quarta-feira, 30 de março de 2011

SONHO ABSURDO



gomes_ferreira


Li ontem, num jornal, que a Biblioteca Nacional adquirira o espólio de José Gomes Ferreira. Quer dizer que estamos mais ricos, em termos de património cultural. 


Um dos seus melhores momentos:




Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.


José Gomes Ferreira

1900-1985




sábado, 26 de março de 2011

XAILINHO DE MARIANA


Há horas felizes, diz o povo, na sua grande sabedoria. E realmente foi muito bom quando a Mariana Reis, blogger que eu sigo, quis prestigiar este meu blog com palavras tão bonitas e de um saboroso toque popular. Resolvi complementá-las, abaixo, com o video do grupo vozdocemel, que canta e dança à volta do mesmo tema



Eu quero andar embrulhada
no seu xailinho de seda
Aquele que a avó sempre leva
quando vai à descamisada.

E quero levá-lo ao baile
p'ra nele abraçar o meu par
Avó, deixe-me embalar
e adormecer no seu xaile!

Mariana Reis






quinta-feira, 24 de março de 2011

LEGADO

Para que serve a História? Perguntinha insidiosa que não precisa de resposta pois ela já lá está: para nada. Contudo, há quem diga que o conhecimento do passado ajuda-nos a compreender e a prevenir erros no presente e a projectar o futuro. Vejamos o exemplo deixado por D.Luís da Cunha que, aproveitando a sua experiência como diplomata, envia uma carta ao futuro rei D.José na qual lhe apresenta alternativas para a governação do País, documento que ficou conhecido como seu Testamento Político. Os tempos são outros, dir-se-á. Mas, é o mesmo Portugal, embora com mais dois séculos de existência, para não dizer três, com outro regime político, a República, fundado na liberdade e, conceptualmente, visando a felicidade dos povos.Razões mais do que suficientes para que os nossos pensadores se ponham a pensar e a desbravar caminhos. Não será preciso procurar muito. Bastará olhar para dentro de si mesmos e seguir as lições que o passado nos oferece. Mutatis mutandis.


D. Luís da Cunha


D. Luís da Cunha

«Deus não pôs os ceptros nas mãos dos príncipes
para que descansem, senão para trabalharem
no bom governo dos seus reinos.»




Imagem e citação:
Portal da História

segunda-feira, 21 de março de 2011

TODAS AS CORES, TODAS AS IDADES

Hoje está sol, a Primavera entrou com o pé direito, fala-se das árvores e das florestas e de como a sua preservação e manutenção é vital para nós. Pois hoje, logo de manhãzinha, em frente a duas canecas fumegantes de café com leite com torradas e outras coisinhas deliciosas, dei colinho à minha filha de 23 anos que vai na sua segunda semana de estágio/trabalho precário, duro. Depois fui a um encontro entre 30 crianças de uma creche e idosos de um Centro de Dia. Para ler e ouvir poesia, falar da nossa História, nomeadamente de Afonso, filho de Henrique, fundador da nossa nacionalidade e de Dinis, o rei trovador e lavrador. E como não podia deixar de ser da sua mulher a Rainha Santa Isabel e do Milagre das Rosas.Que de milagres precisamos nós, mais do que nunca! E então começo a pensar que hoje já tenho o meu quinhão de felicidade e o dia ainda vai a meio. Para todos os que atravessam momentos difíceis e que tentam sobreviver no meio de guerras e cataclismos um pensamento de solidariedade. E deixo aqui um poema singelo para todas as idades, retirado de uma página web e lido no tal encontro:


Poesia: As cores



Amarelo é um pinto
amarelo é um limão,
amarelo é a cor do sol
que brilha no verão.

Azul é o céu,
azul é o teu olhar,
azuis são as ondas
que brincam no mar.

Verdes são as folhas,
verde é a esperança,
verde é a relva,
onde brincam as crianças.

Castanho é o tronco,
castanha é a montanha,
castanho é o macaco
que come a castanha.

