sábado, 27 de abril de 2013

A volta da Primavera


Foi-se a quadra fria!
Os bons dias tornam!
Olha como adornam
Graças aos rosais!

Olha o mar, que espelho!
Como nadam mansos,
Mergulhando, os gansos
Pelos seus cristais!

Como os grous viajam!
Que áureo sol tão limpo!
Claro o azul do Olimpo
Nuvens já não tem!

Em teus chãos lavrados,
Lavrador, exulta!
A semente oculta
Já viçando vem!

O olival rebenta,
Pompa verde e prata!
Pâmpanos desata
Báquico vinhal!

Dentre as folhas novas
Ri na flor a fruta!
Vê! repara! escuta!
Festa universal!

          (1800-1875)

****

Poeta, pedagogo e tradutor de mérito, Castilho pertence à geração de Almeida Garrett e Alexandre Herculano.
Venerado como uma grande figura, a quem os jovens escritores solicitavam o prefácio-recomendação, Castilho foi subitamente abalado, em 1865, pelo opúsculo de Antero, Bom Senso e Bom Gosto, que iniciou a «questão coimbrã». Discípulo que fora de Castilho na escola primária de São Miguel, mas ferido pela incompreensão dele pelas suas primícias poéticas, Antero foi desabrido e duro com o velho escritor. Longe das grandes inovações europeias do pensamento e da Arte, literato de literatura amena, avessa a altos voos de inteligência e inquietude espiritual, Castilho foi brutalmente apeado do seu pedestal. Os últimos anos passa-os entre o carinho dos filhos, depois da morte da esposa, em 1871, e os amigos que regularmente visitam. Mas o seu nome apagava-se na cena literária, dominada agora pela brilhante geração de Coimbra. (excerto de biografia in: Banco de Poesia Casa Fernando Pessoa)

*****

NOTA EM 5/5/2013

Meus amigos:

Três vezes tentei publicar um comentário e três vezes me falhou. Assim, estou a escrevê-lo aqui já não com as mesmas palavras, que se perderam, mas com outras que, espero, quererão dizer a mesma coisa.

Pois, constato que a Primavera finalmente voltou, com Sol brilhante ainda que com algumas nuvens, mas o ventinho algo gelado e atrevido já não se faz sentir. 

Com ela regresso eu para agradecer a vossa presença, lendo, apreciando, comentando este poema, esta Festa universal de Castilho. Uma evasão luminosa, sabendo nós que ele só a poderia ver com os olhos da alma e da sua sensibilidade. Uma opção intrigante contrária às doutrinas da escola romântica a que pertencia.

Desejo-vos um bom domingo.

Abraços.

Olinda




sexta-feira, 19 de abril de 2013

Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

Antero de Quental (1842-1891) divide a sua obra Odes Modernas em Livro I e Livro II e estes em temas, os quais preenche com poemas longos e inflamados, numa 'missão revolucionária pela poesia', tendo um papel activo na chamada Geração de 70. Nesta missão também estão Guilherme Braga, Guilherme de Azevedo, Guerra Junqueiro, Gomes Leal e muitos outros. Nuno Júdice faz o prefácio da edição que tenho à minha frente e refere que 'Antero adopta a construção alegórica, na qual as figuras se adequam a um quadro narrativo pré-determinado: a história da luta dos tempos - passado, presente e futuro - cada um dos quais move um determinado número de actores'.  Neste Século XIX, em que estes intelectuais procuram destronar o artificialismo instalado na literatura e que levaria à famosa Questão Coimbrã, é também tempo de severas críticas às instituições civis e religiosas, como poderemos aquilatar pelas não menos famosas Conferências do Casino. Estas conferências seriam o passo seguinte à formação do Cenáculo, em 1868, com Eça de Queirós, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão, inicialmente grupo boémio mas que depois se polariza na figura de Antero, numa fase de reformismo social. Para já fico por aqui, e retiro das Odes Modernas, não 'Tese e Antítese' cujo verso congregador do último terceto do soneto I 'Tu, pensamento, não és fogo, és luz' tanta gente tem inspirado, mas parte de um poema dirigido 'a uns políticos' e que se insere no tema Vida (páginas 70/71):

V - Vida
(A uns políticos)

Por que é que combateis? Dir-se-á ao ver-vos,
Que o Universo acaba aonde chegam
Os muros da cidade, e nem há vida
Além da órbita onde as vossas giram,
E além do Forum já não há mais mundo!

