segunda-feira, 25 de maio de 2020

Tu És em Mim Profunda Primavera




O sabor da tua boca e a cor da tua pele,
pele, boca, fruta minha destes dias velozes,
diz-me, sempre estiveram contigo
por anos e viagens e por luas e sóis
e terra e pranto e chuva e alegria,
ou só agora, só agora
brotam das tuas raízes
como a água que à terra seca traz
germinações de mim desconhecidas
ou aos lábios do cântaro esquecido
na água chega o sabor da terra?

Não sei, não mo digas, tu não sabes.
Ninguém sabe estas coisas.
Mas, aproximando os meus sentidos todos
da luz da tua pele, desapareces,
fundes-te como o ácido
aroma dum fruto
e o calor dum caminho,
o cheiro do milho debulhado,
a madressilva da tarde pura,
os nomes da terra poeirenta,
o infinito perfume da pátria:
magnólia e matagal, sangue e farinha,
galope de cavalos,
a lua poeirenta das aldeias,
o pão recém-nascido:
ai, tudo o que há na tua pele volta à minha boca,
volta ao meu coração, volta ao meu corpo,
e volto a ser contigo a terra que tu és:
tu és em mim profunda primavera:
volto a saber em ti como germino.

Pablo Neruda, 

in "Os Versos do Capitão"




PABLO NERUDA, cujo nome de registro civil era Neftalí Ricardo Reys Basoalto, nasceu a 12 de julho de 1904, em Parral, Chile. O poeta morreu na capital de seu país, Santiago, em 23 de setembro de 1973. A sua poesia se caracteriza pela invenção e reinvenção de temas profundamente ligados ao amor e à vida.
Mais ...  no BLOG VEREDAS - de Pedro Luso de Carvalho

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Poema - daqui
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terça-feira, 19 de maio de 2020

Círculo




Nascemos, morremos,
Tornamos a nascer em cada sonho, cada ideia, cada gesto.
Cada dia que chega é flor que se abre ao sol
Com novo cheiro, nova cor, nova beleza.


Nossos desejos são asas que se elevam
Cruzando o céu da vida em voo largo
Mas nunca chega, nunca param
Enquanto corre o sangue e a vida cresce e rola.

O fim de um sonho é o começo de outro
Cada horizonte outro horizonte aponta,
E uma esperança morta outra esperança aquece.

Há magoas, alegrias, desesperos
E a gente insatisfeita
Enquanto ri ou chora
Ou canta ou fica triste
Vai nascendo, morrendo e renascendo
Cada dia, cada hora, cada instante
Noutra vida, noutro sonho, noutra esperança



Aguinaldo Brito Fonseca, poeta cabo-verdiano da geração do “Suplemento Cultural”, com Gabriel Mariano, Ovidio Martins, Onésimo Silveira, Carlos Alberto Monteiro Leite, faleceu 25 de Janeiro de 2014, em Lisboa. Tinha 92 anos e estava radicado em Portugal desde a segunda metade dos anos 40 do séc. XX. aqui






Leia no Xaile o ciclo dedicado a este poeta - aqui


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Poema - daqui
1ª imagem : aqui
2ª imagem : aqui


sábado, 16 de maio de 2020

A Flor





Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis.A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!


Almada Negreiros





José Sobral de Almada Negreiros TrindadeSão Tomé e Príncipe7 de Abril de 1893 — Lisboa, 15 de Junho de 1970) foi um artista multidisciplinar português que se dedicou fundamentalmente às artes plásticas (desenhopintura, etc.) e à escrita (romancepoesiaensaiodramaturgia), ocupando uma posição central na primeira geração de modernistas portugueses.
Almada Negreiros é uma figura ímpar no panorama artístico português do século XX. Essencialmente autodidata (não frequentou qualquer escola de ensino artístico), a sua precocidade levou-o a dedicar-se desde muito jovem ao desenho de humor. Mas a notoriedade que adquiriu no início de carreira prende-se acima de tudo com a escrita, interventiva ou literária. Almada teve um papel particularmente ativo na primeira vanguarda modernista, com importante contribuição para a dinâmica do grupo ligado à Revista Orpheu, sendo a sua ação determinante para que essa publicação não se restringisse à área das letras. Aguerrido, polémico, assumiu um papel central na dinâmica do futurismo em Portugal: "Se à introversão de Fernando Pessoa se deve o heroísmo da realização solitária da grande obra que hoje se reconhece, ao ativismo de Almada deve-se a vibração espetacular do «futurismo» português e doutras oportunas intervenções públicas, em que era preciso dar a cara". Mais



Bernardo Sassetti - 1970-2012 (Maio)


Bom fim de semana, meus amigos.

Abraços.