Vermelho é o casaco,
vermelho é o calção,
vermelho fico eu quando
me chamam a atenção.

Laranja é um fruto,
laranja é o leão,
laranja é o sumo
que bebo de mamão.

Rosas são as flores,
rosa é o amor
Os beijos são rosas
de belo sabor.

Cinzenta é a nuvem,
e as gotas também,
cinzento é o dia
em que o amigo não vem. 

In - http://ticeeb.wikifoundry.com/page/Poemas+para+crian%C3%A7as

VAI ALTA NO CÉU

primavera.JPG


Vai alta no céu a lua da Primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.

 
Alberto Caeiro 
(Fernando Pessoa)


domingo, 20 de março de 2011

NÃO SÃO AS CRIATURAS QUE MORREM


O BAIRRO DA MINHA INFÂNCIA

Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.

As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.

E quem de si nasce
à eternidade se condena.

Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.

A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.

Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.

Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.

Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte
é o impossível abraço da água.


MIA COUTO
[in Tradutor de Chuvas, Caminho, 2011]


quinta-feira, 17 de março de 2011

ARQUÉTIPOS


Ler O Mundo de Sofia, de Jostein Gaader, é, na verdade, um dos exercícios mentais mais agradáveis que há porque se trata de aprender filosofia de forma lúdica ou de fazer algumas comparações com o que se aprendeu, na escola, através de métodos pouco apelativos e, por vezes, frustrantes. Neste mundo de Jostein Gaarder não há confusão ou necessidade de esclarecimentos à simples menção do nome Sócrates: se é Sócrates o filósofo, Sócrates o nosso inefável prime minister ou Sócrates o jovem talentoso, saxofonista, do Portugal tem talentoAqui, também temos Aristóteles a defender que o espanto ou a capacidade de nos admirarmos todos os dias com as mesmas coisas é o sal da vida e que todo e qualquer acto do quotidiano, do mais simples ao mais complexo, é política (ciência suprema), pois o homem é um animal social e político por natureza. Assim, está bem de ver que de nada me vale dizer: Ah! Eu não sou política, não gosto de política. Platão, o homem que passou a escrito as ideias do seu mestre, Sócrates, também me dá uma achega quando diz que o mundo concreto percebido pelos sentidos é uma pálida reprodução do mundo das ideias. O que também me leva à indução, verdadeira ou não, de que tudo o que acontece não passa de ilusão. A filosofia é uma coisa boa e é a disciplina mãe de todas as outras. Pelo menos, era o que se pensava há muitos e muitos séculos. Em todo o caso, para meu governo, é sempre bom recordar e imbuir-me daquele espírito introspectivo, defendido por Sócrates no seu método fundado na ironia, diálogo sui generis, e consubstanciado na máxima: conhece-te a ti mesmo.   




sexta-feira, 11 de março de 2011

BERTIE


Fui ver o filme. Regra geral desconfio da propaganda feita aos filmes, antes da atribuição dos óscares. Acabam sempre por me decepcionar. Mas, pelo sim, pelo não, fui ver O Discurso do Rei quanto mais não fosse porque o protagonista é o meu querido Colin Firth. O que vos digo é que adorei: achei sublime a sua intrepretação no papel de príncipe Albert e depois como George VI. Não menos impressionante Geoffrey Rush que, de um papel que poderia ser considerado de segundo plano, consegue guindar-se pelo seu cariz de autodidacta, aliando competência e compaixão, com resultados absolutamente inesperados.Também gostei de ver Eduard VIII, o rei que abdicou do seu trono por amor, com aquele toque de romantismo que sempre nos revisita. O retrato de Wallis Simpson, um tanto  interesseira, calculista e outras coisas deixou-me um tanto perplexa.Tinha dela uma ideia diferente, sabe-se lá porquê, tipo mulher frágil e desprotegida.

