quarta-feira, 29 de abril de 2020

Ele anda aí...ainda

O Vírus. O novo Corona-Vírus. Sars Covid-2. Ou a Covid-19. Porquê no feminino? Talvez seja a doença em si.  Ou o Covid, numa versão mais intimista, familiar-quase, um tu cá tu lá, com anedotas à mistura. Será esta a sequência? Coisa para cientistas, eles que sabem distinguir e destrinçar a evolução do Vírus do nosso descontentamento.

Mas não só descontentamento. Também do nosso medo. Porque num caso como este é saudável termos medo. Ter medo e não deixar que nos domine e procurarmos pensar com lucidez. Ter medo e precaver-nos. Ter medo e convencermo-nos de que teremos de viver e conviver com ele durante muito tempo, talvez.

Daí que aborde aqui o estado de emergência, emergência que é imposto por decreto, com todas as limitações de movimento aos cidadãos, porque assim o quisémos. Isto é, elegemos pessoas para tomarem decisões por nós quando necessário, para a nossa vida em sociedade. Um hiato consentido na nossa liberdade. 

E o estado de calamidade? É outra espécie de limitação, para catástrofes, desgraças, enfim sabemos o que é, competência do Governo. Mas há diferenças em relação ao estado de emergência. 

Queiram tomar nota:

Da emergência à calamidade: O que vai mudar?", um artigo do DN, mais abaixo. 





O certo é que vamos ter de recomeçar, devagarinho, porque a Economia o requer e, também a nossa Saúde em geral, bem como a Cultura e a Educação, mas ficará na consciência de cada um a circulação com equipamento de protecção. Haverá, sim, aconselhamento sobre isto e aquilo, recomendações sobre a higienização, alertas para não se formarem grupos. Mas não obrigatoriedade, segundo deduzo.

Ora, o que sucede já neste momento, ainda com o estado de emergência em vigor? Muito simples. Em jeito blasé, vêem-se pessoas em pequenos grupos a circular e a conversar, grupinhos à porta de onde se vende café, pão ou take away e supermercados, também a passearem com crianças pela mão, automóveis cheios não se sabe se com pessoas da mesma casa ou não. Tudo isto seria normal se tivéssemos vencido a doença. Mas não é o caso. 

Há que recomeçar a vida que ficou suspensa, é verdade. Mas onde estão as máscaras? Onde está o cuidado no distanciamento social?  Socialização sim, mas...

Sabemos que o Vírus não desaparece de um dia para o outro como por milagre ou porque vamos passar do estado de emergência para o de calamidade. 

Ele anda aí... ainda.
      Cuidemo-nos, meus amigos.







====

Leia, p.f.:

Da emergência para a calamidade: O que vai mudar? - aqui
===

O que dizer do casamento que juntou 300 pessoas em Pombal? aqui

segunda-feira, 27 de abril de 2020

AH, UM SONETO...





Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu agora
Com almirante em vez de sensação?...


Álvaro de Campos






Interessante este olhar de Álvaro de Campos sobre os heterónimos de Fernando Pessoa, também ele heterónimo, como sabemos. Aliás, na obra que cito abaixo faz-lhes muitas referências, páginas, em especial ao Mestre Caeiro:


Eu (Álvaro de Campos) sou exasperadamente sensível e exasperadamente inteligente. Nisto pareço-me (salvo um bocado mais de sensibilidade, e um bocado menos de inteligência) com o Fernando Pessoa; mas ao passo que no Fernando a sensibilidade e a inteligência interpenetram-se, confundem-se, interseccionam-se, em mim existem paralelamente, ou, melhor, sobrepostamente. Não são cônjuges, são gémeos desavindos. Assim espontaneamente formei a minha filosofia daquela parte da insinuação de Caeiro de que Ricardo Reis não tirou nada (...) contida naquele verso, "E os meus pensamentos são todos sensações"; o Ricardo Reis deriva a sua alma daquele outro verso que Caeiro se esqueceu de escrever "As minhas sensações são todas pensamentos" (...)

In: Obra completa de Álvaro de Campos pg 18


======
Arquivo Pessoa - Obra Édita - aqui

Peinture: Virginia Bénédicto
Ses thématiques de prédilection sont la pomme et l’amour à travers lesquels elle veut tout simplement offrir une vision optimiste de la vie. Un regard frais et pétillant qui vous invite à venir croquer avec gourmandise toutes ses créations originales. aqui

sábado, 25 de abril de 2020

Pequena história - sem Abril

Muitas foram as conquistas que a Revolução de Abril de 1974 proporcionou à Mulher. Aliás, sem direitos quase nenhuns, estava-lhe reservado o papel de dona de casa e pouco mais. Completamente submetida ao marido, carecendo da sua autorização para se movimentar, para trabalhar, para viajar, para tomar posse dos seus bens, em caso disso, para respirar quase... 





