma grande Lua nascer,

a que está atrás de uma porta entreaberta onde não há ninguém,

a que está no olhar de um cão que nos fita a compreender,

a que está numa erva de um caminho onde ninguém passa,

a que está num astro morto onde ninguém foi,

a que está numa pedra quando a olho a sós,

a que está numa cisterna quando me debruço à sua borda,

a que está numa manhã quando ainda nem as aves acordaram,

a que está entre as palavras e não foi nunca uma palavra,

a que está no último olhar de um moribundo, e a vida e o que nela foi fica a uma distância infinita,

a que está no olhar de um cego quando nos fita e resvala por nós,

-se eu soubesse a palavra,

a única, a última,

e pudesse depois ficar em silêncio para sempre…

Vergílio Ferreira

     (1916-1996)


Ainda e sempre a Palavra, ferramenta indispensável à comunicação e quando ela nos falha tudo se desmorona. Procurar a Palavra certa com o mesmo afã com que Diógenes de Sinope procurava um homem honesto, virtuoso, com uma lanterna em plena luz do dia... 

Não sei se Vergílio Ferreira a terá encontrado.

Contudo, registo aqui o seu desideratum, o qual chega até nós 

através deste belo poema.




Vergílio António Ferreira, foi um escritor e professor portuguêsA sua vasta obra, geralmente dividida em ficção (romanceconto), ensaio e diário, costuma ser agrupada em dois períodos literários: o Neo-Realismo e o Existencialismo. Considera-se que Mudança é a obra que marca a transição entre os dois períodos

.O seu nome continua actualmente associado à literatura através da atribuição do Prémio Vergílio Ferreira. Em 1992, foi galardoado com o Prémio Camões. Veja mais, aqui


Nota:

Veja, aqui, texto sobre a obra Mudança.

(Mudança de Vergílio Ferreira: a Guinada Subjectiva,

de Madalena Vaz Pinto)


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Poema - aqui

video - aqui

domingo, 25 de setembro de 2022

Eternidade




Hoje lembrei-me de ti
Esbelto e soberbo nos teus verdes anos
Raio de luz que deslumbrava
Num redemoinho de luz e som.

Adónis vestido de vaidade e força
Nada temias, o mundo era teu
Incauto, pensavas, nada me faltará!

Fugi eu de ti ou tu de mim?

Orgulhosos, muito jovens e belos
Não soubemos ver que a eternidade
Era a única e incomensurável medida
Sobre a qual nós dois repousaríamos.

Dinola Melo



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No passado passado dia 22 saudámos a chegada da 
Primavera 
no Blog "Flor do Campo", da  
Festa linda!!! 



Bom domingo, meus amigos.

Abraços
Olinda


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Flor acima:
Gentileza da querida amiga Rosélia

domingo, 18 de setembro de 2022

A Revolução da Bondade

Acho que a grande revolução, e o livro «Ensaio sobre a Cegueira» fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estariam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem pelo este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram da sua vida uma sistemática acção perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes.
José Saramago, in " Folha de S. Paulo, Outubro 1995"





Interessante o facto de José Saramago citar este seu livro, "Ensaio sobre a Cegueira", onde o caos se instala através da chamada cegueira branca que afecta todos ou quase, lugar de horror em que os instintos mais baixos do ser humano se manifestam numa dança macabra. 

Talvez, depois do caos a bondade se instale para mostrar que ainda existe algo de bom no íntimo da humanidade. De tal cegueira escapa uma mulher, testemunha dos horrores perpetrados naquela sociedade sem rumo. 

Em continuação desse livro surge "Ensaio sobre a lucidez", em que o terreno explorado são os votos em branco que invadem o acto de eleger representantes do povo. Nesse contexto são postos em prática perseguições e torturas que denotam total ausência dos princípios éticos que norteiam a vida em democracia.

Personagens do livro "Ensaio sobre a cegueira" são encontrados neste livro, o que me causou um certo espanto e, ao mesmo tempo, um estranho sentimento de solidariedade, acompanhando-os eu pelas provações por que voltam a passar.  

Continua em foco, no "Xaile de Seda", o Centenário de José Saramago. 

Bom domingo, meus amigos.

Abraços
Olinda


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Texto em itálico: Citador
Imagem: Pixabay

domingo, 11 de setembro de 2022

A Palavra renova-se no poema





A PALAVRA

A palavra renova-se no poema.
Ganha cor,
ganha corpo,
ganha mensagem.

A palavra no poema não é estática,
pois, inteira e nua se assume
no perfeito,
no perpétuo movimento
da incógnita que a adoça.

A palavra madura é espetáculo.
Canta.
Vive.
E respira. Para tudo isso
basta
uma mão inteligente que a trabalhe,
lhe dê a dimensão do necessário
e do sentido
e lhe amaine sobre o dorso
o animal que nela dorme destemido.

A palavra é ave
migratória,
é cabo de enxada,
é fuzil, é torno de operário,
a palavra é ferida que sangra,
é navalha que mata,
é sonho que se dissipa,
visão de vidente.

A palavra é assim tantas vezes
dia claro
sinal de paisagem
e por isso é que à palavra se dá,
inteiramente,
um bom poeta
com os seus sonhos,
com os seus fantasmas,
com os seus medos
e as suas coragens,
porque é na palavra que muitas vezes está,
perdido ou escondido,
o outro homem que no poeta reside.