Tal é o vosso ardor! tão cegos tendes
Os olhos de mirar a própria sombra,
Que dir-se-á, vendo a força, as energias
Da vossa vida toda, acumuladas
Sobre um só ponto, e a ânsia, o ardente vórtice,
Com que girais em torno de vós mesmos,
Que limitais a terra à vossa sombra...
Ou que a sombra vos toma a terra toda!
Dir-se-á que o oceano imenso e fundo e eterno,
Que Deus há dado aos homens, por que banhem
O corpo todo, e nadem à vontade,
E voguem a sabor, com todo o rumo,
Com todo o norte e vento, vão e percam-se
De vista, no horizonte sem limites...
Dir-se-á que o mar da vida é gota d'água
Escassa, que nas mãos vos há caído,
De avara nuvem que fugiu, largando-a...
Tamanho é o ódio com que a uns e a outros
A disputais, temendo que não chegue!

Homens! para quem passa, arrebatado
Na corrente da vida, nessas águas
Sem limites, sem fundo - há mais perigo
De se afogar, que de morrer à sede!

(...)

 


Gosto da sua fase romântica presente em Primaveras Românticas, com poemas de amor e fantasia que ele compõe ainda menino e moço, na casa dos vinte aninhos,(1860-1865), publicados primeiramente em periódicos dispersos sendo depois compilados na referida obra. Voltarei com alguns sonetos.

Poema in: Odes Modernas
A Geração de 70 - Uma revolução cultural e literária - download aqui

terça-feira, 16 de abril de 2013

Até que a voz me doa

Cantarei até que a voz me doa
Para cantar, cantar sempre o meu fado
Como a ave que tão alto voa
E é livre de cantar em qualquer lado

Cantarei até que a voz me doa
Ao meu país, à minha terra, à minha gente
À saudade, à tristeza que magoa
Ao amor de quem ama e morre ausente

Cantarei até que a voz me doa
O amor e a paz cheia de esperança
Ao sorriso, à alegria da criança
Cantarei até que a voz me doa.



Maria do Céu


Um exercício que nos mostra que a voz é o instrumento mais perfeito que existe. Com ela, sem mais nenhum equipamento, dá-se um concerto, discursa-se, fala-se, ri-se, chora-se... os nossos sentimentos podem ser manifestados em todos os tons e sons, chegando a atingir níveis impensáveis.


Kenza Farah feat Soprano 


Qualquer que seja o seu alcance, por via natural ou por treino, a Voz é um dom. Para além dos cuidados que devemos ter com ela, em relação a tudo o que a possa deteriorar, há um aspecto muito importante que não deve ser descurado. A voz tem de ser usada, utilizada amiúde, todos os dias.


Ildo Lobo


Conheço pessoas, muito chegadas, que se desabituaram de falar porque vivem sozinhas ou porque já chegaram à conclusão de que não vale a pena falar. Mas aí é que está. Se não tivermos com quem falar, leia-se em voz alta, textos, poesia, cante-se no duche ou a fazer uma qualquer tarefa ou então só pelo prazer de cantar... Dançar e cantar, uma receita infalível para a boa disposição. 


Fernanda Montenegro 



Cabe-nos a nós zelar pela saúde da nossa voz. E que ela seja o nosso meio de comunicação preferencial, nos diversos contactos do quotidiano.

