segunda-feira, 29 de maio de 2023

Da calma e do silêncio






Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

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Telepatia


LARA Li



Boa semana, meus amigos.

Abraços
Olinda


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Poema: daqui
em "Poemas da recordação e outros movimentos". 
Nandyala, 2008.

Ver post aqui, no Xaile de Seda, sobre Conceição Evaristo

sexta-feira, 26 de maio de 2023

POVO

Nação pequena que foi maior do que os deuses em geral o permitem, Portugal precisa dessa espécie de delírio manso, desse sonho acordado que, às vezes, se assemelha ao dos videntes (Voyants no sentido de Rimbaud) e, outras, à pura inconsciência, para estar à altura de si mesmo. Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho.

Quando se sonharam sonhos maiores do que nós, mesmo a parte de Sancho que nos enraíza na realidade está sempre pronta a tomar os moinhos por gigantes. A nossa última aventura quixotesca tirou-nos a venda dos olhos, e a nossa imagem é hoje mais serena e mais harmoniosa que noutras épocas de desvairo o pôde ser. Mas não nos muda os sonhos.


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Ano do Centenário de Eduardo Lourenço (de Faria), que foi um professor e filósofo português. Recebeu diversos prémios e condecorações, incluindo o Prémio Camões em 1996. Tem uma biblioteca com o seu nome na Guarda.

O Centro de Estudos Ibéricos criou em sua homenagem o Prémio Eduardo Lourenço, atribuído desde 2005 e destinado a agraciar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura, da cidadania e da cooperação ibéricas.

Grande Pensador, ele próprio disse que não sabia fazer mais nada do que pensar. No texto acima mostra alguma compreensão por com este povo que sonhou sonhos maiores do que o seu tamanho. Porém, em "O Labirinto da Saudade", é bastante contundente nas suas apreciações sobre a mentalidade portuguesa, em geral.



AMÁLIA RODRIGUES
e a sua voz de 
ouro

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Ainda sobre o: “Manual de Estudo da Língua Cabo-verdiana e Projecto de Gramática para o Ensino do Kriol a Estrangeiros”





Na sequência das minhas intervenções através do Xaile de Seda para a divulgação do livro de Manuel R. Melo Santos,

“Manual de Estudo da Língua Cabo-verdiana e Projecto de Gramática para o Ensino do Kriol a Estrangeiros”

trago a notícia televisiva do lançamento do mesmo, com uma pequena entrevista ao autor que se expressa em crioulo, na variante de São Vicente (Cabo Verde).


Agora, tempo para ouvir um pouco da bela música cabo-verdiana, a Morna, na voz quente de 

LURA



Trazê-me so um cartinha


Como sabemos, a "Morna" foi classificada como Património Cultural Imaterial da Humanidade, em 2019, pela UNESCO.


Tenham uma boa semana, meus amigos.

Abraços
Olinda


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Veja os posts anteriores, sobre o tema:

 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Clarinho, clarinho...

Um dia, os babilónios levantaram-se do chão, roubaram o fogo dos deuses e gravaram na pedra: - nenhum poder sobre a Terra é superior ao império da Lei...

E, entre eles, nomearam um Conselho de Sábios, para que assim vele...

Hammurabi, o legislador, não se conforma e proclama - Babilónicos, a lei sou eu!...

Obsequioso, o Conselho de Sábios: Grande Hammurabi, teu poder é imenso e sábia a tua lei desde que se conforme com a Lei maior que nós velamos...

E devolve uma, duas, três vezes as leis de Hammurabi. Que agreste barafusta, investindo: aclarem vossas decisões - quando não, serão todos escrutinados!...

E culpa o Conselho de Sábios pelo afundamento do barco...

000

E um velho, cego e dando-se ares de profeta, murmura: clarinho, clarinho que até um cego vê!... E exorta: Babilónicos, não queiram ser escravos, nem bestas - o Povo é quem mais ordena!...