Deixo-vos aqui uma pequena história, real, que me foi contada por pessoa amiga. Sem pormenores ou atavios:

Maria era a mais velha de nove irmãos. Em casa, o braço direito da mãe. Por morte do pai ela teve direito a herança de alguma monta. Aos 18 anos casou. Nunca foi herdeira de coisa nenhuma. O marido intitulava-se e intitulou-se toda a vida como herdeiro de Timóteo Henriques,* gerindo e vendendo as terras como lhe aprazia. Toda a vida calada, aos oitenta e seis anos desatou-se-lhe o subconsciente e entre o alzheimer e momentos de consciência dizia: este homem roubou-me as minhas terrasFaleceu em 2003. 
Para ela Abril nunca se cumpriu.





Casos que se desenrolam no tempo e que cerceiam à Mulher a liberdade de decidir da própria vida. Nem haverá lugar a perplexidades porque sabemos muito bem que a mentalidade não muda por decreto. 

No entanto
Sei do esplendor das coisas possíveis
E da decantação das horas.
E que o perfume das madrugadas
Se alimenta desta espera.
E desta teimosia.

E deste húmus.





Desejo-vos um Dia vivido em pleno! 

Que o 25 de Abril se manifeste em cada um dos nossos actos.

Abraços.






====

Excerto do Poema, MÍTICAS AURORAS - 25 de Abril, Sempre!, de Manuel Veiga, no seu blog - Perdoe-me o Autor a ousadia - Obrigada

Leiam, se lhes interessar, para reavivar a memória - aqui (Dossier)
Imagem: daqui

* Nome fictício

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Livros


Há os livros que antes de lidos já estão lidos. Há os que se lêem todos e ficam logo lidos todos. E há os que nos regateiam a leitura e que pedimos humildemente que se deixem ler todos e não deixam e vão largando uma parte de si pelas gerações e jamais se deixam ler de uma vez para sempre.

  Vergílio Ferreira 





Disso sei eu muito bem. Há alguns livros, considerados de leitura quase obrigatória, cuja abordagem me assoberba. Um exemplo: Ulisses, de James Joyce, a sua obra-prima. Outro exemplo de entre muitos: Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez, que há anos aguarda que eu o termine. Ah! outro: Longos dias têm cem anos, de Agustina Bessa Luís, com ilustração de Vieira da Silva.
Mea culpa, obviamente.

Há clássicos que atravessam gerações, que vão deixando pedaços aqui e ali, citados como pilar referenciador de cultura. E são-no. Mesmo não os lendo do principio ao fim e, sentindo que a sua interpretação vai para além da nossa compreensão, sabemos que existem e marcaram épocas. E respeitamo-los.

Juntamente com esses autores de referência temos aqueles que nos transmitem em prosa ou em verso as suas ideias, os seus ideais, os seus sentimentos, as suas emoções. Acompanham-nos em todos os momentos. Com eles enriquecemo-nos.






A melhor maneira de respeitar um autor é fazer alguma coisa com o que ele fez. Eu adorava que fizessem alguma coisa com o que fiz. Respeitar é continuar, como se fosse um diálogo, uma conversa.


Gonçalo Tavares 

=====

Excertos : Citador
Imagem:aqui

domingo, 19 de abril de 2020

Liberdade





Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

  (1888-1935)


Meus amigos

Convido-os a ler e a interpretar este poema de conformidade  com a vossa disposição. Um pequeno exercício para testar este conceito de liberdade.

Mas, adivinho aqui um "quero lá saber" do Poeta, jogando com algumas ideias feitas, valorizando outras. Será? Não façam caso.

De vez em quando deixamo-nos envolver por um certo nihilismo. Permitamo-lo apenas por momentos. Como bem sabemos, dos fracos não reza a história.





Bom domingo.

Abraços.


=====

Poema - Citador
Imagem : aqui

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Que Voz!






A Voz de todas as nossas referências.
Aqui, Camões /Amália /Alain Oulman, conjunção perfeita.

E importa dizer algumas palavras sobre este homem que tanto fez  pelo Fado. Um compositor  que musica Poemas de grandes autores de língua portuguesa e que Amália eterniza na sua bela Voz.