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Uma curiosidade:

A minha filha quando tinha três anos, veio com esta pergunta: Mãe o que é isto? e deu um gritinho. Eu respondi: É a voz. -Avós? admirou-se ela. - Voz, Voz. E lá exemplifiquei também, emitindo uns sons, explicando-lhe então a sua função. E ela fez: Aaaah...maravilhada. E durante uns dias andou pela casa a trinar, a cantar e a contar histórias, pelos cotovelos... 


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Videos e letra fado - Internet

domingo, 14 de abril de 2013

'Sabias que uma baleia pode se afogar se estiver debaixo de água mais de 30 minutos?'

A criança que existe em mim parou para ler estas palavras num painel, num centro comercial. Nele também uma grande baleia pintada com pequenotes em volta, num mar azul. Nem vou confirmar esta informação/pergunta, vou confiar que é mesmo assim, porque a minha ideia aqui é ajuizar da fragilidade das baleias, minhas irmãs. Eu consigo permanecer debaixo de água uns míseros segundos e elas, tão possantes, trinta minutos ou pouco mais. Pelas minhas  contas elas estarão em desvantagem. E digo porquê: Em condições normais, só lá vou quando quero, ao passo que elas têm de lá viver, é o seu habitat natural, é o seu meio ambiente. Também posso ajuizar da sua aflição quando são encurraladas e caçadas, não tendo para onde fugir. Lembro-me da sua força imensa nos mares da minha infância, dos jactos de água atirados contra os céus e a delícia que era para mim e para os meus irmãos presenciar toda aquela explosão de vida. 
Neste mês de todas as leituras e perante a pergunta acima apontada, lembrei-me de trazer um conto de António Sérgio, 'A história da baleia'. Pode ser que alguma criancinha passe por aqui...




'A história da baleia

Há muito, muito, muito tempo, vivia no mar a baleia, que comia peixes. Ainda ela, nesse tempo, podia comer peixes. Comia sardinhas e tainhas, gorazes e roazes, bugios e safios, pescadas e douradas, bacalhaus e carapaus. Todos os peixes que ia encontrando deitava-lhes a boca, - ão! Por fim, só havia no mar um salmonete vermelhete, que nadava sempre atrás da orelha esquerda da baleia, para ela lhe não fazer mal. Um dia, a baleia pôs-se a pensar muito séria, e disse assim :
- Tenho fome !
E o salmonete vermelhete, com a sua voz muito agudita, disse à baleia :
- Nobre e generoso cetáceo : já experimentou comer homens?
- Não - respondeu a baleia. - A que sabe? como é?
- Bom, mas traquinas - respondeu o salmonete vermelhete.
- Então, vai-me buscar três dúzias deles - ordenou a baleia.
- Basta um de cada vez - disse o salmonete vermelhete. - Se for à latitude 60 graus norte e longitude 40 graus oeste (isto, amigos, são umas palavras mágicas que o salmonete lá sabia) encontrará uma jangada feita de tábuas, e sobre a jangada um marinheiro náufrago de calças de ganga azul, uma faca de ponta aguda, e suspensórios encarnados (não se esqueçam dos suspensórios!). O marinheiro, devo dizer-lhe, é arguto, astuto, e resoluto.
A baleia, então, foi aonde lhe disse o salmonete vermelhete, e encontrou a jangada e o marinheiro. Aproximou-se, abriu a bocarra imensa, e engoliu a jangada e o marinheiro, com as calças de ganga azul, com a faca de ponta aguda e com os suspensórios encarnados (nunca se esqueçam dos suspensórios!). E assim a baleia arrecadou tudo na despensa escura, quentinha e fofazinha, que tinha lá dentro do seu corpanzão. E como gostou, deu três estalos com a língua e três voltas sobre a cauda, levantando muita espuma.



