quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

"Criança, no meu tempo de criança"





ANTIGÜIDADES

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada ...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário alto, fechado,
impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa,
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
— Valha-me Deus!...
As visitas ...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antigüidades ...

Até os nomes, que não se percam:
Dona Aninha com Seu Quinquim.
Dona Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita-alta, magrinha.
Lili-baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia croché.
E, diziam dela línguas viperinas:
"— Lili, é a bengala de D. Benedita".
Mestra Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio ...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.

O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
-ai de mim-
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.



Cora Coralina, batizada Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, é um dos grandes patrimônios culturais de Goiás. Sua obra tardia, impõe-se por sua singeleza e autenticidade, na figura confessional de Aninha, em testemunhos de vívida e emocionante prosa poética: transumante de uma exemplaridade altruísta e otimista. Sofrida pelos preconceitos de seu tempo, pelas limitações de sua existência, cultivou um saudosismo sem pieguismo, certa de que os tempos atuais “são infinitamente melhores”, em sua crença na contemporaneidade e no futuro, não obstante as mazelas que soube apontar e denunciar.
...
Antonio Miranda




Mercedes Sosa
Gracias a la Vida que me ha dado tanto


“Mergulhar na obra de Cora, Aninha, a Mulher Guerreira, a Rapsoda, a Cigarra Cantadeira e Formiga Diligente (...) é uma lírica, telúrica e emocionante aventura: é um evocar de dados, lembranças, referências às nossas raízes e, acima de tudo, esplêndida imagem de uma vida forte e sabiamente vivida e muito bem expressa na sua palavra poética”. MARIETTA TELLES MACHADO


Nota: Prometi trazer um poema diferente de Cora Coralina, aquando da "Quinzena do Amor". Este é um poema que retrata uma época, uma crítica severa...a que não faltam os nomes próprios das personagens, "que não se percam", diz a autora.  

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Site de António Miranda: Poesia Ibero-Americana
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/poesia_de_iberoamerica.html

Título do post, "Criança, no meu tempo de criança", verso retirado do poema ora publicado

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A Inocência das Coisas



Todas as vivas coisas fluem sem cessar.
Sem nada pedirem. Ou deverem.

E em sua inocência,
Abrem-se e fecham-se, tricotando, mudas,
A caligrafia do Mundo.

E o ritmo dos caminhos.

In: Perfil dos Dias
pg.63



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Veja mais sobre Manuel Veiga, aqui, no Xaile de Seda

domingo, 14 de fevereiro de 2021

o tempo subitamente solto. um dia, quando a ternura for a única regra da manhã


o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.

eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.

era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

E MAIS

um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.

José Luís Peixoto

José Luís Peixoto (1974) é um narrador, poeta e dramaturgo português,
cuja primeira obra foi publicada em 2000.
foi o mais jovem vencedor de sempre do Prémio Literário José Saramago. Desde esse reconhecimento, a sua obra tem recebido amplo destaque nacional e internacional. Os seus livros estão traduzidos e publicados em 26 idiomas.
A sua obra tem sido abundantemente adaptada para espetáculos e obras artísticas de diversos géneros.


A voz cristalina de Carolina Deslandes. 
E o seu talento.

Valentine's Day

Neste dia, que para muita gente seria de oferendas simbólicas e comemorações com jantares à luz das velas, temos as palavras.
E servimo-nos, aqui, das palavras dos outros para abrilhantar esta maratona, apesar da Covid-19, que quase nos fazia falhar a meta.
Nos textos que apresentei foi privilegiado o amor romântico. Mas o Amor universal e solidário está sempre presente nas minhas publicações, como sabeis.

Agradeço a vossa presença e comentários. 
Irei visitar-vos em breve.

Bom domingo, meus amigos.

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Citador - Textos
Veja José Luís Peixoto, aqui, no Xaile de Seda

sábado, 13 de fevereiro de 2021

A Serenata






Vestida de gemidos de bordão,
lancinâncias de violino,
na noite parada
vem descendo a seresta.