Lê-se aqui:

Foi ele quem levou os poetas portugueses, como Luís de Camões, David Mourão-Ferreira, Alexandre O'Neill ou Manuel Alegre, para dentro de casa de Amália. Alain Oulman é também considerado o principal responsável por uma profunda alteração na música que a acompanhava.


No disco Com Que Voz, gravado em 1969 mas editado apenas no ano seguinte, Amália canta nomes como Cecília MeirelesAlexandre O'NeillDavid Mourão-Ferreira, Manuel Alegre, Camões, Ary dos Santos e Pedro Homem de Mello. O disco receberá o IX Prémio da Crítica Discográfica Italiana (1971), o Grande Prémio da Cidade de Paris e o Grande Prémio do Disco de Paris (1975).

Oulman, pessoa de esquerda, é perseguido e preso pela PIDE.
======

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Corrida ao novo ouro?

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

'""
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda  já  como soía...





Assim falou o Poeta, dos confins do século XVI.

Desde então, por quantas mudanças e transformações não passámos! Um espanto! Mas continuamos com esta capacidade desmesurada de nos espantarmos. Assim o quis Aristóteles. E como  é  natural, espantamo-nos com desvios de equipamento  médico  por esse mundo fora, quem sabe se não também neste jardim à beira mar ...

E para nós  simples anónimos  surge um desafio de suma importância: O uso de máscara enfim "liberalizado"!


Mortais que somos, dados ao espanto, espantar-nos-emos com a sua escassez - delas, máscaras - e com a corrida a esse novo ouro.

Mas, não  nos espantemos:

...muda-se o ser, muda-se a confiança...



====
Luis de Camões - Líricas - excerto- pg  49
Imagem daqui

sábado, 11 de abril de 2020

Boa Páscoa !






Meus amigos

Fiquei  sem  teclado no computador .. Uma das minhas pessoas  instalou-me aqui um que diz que é   táctil , mas ...
Mas o mal  não fica por aqui .quando escrevo não vejo o que escrevo.
A acrescer a isto quando quero ver o meu blog só tenho acesso ao cabeçalho e o mesmo acontece com os vossos., não tendo possibilidade  de fazer comentários  por aqui. Mas já vi que posso ler e comentar do telemóvel.
Desejo que tudo vos corra bem agora e sempre .
Saúde !
Abraços



sexta-feira, 10 de abril de 2020

Dores e desaires dos caminhantes




Que palavras
poderão espelhar este desaire
ensinaram-me o abc
deram-me a conhecer
letras e sílabas
sentenças e provérbios
ditos e cantigas

Ensinaram-me
que as letras
que as palavras
traduzem
reproduzem
encantam
contam
pensamentos
intentos
devaneios
e sonhos


Para tanta aflição expressar
esta dor queimando
a minha alma
o nosso infortúnio

Este punhal...
cravado no meu chão
maldição de que deuses
para dilacerar
as estranhas da gente?
como aplacar tanta
e tamanha dor
ninguém me desvendou
tal segredo.
-



Maria Odete da Costa Soares Semedo nasceu em Bissau, a 7 de Novembro de 1959. Aos 18 anos iniciou as suas atividades como professora. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1989/1990). Assumiu, ao regressar à Guiné-Bissau, a Coordenação Nacional do Projeto de Língua Portuguesa no Ensino Secundário, financiada pela Fundação Gulbenkian. Foi Diretora da Escola Normal Superior Tchico-Té; exerceu ali ao mesmo tempo suas atividades de professora. A partir de 1995 passou a desempenhar as funções de Diretora Geral do Ensino. Foi Presidente da Comissão Nacional para a UNESCO - Bissau. Assumiu as funções de Ministra da Saúde e de Ministra da Cultura. Doutorou-se em Letras pela PUC Minas, Brasil.



Eneida Marta : Guiné-Bissau

Traduziu para crioulo o guião do filme Olhos Azuis de Yonta do cineasta Flora Gomes e participou na rodagem do mesmo filme como assistente de realização.

Participou na Anthologie de Literatures Francophones de l'Afrique de l'Ouest, Éditions Nathan, Paris, 1994. Foi co-fundadora e é membro do Conselho de Redacção da Tcholona, Revista de Letras, Artes e Cultura. Mais: aqui


Leia, se interessar:

O que é feito da Guiné-Bissau?
    Um paraíso (quase) perdido
   Reportagem da TVI24


=====

Poema: No fundo do canto.Odete Semedo, Belo Horizonte: Nandyala, 2007.

