terça-feira, 29 de agosto de 2023

Incerto ao som de Piazzolla

No espaço da minha boca
trago palavras entre os dentes
que a língua vai expulsar
num poema.*




O sempre breve encontro das minhas mãos
com todos os teus dedos límpidos
nunca estrangulados por anéis__nem os de herança
O sempre breve encontro das nossas mãos
antes da tua partida para o momento mágico
em que dedilhaste Piazzolla no pequeno palco escuro
e a tua voz
só o teu rosto sobre o bandoneón
a Balada para un loco com todo o negrume em volta__
__e eu a consumir cigarros sozinho numa mesa
como um louco sem saber se voltarias
se encostarias a tua perna à minha
se eu te faria um convite em voz baixa.

Acorde sobre acorde
cigarro atrás de cigarro
copo a seguir a outro copo
até cair o pano sobre a minha dúvida
As ruas de Buenos Aires abafaram os meus passos.


Luís Raimundo Rodrigues
In: No Espaço da Minha Boca
pg 47


Escolher um dos poemas para esta publicação não foi processo fácil. Fixei-me neste porque me deu a oportunidade de revisitar Astor Piazzolla, com a sua reinvenção do tango (no ritmo, no timbre e na harmonia) e o bandoneón que eie toca com maestria e o convite que se sente quase suspenso no ar... 

No Espaço da Minha Boca livro de poesia de Luis R. Rodrigues, publicado neste ano, uma forma de escrever intimista que nos leva a questionar a vida e os seus vários momentos. Qualquer dos poemas resgata-nos a memória, tanto do passado como do presente.



Las cuatro estaciones porteñas

Balada para un loco, referido pelo poeta, faria mais sentido aqui, não é verdade? A sua toada compõe a magia envolvente criada pelo poema. Mas quis trazer um pouco mais de Piazzolla como intérprete. 

E não resisto. 
Deixo aqui este fragmento, que se encontra na contracapa, do poema "Importante é a poesia", na pg 52:
 

Talvez haja poesia
na contagem dos dias
no inconformismo surdo da prisão
na coragem de sobreviver__
__desde que não sejam
muito profundos os golpes
e uma mão de vento vá construindo
novas formas nas nuvens.

Sim, talvez haja poesia em todos os momentos da nossa existência. Saber encontrá-la é uma arte.

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Blog do autor:

Veja a biografia do Autor


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Muito obrigada, caro Luís Rodrigues.

Um abraço

Olinda



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Imagem:

Erythrina ou Ceibo Flores, Argentina


* Pg 12

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Ponciá Vicêncio


Ponciá Vicêncio deitou-se na cama imunda ao lado do homem e de barriga para cima ficou com o olhar encontrando o nada. Veio-lhe a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem para serem sacrificados um dia. Seria isto vida, meu Deus? Os dias passavam, estava cansada, fraca para viver, mas coragem para morrer, também não tinha ainda. O homem gostava de dizer que ela era pancada da idéia. Seria? Seria! Às vezes, se sentia, mesmo, como se a sua cabeça fosse um grande vazio, repleto de nada e de nada.

Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo o dia. Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova. E avançando sobre o futuro, Ponciá partiu no trem do outro dia, pois tão cedo a máquina não voltaria ao povoado. Nem tempo de se despedir do irmão teve. E agora, ali deitada de olhos arregalados, penetrados no nada, perguntava-se se valera a pena ter deixado a sua terra. O que acontecera com os sonhos tão certos de uma vida melhor? Não eram somente sonhos, eram certezas! Certezas que haviam sido esvaziadas no momento em que perdera o contato com os seus. E agora feito morta-viva, vivia.

(Ponciá Vicêncio, p. 32-33)

Ponciá Vicêncio é uma mulher negra que migra do interior à cidade grande. Motivada por uma melhora na qualidade de vida, é desgastada pelos preconceitos e perda de sua identidade cultural, enquanto luta contra tudo isso. A obra é da mineira Conceição Evaristo, expoente da literatura afro-brasileira contemporânea. 




Maria da Conceição Evaristo de Brito (Belo Horizonte, 29 de novembro de 1946) é uma linguista e escritora afro-brasileira. Agora aposentada, teve uma prolífica carreira como pesquisadora-docente universitária.

É uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil, escrevendo nos gêneros da poesia, romance, conto e ensaio. Como pesquisadora-docente, seus trabalhos focavam na literatura comparada. aqui


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Bom fim de semana, amigos.
Abraços
Olinda




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Fragmento:daqui
Imagem: Praça da Liberdade - Belo Horizonte
VEJA:

sábado, 19 de agosto de 2023

"XIV Interação Fraterna - Meu Lado Espiritual Pós Pandemia"



Proposta de Rosélia Bezerra em Comemoração do seu blog 

ESPIRITUAL-IDADE 

que perfaz agora 14 anos.


   Tema que faz sentido. Importante parar e fazer uma viagem introspectiva, recordar um pouco do que se passou durante a Pandemia e ter consciência do que se passa dentro de nós. Todos os momentos aflitivos que nos envolveram, a crença de que a nossa espécie estaria em vias de extinção, apesar de outras pandemias já terem acontecido, tudo nos fez sentir-nos pequeninos e sem capacidade de ultrapassar a situação. Contudo, no meio desse terror vimos pessoas a ajudar, sacrificando-se a si e à privação da família o que nos trouxe a certeza de que no ser humano existe esse belo sentimento que é a solidariedade. Muitos foram atacados pela doença, muitos perderam entes queridos.

   Tivemos logo a seguir e eclosão da guerra na Ucrânia que muita dor trouxe aos naturais e continua a massacrá-los. Nessa altura tivemos a oportunidade de constatar que o apoio às pessoas que fugiam também se fez sentir. Dias terríveis de êxodo de milhares, com crianças e pessoas idosas arrancadas do seu torrão natal. Mas também continuam a lavrar conflitos em outros lugares seja da Africa, da Ásia situação que já tive ocasião de assinalar.

   Todos os dias sentimos essa espiritualidade que nos envolve nas situações difíceis. É certo que no quotidiano notamos egoísmos e falta de atenção para com aqueles que têm menor sorte na vida. Por vezes temos a sensação de que não evoluímos como deveríamos...

   Insiro abaixo um poema de Gastão Cruz, intitulado "O teatro das cidades", mas diria que também envolve os campos e todo o espaço que ocupemos neste nosso planeta:

Qualquer tempo é um tempo duvidoso
assim o meu cercado de cidades
plataformas instáveis
praticáveis cobertos de infinita gente náufraga
que se inclina nas águas como um palco

Paro na convergência dos estrados
chove já sobre a raça ameaçada
Incertas multidões em volta passam
contemporâneas falam interpretam
a duvidosa língua das imagens

Assim no teatro abstracto das cidades
morrem palavras sobre um palco náufrago
O tempo cobre o céu que se enche de água






Parabéns querida Rosélia. 
Continue na senda de bem-fazer, oferecendo-nos palavras boas, excelentes reflexões para nos tirar desse marasmo que nos ataca com frequência. 



Abraços a todos.

Olinda









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Poema: daqui
imagens: pixabay