Manuel Veiga, in"Notícias de Babilónia e outras Metáforas"- pg 16


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Que livro é este? Publicado em 2015, ele é composto de textos de crítica político-social nos quais se reconhecem os intervenientes por estarmos a viver, na altura, a realidade neles descrita.

Entre os referidos textos, aparecem estas sátiras, tomando Babilónia, os babilónios e Hammurabi como protagonistas. A cereja no topo do bolo é uma entidade diferente em cada situação que, no fim, profere as suas exortações ou sentenças.

Duro e sem contemplações temos nesta obra um Manuel Veiga
versátil, analisando um dos momentos mais difíceis
 da nossa História, dos últimos tempos.




Presentemente, se não temos crises, inventamo-las. E assim passamos os dias em discussões estéreis, no diz-que-diz, em recriminações, em posturas deprimentes de personalidades institucionais que deviam estar a trabalhar para o bem comum.

Bom fim de semana, meus amigos.

Abraços.

Olinda 


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Imagem:
"Os Jardins Suspensos da Babilónia"...
nunca foram encontradas evidências arqueológicas 
irrefutáveis de sua existência.Daqui


segunda-feira, 15 de maio de 2023

A Concha





A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa. . . Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

  (1901-1978)

Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, foi um poeta, romancista, cronista, académico e intelectual açoriano que se destacou como autor de Mau Tempo no Canal, e professor da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa.


Tenham boa semana, meus amigos.
Abraços
Olinda






Oferta da querida amiga 

Gracita




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Poema: daqui

(Poesia, 1935-1940)

Paisagem da Ilha Terceira

sábado, 13 de maio de 2023

AVE-MARIA

 

À minha Mãe


Ave Maria, tão pura,
Virgem nunca maculada
Ouvi a prece tirada
No meu peito de amargura!

Vós que sois cheia de graça,
Escutai minha oração,
Conduzi-me pela mão
Por esta vida que passa!

O Senhor, que é vosso filho
Que seja sempre connosco,
Assim como é convosco
Eternamente o seu brilho!

Bendita sois vós, Maria,
Entre as mulheres da terra;
A vossa alma só encerra
Doce imagem de alegria!

Mais radiante do que a luz
E bendito, oh Santa Mãe,
É o fruto que provém
Do vosso ventre, Jesus!

Gloriosa Santa Maria,
Vós que sois a Mãe de Deus
E que morais lá nos céus,
Velai por mim cada dia!

Rogai por nós, pecadores,
Ao vosso filho, Jesus,
Que por nós morreu na cruz
E que sofreu tantas dores!

Orai, agora, oh Mãe qu'rida
E (quando quiser a sorte)
Na hora da nossa morte,
Quando nos fugir a vida!

---

Ave Maria, tão pura,
Virgem nunca maculada,
Ouvi a prece tirada
No meu peito de amargura.


7-4-1902
(Data provável em que este poema foi escrito)

in Poesia do Eu
pgs. 457 a 459



Estamos perante uma paráfrase de F. Pessoa
daquela oração que bem conhecemos: 
Ave-Maria*,
e dedica-a à sua Mãe, como se lê acima.



AVE-MARIA

Schubert

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No dia 14/5 festeja-se o "Dia das Mães" no Brasil.

Associo-me, nesse dia, aos amigos 

brasileiros que visitam este Xaile.