Sumiu-se a cidade barulhenta
inimiga das crianças e dos poetas.

Uma voz canta sentimentalmente um samba.

          Aquele aperto de mão
          não foi adeus!

Os cavaquinhos desmaiam de puro sentimento,
a cidade morreu lá longe,
e a lua vem surgindo cor de prata.

Nessa história de amor todos são iguais,
até o rei volta sua palavra atrás...

O meio tom brasileiro deixa interrogativamente a sua nostalgia.

É hora que os poetas escolheram
para a procura dos seus mundos perdidos...

Amanhã a cidade virá novamente
inimiga dos poetas.
Mas agora ela dorme,
ela não sabe que os poetas falam com Nossenhor,
com a lua e as estrelas,
nesta hora tão lírica...

Menina romântica, irmã
das crianças e dos poetas...
A tua janela, florida de esperanças,
é um mistério que a cidade não entende.

Passa a serenata.
Mas no coração dos que temem a primeira luz do dia que vai chegar
ficam os gemidos do violão e do cavaquinho,
vozes crioulas neste noturno brasileiro
de Cabo Verde.


Oswaldo Alcântara




Osvaldo Alcântara, pseudônimo poético de Baltazar Lopes da Silva, nasceu na Ilha de São Nicolau, Cabo Verde, em 1907. Advogado e filósofo. Professor, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Lisboa. Um dos fundadores da revista Claridade, marco da literatura cabo-verdiana.

Publicou: Chiquinho (romance), São Vicente, 1947; O Dialeto crioulo de Cabo Verde, Lisboa, 1957; Cabo Verde visto por Gilberto Freire, Praia, Cabo Verde, 1956; Antologia da ficção cabo-verdiana contemporânea, Praia, Cabo Verde, 1960.

Conhecemo-lo, não é verdade? 
Veja-o aqui, no Xaile de Seda




Humbertona



Bom fim de semana, amigos.

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Extraídos de

BARBOSA, Rogério Andrade. No ritmo dos tantãs; antologia poética dos países africanos de língua portuguesa; Brasília: Thesaurus, 1991. 165 p.
Site de António Miranda:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/cabo_verde/osvaldo_alcantara.html


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O Amor é o Elixir da Juventude





O amor é um poema. Dói e canta cá dentro. Tem a filosofia das árvores, a lição do mar, os ensinamentos que as aves recolhem quando migram para lá dos desertos, de onde hão-de regressar mais sábias e seguras. O amor é uma causa. Uma luta excessiva com a divindade dos dias e a sua fogueira obscura. Mas também contra o mistério de si mesmo, uma paz que nos dá o cansaço e a loucura infeliz da felicidade, esse primitivo terror dos sinos que tocam como um aviso aos densos nevoeiros súbitos do mar.

O amor é uma casa. Erguida com os beijos, com os versos da noite e o gemido das estrelas. Casa cujas paredes vestem o nosso júbilo, a nossa intuição, a nossa vontade, sobretudo o nosso instinto e a nossa sabedoria. Onde se acende e brilha a luz suplicante da pele comprometida dos amantes. O amor é um gigantesco pequeno mistério, uma estranha generosidade que faz com que, quanto mais damos, com mais ficamos para dar.

Só o amor é o elixir da juventude. Não esse que sempre se procurou nas indecifráveis formulas dos antigos livros de magia e de alquimia, mas aquele que está tão perto de nós que, por vezes, o pisamos sem reparar.

Joaquim Pessoa, 
in 'Guardar o Fogo'


Joaquim Maria Pessoa (1948), conhecido por Joaquim Pessoa, é um poeta, artista plástico, publicitário e estudioso de arte pré-histórica português.