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Texto - daqui
1ª imagem - daqui
2ª imagem - daqui

terça-feira, 12 de maio de 2020

Premência dos nossos dias: produção nacional e regional (europeu)





Já se percebeu uma coisa: é fundamental apostarmos na produção nacional. As deslocalizações no sentido de se conseguir pagar salários mais baixos poderá ser bom porque os produtos são mais baratos. Mas só se o nosso mundinho continuasse como queremos, isto é, sereno, do nosso jeito, sem ataques repentinos e incontroláveis, no caso presente, por um vírus que não escolhe as suas vítimas.

Fechados sobre nós próprios, com dificuldades em importar o que quer que seja, viu-se o perigo de se morrer à fome quando não da doença, sem se poder fazer face à necessidade de materiais de protecção, equipamentos, medicamentos. 

Por isso, é importantíssimo pensarmos numa solução. E porque pertencemos a um bloco chamado europeu, há que chegar a solução de conjunto, elaborando projectos nesse sentido. E pô-los a funcionar. É urgente reactivar indústrias e o saber fazer. Há muito talento não aproveitado. 

A economia global é uma visão muito bonita e facilitadora de uma certa preguiça mental. O abanão que estamos a receber é um recado que não podemos ignorar. Ficámos nus perante a nossa incompetência e tomámos conhecimento de situações que desconhecíamos. A nossa dependência de terceiros é atroz.

Saibamos aproveitar esta lição...

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Veja aqui:
o Programa Prós e Contras:
"A vida depois da Covid-19"
11/05/2020

Imagem: daqui 

sábado, 9 de maio de 2020

Europa - o rapto ou o repto?

A bela Europa era filha do rei da Fenícia, Agenor. Foi raptada por Zeus que se disfarçou de touro para que sua ciumenta mulher, Hera, não percebesse. Ele levou Europa para a ilha de Creta, o que levou Cadmo, seu irmão, a procurá-la e, na jornada, fundar a cidade de Tebas. Em Creta, Europa teve três filhos: Minos, Radamanto e Sarpedão.



Mitologias à parte, há referências pré-históricas da sua existência desde os primeiros humanos. Os relatos mais antigos colocam o Homo sapiens no continente em 35000 anos a.C. Mas muito antes já andavam por cá o Homo erectus e o Neanderthalis. Por aqui se vê que a sua evolução até aos dias de hoje é de monta. 

Tenho especial predilecção académica pela Formação da Europa Medieval, depois da Queda do Império romano, por aquela condição de dependência de homem a homem, escravidão quase. Por aquela divisão de trabalhos e de classe - nobreza, clero, povo. Claro que não se pode falar de classe, nessa altura. E povo? Também não. Só depois da Revolução Francesa se poderá empregar tal palavra com propriedade.

Da Europa Medieval, de mil anos, ao Renascimento um salto qualitativo.


Europa, desenhada pelo cartógrafo antuérpio Abraham Ortelius em 1595


Tanto caminho percorrido, não? Penso que é onde se poderá ir buscar os fundamentos da Europa de hoje, com todas as alterações de mentalidade, com a novidade do Renascimento que coloca no homem a medida de todas as coisas, tendo como pilar a recuperação da cultura clássica, que em muito devemos à preocupação árabe de a trazer para a Peninsula, transcrevendo-a e comentando-a. Um exemplo, Averróis, (Córdova), "O Comentador". 

Toda a produção de pensamento do período que ficou conhecido como Iluminismo, é onde vamos sempre beber ideias. E na própria asserção de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, tão boa para citar, de que a Europa tanto se orgulha. 

Voltando um pouco atrás, o século XVII também me atrai. É donde sai toda aquela gente de alta estirpe nas areas filosófica e científica. E desembocará no século XVIII, como bem sabemos, e no século XIX com revoluções políticas de renome e com todas as invenções que vêm alterar para sempre a nossa vida.

Trazemos no nosso íntimo a perturbar-nos as duas grandes guerras, do século XX. A segunda guerra mundial mais perto de nós. Da devastação da Europa surgiriam homens com visão e dinamismo. Jean Monet, um dos da ideia, posta em prática, da União Europeia. Marshall e Shuman e muitos outros, com planos económicos e solidários que deram os seus frutos. Durante mais de 70 anos, exceptuando-se a Guerra Fria,(EUA vs. URSS) viveu-se, de um modo geral, em paz e desenvolvimento social e económico, com altos e baixos como é natural.




Hoje, aqui estamos. Dia da Europa, diz-se. Repetindo-se as mesmas palavras gastas. Ansiando-se por um golpe de asa de algum ser iluminado. Mas não há. O tempo dos heróis passou. Somos só nós. A Europa não será raptada indo reafirmar-se num outro lado. Agora só temos um repto que lançamos a nós próprios. É agir ou soçobrar.