Veja posts, desta série, sobre:
Amílcar Cabral
Vasco Cabral
António Baticã Ferreira

Agnelo Regalla

Hélder Proença

.A Literatura Guineense: Contribuição para a identidade da Nação, de Joaquim Eduardo Bessa da Costa Leite (Tese de doutoramento, 2014 - Coimbra) - pg 10


Imagem: daqui

terça-feira, 7 de abril de 2020

A Invenção do Amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio 
A descoberta 
A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura 
A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique 
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
(...)
   (1925-1964)






Em 1925 nasceu Daniel Damásio Ascensão Filipe na ilha da Boavista, em Cabo Verde. Ainda criança, veio para Portugal onde fez os estudos liceais. Poeta, foi colaborador nas revistas Seara Nova e Távola Redonda, entre outras publicações literárias. Combateu a ditadura salazarista, sendo perseguido e torturado pela PIDE. Num curto espaço de tempo, a sua poesia evoluiu desde a temática africana aos valores neo-realistas e a um intimismo original que versa o indivíduo e a cidade, o amor e a solidão. Faleceu em 1964 em Cabo Verde. aqui


Boa terça-feira, meus amigos.

Abraços.

====
Poema: In "A invenção do Amor e Outros Poemas" - Lisboa - Presença, 1972

domingo, 5 de abril de 2020

Vamos dançar, aproveitar




Vamos cair de tanto rir
E conversar, ainda sabes como se faz?

A noite vem para fazer bem. 

A noite fez-se para cantar não interessa como. 
A noite fez-se para bailar não interessa como...
A noite fez-se para sonhar.

Vou atrás da luz que mora na escuridão

Sensação de voar para outro lugar.
Ver o dia nascer sem nada a perder. 

Só estar contigo...

(Letras do video)

=====



Exorcizando ... o medo

=====
Video: "A Noite" - Marisa Lins x Carlão
Imagem: daqui

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Não posso adiar a Palavra




Não posso adiar a Palavra

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos

negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres

em toda a terra
e em todos os homens

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a «Deus Pai todo poderoso 

                           criador dos céus e da terra»

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais

as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada

no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!


Helder Proença
    (1956-2009)

Hélder Proença foi um escritor, professor e político da Guiné-Bissau, havendo lutado na guerra de independência do país, na década de 1970. Desde a adolescência que Proença escrevia poemas, àquele tempo sob a temática anti-colonialista, que resultou na publicação, em 1977, da primeira antologia poética guineense, sob sua coordenação, entre outros, e que também prefaciou, intitulada "Mantenhas Para Quem Luta!" - Mais... aqui




De uma forma ou de outra a História acaba sempre por nos apresentar a factura das nossas decisões, más práticas e incompetências. A nós ou a nossos filhos e netos, ou seja, aos vindouros. Trata-se aqui da tal História de que se não fala muito, porque incómoda. Assim a História da África Negra. Esquecer a Conferência de Berlim de 1884/1885, em que se procedeu à partilha de África pelas potências de então, parece remeter aos povos que depois ascenderam à independência a responsabilidade, na íntegra, de todos os seus insucessos sociais e políticos. O que não corresponderá à realidade. 

Estou a pensar no caso da Guiné-Bissau. Ano após ano assistimos à tentativa falhada de que o regime político que lhe foi imposto dê resultado, a forma de auscultação popular exportada do chamado ocidente, como boa, dê frutos. E nós, na nossa alta consciência e detentores de todas as razões e lógicas encolhemos os ombros e damo-lo como caso perdido. Terra de vários povos, alguns separados arbitrariamente do seu torrão, de grande variedade étnico-cultural, difícil se torna a integração desses valores num objectivo comum. 

E tomando como mote este poema de Hélder Proença, escrito num momento outro, diria que a Palavra não poderá ser adiada por mais tempo. Uma nova visão desse mundo com idiossincrasias próprias e que nos passa ao lado deveria ser abordada. Pelos próprios guineenses, naturalmente. E pela nossa predisposição de melhor entender essa realidade...

Continuando um pouco na senda do que expresso acima, apresento-vos um dos grandes pensadores africanos dos nossos dias: 

Kuasi Wiredu que, em DEMOCRACIA E CONSENSO NA POLÍTICA TRADICIONAL AFRICANA: Um apelo para uma política apartidária - argumenta que o sistema político multipartidário frequentemente visto como o fundamento para a democracia, nem sempre conduz à unidade e à estabilidade. Em vez disso, a democracia de consenso é muito mais adequada ao contexto africano. Wiredu elabora a sua tese a partir do exemplo do sistema político tradicional dos Ashantis em Gana...*

Posição que estudada e experimentada poderia conduzir a certezas ou formas de governo mais adaptadas ao meio e às diversas culturas. Quem sabe?
Diz-se que a democracia é um sistema com muitos defeitos mas melhor que todos os outros. De acordo. Isso, no nosso mundo que o foi buscar à antiga Grécia tendo sido adaptado e acrescentado e reinterpretado ao longo dos tempos...