O marinheiro (que era arguto, astuto, e resoluto) mal se viu dentro da baleia. na despensa escura, quentinha e fofazinha, pulou, saltou, rebolou, cambaleou, espinoteou, dançou, sapateou, fandangueou, esperneou, gritou, berrou, cantou, estrondeou tanto, tanto, tanto, que a baleia se sentiu com enjoos, engulhos e soluços (já se esqueceram dos suspensórios?). E disse a baleia ao salmonete vermelhete :
- O teu homem é muito traquinas, e dá-me engulhos. Que hei-de eu fazer?
- Diga-lhe que saia cá para fora - respondeu o salmonete vermelhete.
E a baleia gritou pela garganta abaixo:
- Saia cá para fora, homenzinho, e veja se tem juízo!
- Isso é que eu não saio- respondeu o homem. - Leve-me primeiro para a minha terra, e depois veremos o que se poderá fazer.
E pôs-se outra vez a saltar, a pular, a espinotear e a rebolar.
- O melhor é levá-lo para casa- aconselhou o salmonete vermelhete. - Eu já tinha prevenido a senhora baleia de que o marinheiro era arguto, astuto e resoluto.
E a baleia nadou, nadou, nadou, dando à cauda e às barbatanas, mas sempre com soluços e muito enjoada. Quando avistou a terra do marinheiro, nadou para a praia, pôs a boca sobre a areia, abriu-a muito, e disse:
- Cá chegámos à sua terra!




O marinheiro, que era na verdade arguto, astuto e resoluto, tinha durante a viagem puxado da sua faca de ponta aguda, e cortado as tábuas da jangada em fasquiazinhas muito estreitas, que ligou muito bem com tiras dos suspensórios (bem lhes dizia eu que não se esquecessem dos suspensórios!) e fez com elas uma grade que empurrou, ao sair, contra a garganta da baleia. E, deixando a grade bem presa na garganta da baleia, saltou para terra e foi ter com a mãe, com a qual viveu muito contente.
A baleia foi-se embora também muito contente, assim como o salmonete vermelhete; mas a grade é que nunca mais saiu da garganta da baleia. E por isso é que a baleia nunca mais pôde comer homens, nem meninos, nem peixes - nem sardinhas nem tainhas, nem gorazes nem roazes, nem bugios nem safios, nem pescadas nem douradas -, porque os peixes não podem passar pelas grades da garganta, mas só bichinhos pequeninos, como, por exemplo, as pulgas-do-mar.
Pouco depois, o marinheiro casou e viveu muito feliz; tinha em casa as calças de ganga azul e a navalha de ponta aguda; mas não tinha os suspensórios, porque esses ficaram a atar a grade, muito apertada que só deixa passar bichinhos pequeninos - como as pulguinhas-do-mar - na garganta da baleia.'





Texto retirado de:Aqui
Imagens internet

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Torquato da Luz - Ofício Diário

Hoje homenageio aqui o poeta e jornalista Torquato da Luz, transcrevendo três dos seus poemas.  Através do seu blog Ofício Diário oferecia-nos o seu talento. Pelos livros publicados continuará entre nós, para sempre.  Situa-se entre aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando*.



A minha fotografia


Embaraço

Olhas-me entre a surpresa e o desencanto
e eu fico embaraçado ante esse olhar.
Nada podia perturbar-me tanto
como uns olhos roubados ao luar
das noites em que o tempo e o lugar
se faziam de espuma, luz e espanto.
Mas o que importa, sobre a ruinosa
erosão dos desenganos,
é esta força de quem ousa
amar-te acima do passar dos anos.



Sempre tu

Mil vezes te achei e outras mil te perdi
para te achar de novo.
De cada vez que nos deixamos
recomeça a busca
por quem tome o teu lugar.
No entanto és sempre tu que voltas
e me embebedas dessa quietude
como não há mais.



Contra a rotina

Nada pior que o rotineiro
correr dos dias iguais,
em que parece
que um íntimo nevoeiro
nos domina até não mais
e entorpece.

O melhor, ao acordar,
é não saber de agenda nem programa
e ficar na cama,
que é afinal o lugar
mais indicado a quem ama.