(1963-2014)


Narração do "Mundo dos Poemas"

Escritor moçambicano, Eduardo Costley White nasceu em Quelimane (Moçambique), a 21 de novembro de 1963 e faleceu a 24 de agosto de 2014. Numa preocupação com as origens, Eduardo White tenta na sua poesia refletir sobre a sua história e sobre Moçambique, numa tentativa de apagar as marcas da guerra e de dignificar a vida humana. Para isso, escreve através de um amor diversificado que pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela própria poesia, sempre num tom de ternura, de onirismo, de musicalidade e, por vezes, de erotismo. (Daqui)


Mais deste autor aqui, no Xaile de Seda

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Poema - daqui
Vídeo  - daqui

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Ocupação Feliz

Resolvi examinar as diversas ocupações que as pessoas têm na vida, procurando escolher a melhor entre elas; e, sem desejar dizer algo a respeito delas, concluí que não poderia fazer nada melhor do que continuar naquela que encontrei para mim, ou seja, ocupando toda a minha vida no cultivo da razão e na busca do conhecimento da verdade, seguindo o Método que prescrevi a mim mesmo. Eu senti um contentamento tão profundo desde que comecei a usar esse Método, que não acreditava que alguém pudesse obter algo mais doce ou mais inocente nesta vida; e, ao continuar a descobrir, a cada dia, por meio dele, verdades que me pareciam dotadas de certa importância e das quais os outros não estavam em geral cientes, a satisfação que senti preencheu a minha mente de maneira tão plena que nada mais de modo nenhum me afectava.

René Descartes, (1596-1650) 
in Discurso do Método

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A Felicidade reside, por vezes, em tão pouco! Difere de pessoa para pessoa, de conformidade com a sua formação, com a terra que habita, com o ambiente onde cresceu... ou com o momento em que determinada situação intelectual eclode.

Por isso, não me espanta que as elucubrações filosóficas de Descartes lhe tenham trazido essa satisfação que lhe preencheu a vida. Esvaziando o cérebro de tudo o que aprendera, dos ensinamentos da Escolástica ao conceito de Deus, eis que o nosso homem encontra a ocupação suprema. 

Conhecemos sobejamente a máxima Cogito, ergo sum, que o filósofo descobre depois de duvidar de todas as coisas, prevalecendo como verdade incontestável a sua própria existência como "coisa" pensante. Método tão perfeito para ele que nada nem ninguém o afectava, como ele próprio afirma.

Será que isso bastaria?

Parece que sim, para Descartes. Outros filósofos viriam contestar essa descoberta, dizendo de sua justiça, nomeadamente, G.Leibniz, F.Nietzsche, B. Russell, tendo este frisado: no máximo, Descartes poderia inferir que há o pensamento, e não que “eu penso".

Já António Damásio, médico neurologista português, que trabalha no estudo do cérebro e das emoções, escreveu o livro "O Erro de Descartes", que muita polémica tem suscitado. Descartes errou, segundo Damásio. Mas em quê? Muitos perguntam porque é que não reclama essa atenção para Platão ou Kant, pela natureza das suas posições.

Mas o próprio autor diz que "Cogito ergo sum", é a afirmação mais famosa da história da filosofia. Assim, porque não escrever um livro falando das emoções e dos sentimentos, do corpo e do cérebro, pondo Descartes em evidência quanto mais não seja no título






Mas é de Felicidade que aqui se fala. Que pode surgir num sorriso, no perfume
de uma flor, no brilho de uma linda manhã. Nas coisas simples da vida, em suma.


Mas também pode ser breve, como nos diz Vinicius, na voz de
 Tom Jobim



 A Felicidade é como a pluma 
que o vento vai levando pelo ar


Desejo-vos uma boa semana, meus amigos.

Abraços
Olinda



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Análise crítica de "O erro de Descartes" - aqui

-Ter em atenção "Meditações Metafísicas", de Descartes.

Imagens: pixabay

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Massacre de Wiriyamu

Veio a público a notícia do pedido de desculpas do Primeiro-Ministro do Governo de Portugal, António Costa, pelo Massacre de Wiriyamu, ocorrido em 1972, em Moçambique, nestes termos:

“Não posso deixar aqui de evocar e de me curvar perante a memória das vítimas do massacre de Wiriamu, acto indesculpável que desonra a nossa História”, afirmou o primeiro-ministro, perante o Presidente da República de Moçambique, em Maputo.

Em que consiste afinal esse massacre?

Em 2021, estando eu a pesquisar sobre a História e Literatura de Moçambique deparei-me com esse acontecimento. Fui de link em link tomando conhecimento de todo aquele horror, com o nome de código "Operação Marosca", informação que disponibilizo abaixo, para quem quiser lê-la.

Um facto interessante que destaco é que o pedido de desculpas já tinha sido apresentado há anos aos sobreviventes, cara a cara, olhos nos olhos, por um Oficial português que fez parte da Operação.

Ali, no local, com eles, teve de sofrer a vergonha, arcando com a responsabilidade própria e a dos outros, não se esquivando às palavras amargas de quem perdera os seus entes queridos nesse fatídico dia 16 de Dezembro de 1972. Uma Via Sacra registada em videos.

Para que conste.


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Ver aqui 

É fácil pedir perdão - Entre as brumas da Memória

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Eis os links:

https://observador.pt/especiais/wiriamu-teve-aspetos-de-genocidio/#

https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Wiriyamu

http://massacredewiriyamu.blogspot.com/2008/ Videos Antonino Melo

https://www.jornaldemonchique.pt/o-massacre-portugues-de-wiriamu-uma-extraordinaria-investigacao/

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Intimidade

 



Entrelaço minhas pernas nas tuas

estendo o braço,

chego-me

até sentir na tua respiração

os pombos que regressam,

tremor dum pinheiro fustigado

pelas mãos de setembro.


Eduardo Bettencourt Pinto



À Toi
Joe Dassin


Bom fim de semana, meus amigos.
Abraços
Olinda


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Poema, in: Um Dia qualquer em Junho
pg. 41
Imagem: Desenho de António Ramos Rosa