Bom fim-de-semana, meus amigos.

Abraços.


=====

Poema: daqui
Veja posts, desta série, sobre:
Amílcar Cabral
Vasco Cabral
António Baticã Ferreira

Agnelo Regalla

.A Literatura Guineense: Contribuição para a identidade da Nação, de Joaquim Eduardo Bessa da Costa Leite (Tese de doutoramento, 2014 - Coimbra) - pg 10
*.Democracia e Consenso na Política Tradicional Africana - de Kuasi Wiredu

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O aconchego do sofá, do pijama...

...e não só. Do roupão, do robe, das pantufas com peúgas a meio das canelas e duma batinha de trazer por casa por cima do pijama, no nosso caso, mulheres... É o que mais apetece nestes dias caseiros, forçados. Que coisa mais apetecível do que acordar de manhã e, com os pés um pouco a arrastar, caminhar para a casa de banho, depois agarrar numa caneca de café e bocejando sentarmo-nos no sofá? E assim por diante pelo dia fora, pois que não há nada para fazer, a rotina foi subvertida, fazer o quê?

Seres gregários, sentimo-nos algo perdidos. Mas também temos aquela capacidade imensa de adaptação, para o bem e para o mal, diga-se. E como temos um cérebro que também se adapta na mesma medida, vamos fazê-lo funcionar para o nosso bem e o daqueles que nos rodeiam. 

De repente demos conta de que o âmago da sociedade transferiu-se para a nossa casa. Já existia, mas dividia-se entre o nosso espaço familiar e outro mais alargado, lá fora. Agora, temos de gerir uma micro-estrutura, assoberbante devido às suas características e circunstâncias. E para que não vá tudo por água abaixo há que tomar medidas, definir algumas regras




Assim, teremos de fazer valer a vida do dia-a-dia como um tempo de amor e partilhas. Há sempre muitas tarefas a realizar. Tomemo-las em nossas mãos e façamo-las parecer leves com a participação de todos. Desde as lides domésticas às refeições à mesa, às lições aos mais pequenos, e entretê-los, ao tempo de lazer, leitura, jogos, tudo tem de ser levado em consideração, com o objectivo comum de que é para o bem todos.  

A ideia é todos cuidarmos uns dos outros sem gritos ou imposições. E mais, estejamos apresentáveis, sempre, embora com roupas confortáveis.

Só assim a nossa cabeça continuará a responder às exigências que se nos colocam e às quais teremos de responder responsavelmente. Porque poderemos ter de enfrentar mais dificuldades. E, quando isto terminar, a nossa sanidade mental é que nos salvará. E o nosso estado físico que também deve ser exercitado.

Sei, são coisas simples que todos já estarão a fazer. Contudo, esta é uma das formas de, também eu, continuar activa. Entre outras coisas, botando palavras aqui no computador e, consequentemente, no Xaile de Seda
Il faut cultiver notre jardin.

Aproveito para inserir, abaixo, um pequeno texto sobre a importância de bem dormir, condição essencial para ter pensamentos claros, firmes e luminosos:

O sono como condição de saúde

Eu presto homenagem à saúde como a primeira musa, e ao sono como condição de saúde. O sono beneficia-nos principalmente pela saúde que propicia; e também ocasionalmente pelos sonhos, em cuja confusa trama uma lição divina por vezes se infiltra. A vida dá-se em breves ciclos ou períodos; depressa nos cansamos, mas rapidamente nos relançamos. Um homem encontra-se exaurido pelo trabalho, faminto, prostrado; ele mal é capaz de erguer a mão para salvar a sua vida; já nem pensa. Ele afunda-se no sono profundo e desperta com renovada juventude, cheio de esperança, coragem, pródigo em recursos e pronto para ousadas aventuras. «O sono é como a morte, e depois dele o mundo parece começar de novo. Pensamentos claros surgem firmes e luminosos, como estátuas sob o sol. Refrescada por fontes supra-sensíveis, a alma escala a mais clara visão» [William Allingham].

Ralph Waldo Emerson, in "Inspiration"



E Pedro Barroso, aqui, num Medley




Canções eternas de autores inesquecíveis. 
Oiçam-nas e digam-me se não vale a pena...

"Tu sozinho não és nada, juntos temos o mundo na mão"
António Macedo



====
Texto: citador
Imagem: daqui