Depois, pela tarde fora,
visto que a manhã já era
e nem deu pela demora,
importa tão-só a espera
do que a noite há-de trazer,
quando vier.

E quem disser o contrário
chegou fora do horário.


Torquato da Luz - Ofício Diário 

Ver 'Fogueira' aqui
*Citação:De 'Os Lusíadas'- Luiz Vaz de Camões

domingo, 7 de abril de 2013

A Hora da Estrela

'Amo esta língua', dizia. 'Não é uma língua fácil. É um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve querendo roubar às coisas e pessoas a sua primeira camada superficial. É uma língua que por vezes reage contra um pensamento mais complexo. Por vezes o imprevisto de uma frase causa-lhe medo. Mas eu gosto de manejá-la - tal como outrora gostava de montar um cavalo para o levar pelas rédeas, umas vezes lentamente, outras a galope'.

Extraí estas palavras da contracapa de Laços de Família, de Clarice Lispector, palavras que lhe são atribuídas. Este livro, que hoje vos trago, é prefaciado por Lídia Jorge, que nele traça o percurso literário e as características desta figura maior da literatura de língua portuguesa. A dado passo e referindo-se a este livro ela escreve:

'Laços de Família, obra com que na prática se inicia a publicação da Clarice Lispector entre nós, é um conjunto de treze contos surgidos no Brasil em 1960, e contêm alguns dos traços que esse género costuma ter. Tem personagens, tem aventura, acidentes e desfechos. Só que neles, tanto quanto nos romances, os personagens começando por ser comuns, logo se revelam incomuns, avançando como se não tivessem olhos para ver, e quando quisessem ouvir não tivessem ouvidos. Ou inversamente, se têm ouvidos não têm sons, e se têm olhos não há paisagem que se veja. Quando acontece a coincidência, e é por escassos instantes, a visão produz-se, dá-se a fulminação e a matéria ficcional sucede.'

Lídia Jorge evoca Sartre e La Nausée quando fala de Laços de Família, referindo-se sobretudo ao conto Amor de 'leitura obrigatória para quem se inicie na compreensão do processo epifânico de Clarice'. Mas é do conto Uma  Galinha que transcrevo as seguintes passagens, da página 28:

'Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista.'
'Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência.'
'Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desenvencilhar-se do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos: 
- Mamãe, mamãe, não mate a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!'

Pois bem, 'A Hora da Estrela' é o nome da Exposição dedicada a Clarice Lispector na Fundação Calouste Gulbenkian, e que decorre de 5/Abril a 23/ Junho de 2013, no âmbito das comemorações do Ano do Brasil em Portugal. Vem anunciada assim:


Como não podia deixar de ser, estarei entre os visitantes um dia destes!

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Está a fazer-se cada vez mais tarde

Disse para comigo: Eu devo-lhe isto. E isto era precisamente pegar no livro e começar a lê-lo, mesmo que o não começasse do princípio... E sorrio perante esta minha lembrança. O meu pai começava a ler pelo fim. Indagado sobre o motivo, ele dizia rindo: 'Eu cá me entendo'. Abro-o na página 40:

Sentávamo-nos a uma mesinha do café, lá fora, estava-se no Inverno, ela cantava Un bel dì vedremo levarsi un fil di fumo, e saíam-lhe da boca nuvenzinhas de hálito condensado. Eu dizia que eram os ideogramas musicais de Puccini. Chamava-se Atsuko, e o nosso amigo escrevia haiku e poemetos que nos lia quando lhe apetecia. Recordo-me de um que dizia assim:

                                       A folha cai
                                       no vento de Outubro
                                       ondeando ligeira.
                                       Pesado é o tempo de um Verão
                                       passado longe.

Sentados nesse café sonhávamos com mundos possíveis bebendo sumos de toranja. De manhã, nas aulas da Sorbonne, um velho professor de filosofia, cujo nome ignorávamos na nossa abissal ignorância, discorria com lógica acrobática sobre Remords et Nostalgie. Não sabíamos o que isso era, mas aquilo fascinava-nos como mundos longínquos que se imaginam para lá do oceano da vida, numa costa remota que nunca alcançaríamos. 