Abraços

Olinda



Da amiga Rosélia 



Da amiga Fê




Da amiga Gracita


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Obra essencial de Fernando Pessoa:
Poesia do Eu
Ed. Richard Zenith

*Nota: Diz-se que, sendo Maria vocativo, a expressão devia ser escrita assim:
"Ave, Maria!",  isto é,  com uma virgula em vez de hífen.


terça-feira, 9 de maio de 2023

Ala dos Namorados

 


Ala dos Namorados


SOLTA-SE O BEIJO

Espreito por uma porta encostadaSigo as pegadas de luzPeço ao gato "xiu" para não me denunciar
Toca o relógio sem cucoDá horas à cusquice das vizinhas e euConfesso às paredes de quem gostoElas conhecem-te bem
Aconchego-me nesta cumplicidadeDeixo-me ir nos trilhos traçadosPela saudade de te encontrarAinda onde te deixei
Trago-te o beijo prometidoSei o teu cheiro mergulho no teu tocarAbraças a guitarra e voas para além da lua
Amarro o beijo que se quer soltarEspero que me sintas para me entregarA cadeira, as costas, o cabelo e a cigarrilhaA dança do teu ombro...
E nesse instante em que o silêncioÉ o bater do coraçãoFecha-se a portaPára o relógioAs vizinhas recolhemTu olhas-me...
Tu olhas-me...
Trago-te o beijo prometidoSei o teu cheiro, mergulho no teu tocarAbraças a guitarra e voas para além da lua
Amarro o beijo que se quer soltarEspero que me sintas para me entregarA cadeira, as costas, o cabelo e a cigarrilhaA dança do teu ombro...
E, nesse instante em que o silêncioÉ o bater do coraçãoFecha-se a portaPára o relógioAs vizinhas recolhem
Solta-se o beijo, o gato mia...
Tu olhas-me...
Solta-se o beijo, o gato mia...
Uma Festa! 
E a ajudar, a Catarina Furtado (letra) e a Sara Tavares (voz)

Talentosos todos!

João Gil, Manuel Paulo e João Monge. Mais tarde, José Moz Carrapa. A banda, criada em 1992, descobre Nuno Guerreiro num espectáculo de Carlos Paredes.

Aqui estão eles num dos seus melhores momentos. O seu nome, Ala dos Namorados, remete-nos para a História Pátria, mais precisamente para a Batalha de Aljubarrota (1385). 



Com o exército dividido em alas, a dos Namorados era composta pelos combatentes mais jovens. Sabemos que a táctica do quadrado, idealizada por D. Nuno Álvares Pereira e posta em prática naquela batalha, dita a vitória sobre os castelhanos, debelando a crise de 1383-1385. E a Dinastia de Avis com o seu primeiro rei, D.João I, aclamado nas Cortes de Coimbra, dura até 1580. A partir dessa data também sabemos o que se seguiria, ou seja, a saga dos Filipes por sessenta anos.

Na actualidade brincamos às crises, como baratas tontas.

Boa semana, meus amigos.

Abraços

Olinda



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"Solta-se o Beijo"
Música: João Gil
Letra: Catarina Furtado
Vozes: Sara Tavares e Nuno Guerreiro

Imagem: Painel de azulejos pintado por Jorge Colaço (1922) representando um episódio da batalha de Aljubarrota. No Pavilhão Carlos LopesLisboaPortugal.


domingo, 7 de maio de 2023

Cantiga de Maio

 




Ó mãe, regressa a mim. Embala-me no tempo em que os teus lábios rebentavam de ternura. Ó mãe, ó minha mãe, ó rio de água pura, correndo pelas veias. Pelo vento.

Ó mãe, que és mãe de Deus, que és mãe de mim e mãe de Antero e de Camões, e mãe de quem lhe faltam as palavras como se faltasse o ar. E são assim uma espécie de filhos de ninguém. Abre o teu ventre, mãe. Acorda. Vem parir-me. E vem sofrer a minha dor uma vez mais. Morrer de amor por mim. Vem impedir-me o medo. Ensinar-me a amar a luz dos animais. 

Ó mãe, ó minha mãe. Ó pátria. Ó minha pena. Que me pariste, assim, temperamental. Mãe de Ulisses, de Guevara e mãe de Helena. E mãe da minha dor universal. 