Veja alguns posts dedicados a este autor aqui, no Xaile de Seda







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Texto: Citador

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Eu te amo






Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

Chico Buarque


Francisco Buarque de Hollanda mais conhecido como Chico Buarque (1944), é um músico, dramaturgo, escritor e ator brasileiro. É conhecido por ser um dos maiores nomes da música popular brasileira (MPB). Sua discografia conta com aproximadamente oitenta discos, entre eles discos-solo, em parceria com outros músicos e compactos.
Mais ... Aqui




quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Em todas as ruas te encontro





Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto    tão perto    tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

in "Pena Capital"

Mário Cesariny de Vasconcelos (1923 -2006) foi poeta e pintor, considerado o principal representante do surrealismo português. É de destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e historiador (polémico) das actividades surrealistas em Portugal.
Mais...




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Poema - Citador

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Poeminha amoroso

                              Se eu fosse Cora
                                      Coracoralinava a vida
Corava tudo de prazer
Deixava simples, felizes
E doces as coisas
Cora Coralina
:)





Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu…
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu…

E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.

Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,

o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo…
eu te amo, perdoa-me, eu te amo…



Cora Coralina, pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 — Goiânia, 10 de abril de 1985), foi uma poetisa e contista brasileira. Considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras, ela teve seu primeiro livro publicado em junho de 1965 (Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais), quando já tinha quase 76 anos de idade, apesar de escrever seus versos desde a adolescência.

Mulher simples, doceira de profissão, tendo vivido longe dos grandes centros urbanos, alheia a modismos literários, produziu uma obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás.





Poeminha gostoso, não é? Un peu naïf como convém aos poemas de amor romântico... Veremos em breve esta Mulher, no Xaile de Seda, em poemas fortes de crítica social, crítica aos costumes...

Boa terça-feira, meus amigos.


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Imagem:Pixabay

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Ao encontro de "A Palavra Mágica"

Todos os anos dedico a primeira quinzena de Fevereiro a poemas que falem de Amor nas suas múltiplas facetas. Ao longo do tempo tenho-o anunciado e lançado desafios no sentido de virem nela participar não só lendo como trazendo textos da própria autoria como dos autores preferidos. Desta vez não tive oportunidade de o fazer, por motivos vários, mas a denominada, por mim, de Quinzena do Amor não passou despercebida à nossa querida Emília que me deixou este encantador comentário, no post A Demora.  



 
Sabia, querida Olinda, que ias começar a tua " quinzena do amor", como de costume e apesar de vir aqui sempre ( imperdoável...saio sem nada dizer), só hoje reparei que já começaste a brindar os teus amigos com poemas amorosos. Gostei muito da rosa, essa flor linda que, segundo o autor, sempre buscamos; estamos sempre inquietos, procurando alguma coisa e muitas vezes é tão simples o que desejamos, que poderemos encontrá-lo numa rosa, num girassol, numas florzinhas campestres, olhando o mar, pensando nos amigos , dizendo mais vezes, aos que estão perto de nós que os amamos. Não podemos visitar os amigos, abraçar os que estão doentes ( há-os sempre, infelizmente ) mas podemos telefonar e mostrar-lhes o quanto são importantes na nossa vida o quanto pensamos neles. Há dias de tudo, Amiga....há dias em que faço isso e a conversa fica muito interessante e benéfica para os dois lados, mas há outros em que penso neles, mas fico por aí. Esta situação desanima toda a gente, mas não podemos deixar que ele nos tolha e nos impeça de dar algum alento aos outros e, com isso, a nós mesmos também. Carlos Drummond de Andrade tem um poema onde ele fala da Palavra Mágica, palavra que ele busca todos os dias e que continuará a procurar até a encontrar. Há tantas palavras mágicas, Olinda!!!! Precisamos encontrar a nossa! Para muitos é o Amor e, concordo...sendo sincero, opera verdadeiros milagres e é essencial à nossa vida, ao nosso equilíbrio emocional; mas há outra...que não deixando de ser uma forma de amar, para mim também é mágica, a Amizade , esse sentimento lindo que, juntamente com o amor, faz a vida valer a pena. Obrigada, querida Amiga, pela quinzena do amor, uma oportunidade de conhecermos, com toda a certeza, belos poemas. Que te sintas sempre rodeada de muito amor e que não te faltem também os bons Amigos. Um abraço enorme, carregadinho de amizade
Emilia 🌷 🌻 🙏