Paro um pouco e fecho o livro. A seguir folheio-o e os meus olhos pousam na página 108, neste parágrafo que passa para a página 109:

Meu amor, perdoa-me se continuo a tratar-te como então te tratava, passados estes anos todos, mas não sei realmente como te hei-de tratar. Como há-de uma pessoa dirigir-se à mulher amada que nos disse ciao até amanhã e que abandonámos sem deixar sequer umas linhas de explicação? Porque o amor de toda a minha vida foste tu, e também a mulher da minha vida, porque as poucas mulheres que tive foram encontros furtivos para satisfação da carne, ao passo que todas as noites, enquanto tentava adormecer, abraçando o ar a meu lado na minha cama solitária, dizia-te meu amor, e o facto de pensar que te tinha nos meus braços sempre me pareceu um grande privilégio. Lembro-me da primeira noite de fuga, em Nápoles, numa pequena pensão que foi o meu primeiro abrigo, eu cantava baixinho no escuro Voce 'e notte, como se cantando no escuro aquela canção a minha voz pudesse alcançar-te para te desejar que encontrasses um marido honesto, um homem que gostasse de ti e que à noite te pudesse abraçar e que no seu abraço tu pudesses esquecer o mal que eu te fizera, e que fosse uma pessoa boa, e sem culpa, um inocente, e não fosse vítima de ninguém, porque entretanto, ao sentir-me vítima, eu deixava de ser inocente, e tornara-me contigo no último dos culpados, e no mais vil.

Neste passo já estou conquistada. De forma mais organizada inicio a leitura e vejo que são cartas. Eu gosto de cartas e estas prometem levar-nos numa viagem aliciante. O ofertante passa por mim, despenteia-me num gesto traquino, balança-me a cadeira e ri alto, dizendo: 'Hahaha, até que enfim. Estava a ver que nunca mais o lias!'   


Nota: Está a fazer-se cada vez mais tarde - António Tabucchi

Ver excelente análise crítica em: 'Há sempre um livro...à nossa espera'


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Escrever para a criança ou com a criança?

Escrever representa uma das formas de desafio à morte: e ler, também, é permanecer. Qualquer forma de escrita, qualquer forma de leitura.
E o que é escrever para a criança? Será escrever para a criança escrever para um outro mundo que já não é nosso?
É a criança que lê connosco? Abrir as páginas da vida contra a morte ajudados pelas mãos da criança, será, talvez, dos actos mais simples e mais difíceis que um escritor pode fazer.
A criança talvez não precise muito mais de nós do que nós precisamos dela.
Contar histórias, dizer, contar poemas foi acção cultural em que naturalmente, adultos e crianças se iam empenhando naquela fome do real e do maravilhoso que sempre construiu o homem pelo tempo fora. Durante muitos séculos, ler com a criança foi a presença de uma voz com um rosto que contava histórias, que dizia poemas, que ensinava lenga-lengas e, antes de tudo isto, a voz-rosto que derrama ritmos de adormecer - ritmos com palavras que diziam respeito não só à mãe desperta como ao menino que adormecia.
Hoje que a criança é mais conhecida, mas apesar de tal 'reconhecimento', a barreira entre a criança e o adulto não deixa de existir. Esquecemos que, apesar de tudo, a criança está connosco. E de nós ausente.
Fryda Schultz de Mantovani diz no seu livro El mundo poetico infantil: 'Algumas vezes temos contemplado em sonhos a nossa própria infância. Vêmo-la como uma criança que nos volta as costas e se afasta lentamente de nós. Com um gozo de triste exasperação e ternura - acariciamos com o olhar esse andar e nele nos reconhecemos meninos; esse passo cego que julgávamos tão lúcido para percorrer a terra e tocar as coisas  que nos cercam. Mais tarde compreendemos que éramos nós que não devíamos aproximar-nos das coisas, talvez para nunca as alcançar na sua essência, porque a razão nos oferece formas vazias dessa dimensão extra-natural, fantástica, que a imaginação do primitivo ou da criança toca tão facilmente. Isto é, sonhámos com o nosso próprio tempo da nossa vida que é, quando o pensamos, como o revés do presente.'
Daí que seja tão difícil o escrever para a criança não a traindo a ela e a nós. Nós trazemos connosco a criança que fomos ou aquela que, muito carregados de outros mundos, ainda somos: e trazemos a criança ideal que queremos projectar e que tão raras vezes é verdadeira.
É uma espécie de escrita triangular a que muitos dão o sinal simplista de horizontalidade. Daí haver tanto livro para a infância que julga a criança um ser menor. De limitadas compreensões. De limitados problemas. Até de limitadas roturas com as normas vocabulares. Andersen, Grimm, Perrault não contaram pequenas histórias de anedóticas vidas ou de existências piegas, ou ainda pequenas histórias de chaves moralizantes para abrir portas de bom comportamento, embora Perrault tivesse cedido a fechar as suas histórias com tão judiciosos como irónicos conselhos morais. Fizeram muito mais do que isso: souberam que escreveram para, e com, um povo poderoso e fraco, e ainda mal conhecido, que se chama infância.