Joaquim Pessoa 
   (1948-2023)
in 'Ano Comum' 

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Este poema já tinha sido publicado por mim, aqui, no Xaile de Seda, em 2018. Tal como então dedico-o a Todas as Mães, praticamente com as mesmas palavras que escrevi nessa altura:

Este autor, sempre a maravilhar-me com os seus textos, os seus poemas, as suas emoções. Palavras que vão direitinhas ao coração dirigidas à sua Mãe, à minha Mãe, às vossas Mães, a todas as Mães e, quem sabe, à Mãe-Pátria, à Mãe-Universo.




Cantiga do Maio : Carlos Paredes
Vozes: Natália Casanova, Nuno Guerreiro
Viola: Fernando Alvim
Acordeão e órgão: Manuel Paulo
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FELIZ DIA DA MÃE




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Imagem: Pixabay

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Senhora vá de si, soberba e altiva*

 



Vozes-Mulheres

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.



Hoje, dia de homenagem à Língua Portuguesa, trago uma representante da Literatura Brasileira tendo em conta que o Brasil é o pais que maior contributo dá à manutenção do idioma, pelo número de falantes que apresenta. 

O Português é ali Língua Oficial, o mesmo acontecendo nas cinco ex-colónias africanas - Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Não nos esqueçamos de Timor-Leste. E também da Guiné Equatorial, com as nuances que lhe conhecemos.

Sendo a Língua Portuguesa uma língua viva, desde a época dos Descobrimentos ela viajou pelos cinco continentes e, como resultado, foi adquirindo vários termos desses espaços podendo-se dizer que existem tantas variantes quantos os países que a têm como língua oficial.

Conceição Evaristo é uma linguista e escritora brasileira.
É uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil, escrevendo nos gêneros da poesia, romance, conto e ensaio. Como pesquisadora-docente, seus trabalhos focavam na literatura comparada. daqui

Este poema não só foca um dos momentos mais tristes do passado esclavagista como também se centra no papel da Mulher, em especial a mulher escrava. E Vem até ao presente...



Velha Infância
Maria Monte_Os Tribalistas


*NOTA
O título - Um dos versos do poema-carta do poeta renascentista português António Ferreira, em defesa da Língua Portuguesa.


Tenham um dia agradável, meus amigos.

Abraços 
Olinda


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Poema - daqui

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O Reino das Casuarinas

 



Imaginemos um reino que põe a tónica na primazia da microeconomia familiar sobre a macroeconomia no processo do crescimento e do desenvolvimento humano, que cria o conceito de Ministérios afectivos, isto é, de proximidade com os mais pobres.

Imaginemos um reino onde os partidos políticos não têm assento. Um reino com uma monarquia constitucional, que detém um território, um espaço sem tecto, com os símbolos próprios como a bandeira, em que a escrita é abolida, privilegiando a forma oral de transmissão de ideias.

Um reino cuja Constituição é elaborada sob a forma de provérbios, que prevê eleições, nomeadamente a de um primeiro-ministro. Os seus elementos detêm uma amnésia auto-adquirida, tendo todos frequentado o mesmo hospital psiquiátrico.

Um reino em que a utopia tem lugar. Eu quase que acreditava que teria futuro. Mas há um pormenor que fez com que caísse pela base. Um dos seus fundadores tinha optado por não utilizar a fala.

Eis uma forma quase redutora de apresentar "O Reino das Casuarinas", reconheço. Mas há mais, muito mais. Trata-se da Angola pós-independente, na qual surge uma geração de escritores a que se chamou a "Geração de 80". Geração que não vê a realização das suas expectativas da forma como as idealizava.

José Luís Mendonça é o autor. Nascido em 1955 na província do Kuanza-Norte, Golungo-Alto, Angola, oferece-nos neste livro a análise das suas preocupações sociais e políticas através do protagonista Nkuku. Mas também vai buscar ao personagem Primitivo algumas das suas mais profundas ideias.

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Anjo da Guarda

Yola Semedo



Tenham uma óptima semana, amigos.
Olinda



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Leia, se lhe interessar:
Imagem: Daqui