Eis pois Drummond de Andrade, o homem do pluriamar, aqui, no Poema em boa hora citado pela querida Emília:

A Palavra Mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade,
in 'Discurso da Primavera'





A minha resposta ao comentário:


Querida Emília

Devia ter anunciado a "Quinzena do Amor", como faço todos os anos. Não pude fazê-lo a tempo e horas, deixando para a rematar, no final, com algumas palavras.
E foi muito prazeroso para mim que te tenhas lembrado deste ciclo que nos tem acompanhado no "Xaile de Seda", desde o princípio.
A situação que estamos a atravessar é terrível, mas há sempre espaço, mais do que nunca, para o Amor. E para a Amizade, esse sentimento belíssimo que nos faz irmanar na vida e encontrar pessoas belíssimas,
como tu, querida Amiga.
E se não te importasses gostaria de passar algumas passagens deste teu comentário para o post. Ou na íntegra :)
Desejo-te muita Saúde ao lado dos teus.
Beijinhos
Olinda





Blogue da Emília: Começar de Novo sob a égide de "COMEÇAR DE NOVO", da autoria de Ivan Lins e Vitor Martins, canção interpretada por Simone.

Veja Drummond de Andrade, aqui, no Xaile de Seda.

E continua a Quinzena do Amor...
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Poema:Citador

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Ama-me

Espero-te antes de haver vida
És tu quem faz nascer os  dias
Mia Couto



Aos amantes é lícito a voz desvanecida.
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo
Ronda escurecida?

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor
Quando tudo anoitece? Antes lamenta
Essa teia de seda que a garganta tece.

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.

Hilda Hilst


Hilda de Almeida Prado Hilst, mais conhecida como Hilda Hilst, (Jaú, 21 de abril de 1930 — Campinas, 4 de fevereiro de 2004) foi uma poeta, ficcionista, cronista e dramaturga brasileira. É considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX. Seu trabalho aborda temas como misticismo, insanidade, erotismo e libertação sexual feminina. Hilst foi fortemente influenciada por James Joyce e Samuel Beckett, e essa influência aparece em temas e técnicas recorrentes em seus trabalhos como o fluxo de consciência e realidade fraturada.








Veja Hilda Hilst, aqui, no Xaile de Seda.


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in 'Preludios-Intensos para os Desmemoriados do Amor'
Poema - Citador

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Quando eu não te tinha




Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima…
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor—
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.



Alberto Caeiro da Silva foi um heterónimo criado por Fernando Pessoa, sendo considerado o Mestre Ingénuo dos heterónimos Álvaro de Campos e Ricardo Reis e também de seu próprio autor, Fernando Pessoa, apesar de apenas ter feito apenas a instrução primária....
É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade. Suas principais obras são O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos.




Veja Alberto Caeiro, aqui, no Xaile de Seda.

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6-7-1914

“O Pastor Amoroso”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

  - 89. aqui

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

VOAR

Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.

Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.




Eduardo Costley-White (1963 - 2014) foi um poeta moçambicano.
Autor de vários livros de poesia como: Amar sobre o Índico (1984), Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave (Caminho, 1992), Janela para Oriente (Caminho, 1999) ou O Manual das Mãos (Campo das Letras, 2004).
Além de poesia, publicou também novelas, como As Falas do Escorpião (2002), e outros textos em prosa. Mais aqui




Eduardo White, aqui, no Xaile de Seda

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Poema - daqui

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A Demora

O amor nos condena: 

demoras 
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.
 

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.
 

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.
 

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.
 

Envelhecida a palavra, 
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.
 

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

in " idades cidades divindades" 



Mia Couto, pseudónimo de António Emílio Leite Couto (n. 1955), é um escritor e biólogo moçambicano, conhecido de todos e figura assídua neste 
"Xaile de Seda".
Veja aqui alguns dos posts a ele dedicados.





Ary dos Santos/Fernando Tordo


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Poema: Citador