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Orquestra Geração- Hino da Alegria
A Orquestra Geração é um projeto de intervenção social através da prática orquestral. Foi criada em 2007 na Escola Básica Miguel Torga no Casal de S. Brás na Amadora e encontra-se actualmente instalada em 22 escolas básicas e secundárias nos municípios de Almada, Amadora, Lisboa, Loures, Oeiras, Sesimbra, Vila Franca de Xira (Orquestra de Vialonga) e em Coimbra.
Imagens: Net
excerto transcrito em itálico - aqui

Leia no Xaile alguns posts sobre a União Europeia

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Libertação

E porque o teu coração encerra
a saudade do mar e a saudade da terra
-tua ilha é grande.
E porque teus sentidos traçam norte e sul
e traçam leste e oeste norte e sul
-tua ilha é grande.
E porque tens os olhos virados para o azul
para lá do azul e para cá do azul
-tua ilha é grande
e porque o teu sangue vive o destino de tantas raças
no mesmo latejar de ansiedades e resignações dores alegrias e
desgraças
- tua ilha é grande
  
Manuel Lopes  

Poeta sensível e ensaísta perspicaz, é no entanto na ficção que Manuel Lopes mais se irá distinguir, retratando com particular empatia humana e mestria artística, através das personagens que cria, a tragédia das estiagens de Cabo Verde.
Os seus romances Chuva Braba (1956) e Os Flagelados do Vento Leste (1960), bem como o livro de contos O Galo Cantou na Baía (1959), foram alvo de tradução para várias línguas e agraciados com os prémios literários Fernão Mendes Pinto (Chuva Braba e O Galo Cantou na Baía) e Meio Milénio do Achamento das Ilhas de Cabo Verde (Os Flagelados do Vento Leste). aqui  




Mar di Tarrafal

Fonte de agua
Boca de espuma
Ronco acordado
Ferbura frio
Corpo esculpido
Ancas de moças
Ossos de bedjo
Paraiso vira-lata
Mar di Tarrafal

Ceu di palbessa
Voo rastero
Renda branca
Saiona azul
Spanto de menino
Concha de quidja
Modjado eterno
Paraíso vira-lata

Mar di Tarrafal
Conforme maré
Conforme maré
...
Ceu di palbessa
Ronco acordado
Renda branca
Saiona azul
Spanto de menino
Concha de quidja
Modjado eterno
Paraíso vira-lata

Mar di Tarrafal
Conforme maré
Conforme maré
...
Nota:

Hoje, 05/05, Dia Mundial da Língua Portuguesa, idioma que neste Xaile de Seda tem lugar de destaque, procurando-se evidenciar a sua viagem pelo mundo e as alterações e evolução por que tem passado ao longo dos tempos.

… Floreça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua, e já, onde for,
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se tèqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor.
...
António Ferreira
Sec. XVI 


Leia mais aqui no Xaile de Seda.


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Poema - in: Crioulo e outros, 1964 

Ver aqui - MÁRIO LÚCIO
"Biografia do Língua" - aqui no Xaile

Letra da música: aqui
Música cantada em crioulo de Santiago. 
"Letra" transcrita num quase português.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

GRAÇA PIRES - "A solidão é como o vento"



Leu a notícia no jornal:

"Menina de nove anos agredida pela mãe".
Sabia que era dela que falavam
e escreveu no seu diário:
mãe, o que é que aconteceu?
O sorriso que começava inteiro nos teus olhos
tornou-se estrangeiro em tua boca.
Lembro-me do instante
em que começaste a fitar-me obliquamente,
como se um cerco de amordaçasse o olhar.
Depois, sem suspeitares,
tinhas as mãos vulneráveis à violência.
O que é que nos aconteceu, mãe?
Como dizer o teu andar inquieto, ou calar
o teu rosto cavado por uma qualquer angústia?
O que é que te aconteceu, mãe?
De hoje em diante usarei no tornozelo
uma pulseira negra, em sinal de protesto,
por me teres privado tão cedo da tua alegria.
Pg.46

Poemas que falam bem do estilo da Autora, da sua prodigiosa propensão em ir ao fundo das emoções e sentimentos humanos.

Parabéns, Graça Pires.






Encontrou-o à entrada do deserto

absorto, como se conhecesse
todas as invocações do silêncio.
Lia-se nos olhos dele a atracção pelo vento,
pelas areias, pelo espaço imenso, pela solidão.
Ela saía do deserto. O mesmo deserto.
Trazia um cacto murcho em cada mão
e um rio seco a escamar-lhe a pele.
Olharam-se. E ela contou-lhe.
Contou-lhe das vezes que se afogou no chão
pensando que era água;
como rebentaram seus lábios pela sede interminável.
Disse-lhe que quase morreu com saudades do mar;
que bebeu o próprio sangue
para curar a febre e o delírio.
Falou-lhe do medo e do cansaço
que venceu cambaleando, rastejando,
dormindo agarrada à noite.
Ele hesitou.
Depois, com uma quietude
que só nos prodígios acontece,
pegou-lhe na mão e foi com ela até ao mar.
Pg. 61







Hoje, lançamento no Facebook - Poética Edições.
(01/05)


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BREVE RESENHA SOBRE O LIVRO DE GRAÇA PIRES, "A SOLIDÃO É COMO O VENTO" - AQUI