***
Excerto da página 17 da obra de Matilde Rosa Araújo, 'A Estrada Fascinante', que ela define como uma reflexão que lhe trouxe o entrecruzado dialéctico mundo infância/adulto, encontro na aventura apaixonante que é estar com a Criança: a nossa memória acorda e sabemos que a escrita para adultos não está longe do que fomos, do que amámos ou repelimos enquanto crianças. E tudo quanto quisemos exigir no futuro.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Narcisos. Tenho muitos no meu jardim nesta altura do ano...

Com estas simples palavras, um mundo de poesia, com as quais Maria Emília Moreira nos mostra que no seu mundo cabem várias manifestações de arte: Poesia, Pintura e muitas outras.

Tela de Maria Emília Moreira.

E é com elas e com a sua tela de narcisos que aproveito para desvendar o mistério da tal quinzena, que nunca mais acabava. Lembram-se de, no ano passado, vos ter pedido para me trazerem palavras vossas ou de outrém para festejar o primeiro aniversário do Xaile de Seda? Pois, este ano, no seu segundo aniversário, resolvi fazer o contrário, indo eu própria aos vossos redutos buscar as vossas pérolas. Através delas vieram outros amigos que prestigiaram este recanto com os seus comentários.

Este ano resolvi também dar um nome a estas comemorações megalómanas :), Quinzena de Afectos/Xaile de Afectos. Uma matemática do coração. Se a quinzena é de quinze dias por aqui ela mostrou-se rebelde ao tempo que passa, marcada apenas pelo compasso do nosso comprazimento em ler e tomar contacto com várias formas de modular a Palavra.

Porque o mês de Abril é o mês de todas as leituras, inicio-o com este poema de Fernando Pessoa, que já há algum tempo anda arredado deste Xaile, mea culpa. O poema que aqui transcrevo começa com este verso 'Ó sino da minha aldeia' e segundo Robert Bréchon*, 'Este sino que toca eternamente num dos primeiros poemas do Cancioneiro, escrito em 1913, simboliza a 'saudade' forma de nostalgia tipicamente portuguesa. É o da Igreja dos Mártires, bem perto da casa onde nasceu Pessoa':

                                      
     Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto

                                       Fernando Pessoa, in Poesias, Ed.Ática

Queria inserir um video da Maria Bethânia, onde declama uma versão musicada do poema, mas não consegui. Assim, clique Aqui, p.f. 

Boas Leituras!

*Roberto Bréchon, in Estranho Estrangeiro, uma biografia de Fernando Pessoa.