 
A gaguez como tema principal foca bem a pressão exercida pela sociedade e pela própria família, inclusivamente nos nossos dias.



terça-feira, 8 de março de 2011

MUKAI*






(2)

O ventre semeado

desagua cada ano

os frutos tenros

das mãos
                
(é feitiço)

nasce a manteiga

a casa

o penteado

o gesto

acorda a alma

a voz

olha para dentro

do silêncio milenar.


(O lago da lua)

Ana Paula Tavares


*Mulher
Excerto e imagem retirados de:

sábado, 5 de março de 2011

TEMPOS (i)



O tempo das esperas, de deixar amadurecer uma notícia, de chorar por causa de uma catástrofe, de um cataclismo, já lá vai. Agora tudo se sabe a cada minuto, praticamente antes de acontecer, privando o nosso espírito do seu poder de assimilação. 

Estamos a anos-luz da sucessão paulatina dos dias e das noites, de ver o tempo nas estrelas, na Via Láctea ou Estrada de Santiago, de contemplar a lua e saber que vai chover, do esvoaçar dos pássaros quando o vento se avizinha. E a anos-luz estamos do tempo dos mensageiros que percorriam grandes distâncias e chegados ao destino sucumbiam exauridos; dos dias e dias, meses, anos que duravam as viagens antes e depois do tempo das catedrais e do cantochão; do tempo dos peregrinos, do caminho das florestas que continha perigos de toda a espécie; do mar de ondas alterosas e monstros que alimentavam a imaginação das gentes.

Caminhando em direcção ao futuro a forma de comunicar foi sendo aperfeiçoada: correio expresso, estradas, veículos de tracção animal, automóveis, aviões supersónicos, naves espaciais, que sais-je?, o mundo é hoje uma coisa só. Da nossa casa, sentados a uma secretária, deitados, de uma bóia na piscina, de um banco de jardim, no mar, a sulcar os céus, podemos decidir do destino das nações, das pessoas, da guerra, da paz. As ferramentas electrónicas de hoje facilitam-nos a vida até ao inconcebível; tanto podemos combinar encontros amorosos, manifestações cívicas como engendrar revoluções... E nem precisamos ser especialistas, é tudo na óptica do utilizador e à distância de um clique. 

Ao mesmo tempo, através dessas estradas as ideias são veículadas, o pensamento filósofico como medida de todas as coisas sofistica-se, a evolução em termos conceptuais e abstractas afirma-se cada vez mais e já há alguma dúvida se estaremos ainda, integralmente, no tempo do homo sapiens sapiens ou se haverá já, de entre nós, um grupo que se destacará não tarda nada.

Contudo, pobres de nós, com os neurónios concentrados na nossa faceta de Indivíduo Sentado estamos a perder a habilidade de sobreviver em contacto com a natureza. No nosso código genético estará inscrito que fazemos parte integrante dela e antes de nos distanciarmos irremediavelmente dos outros primatas teríamos tido a noção disso. 

Mas, bem no nosso íntimo vamos sentindo o apelo da selva. Não poucas vezes bate em nós aquela sede de aventura.Então resolvemos dar asas a essa condição, fazemos um pique-nique ou acampamos, acendemos uma fogueira, descuidamo-nos e incendiamos tudo; sentamo-nos numa escarpa em frente ao mar, com saudades indefiníveis, contemplando a linha do horizonte, na conversa com amigos, vêm ondas e levam-nos; aproximamo-nos de uma ribanceira muitas vezes de um precipício para olhar lá para baixo, numa curiosidade incompreensível ou não, e escorregamos. Mais ainda, metemo-nos em mares e rios cujos perigos não conhecemos e desaparecemos.

E isto repete-se todos os anos, sempre que o tempo se torna mais ameno, lá vamos nós perecer numa atitude inglória e fatalista.

Il faut cultiver notre jardin.


Imagem Google

quarta-feira, 2 de março de 2011

SEM ALVORADA



António Gedeão (Rómulo de Carvalho), de uma forma magistral, soube imprimir ritmo e sentimento a este poema, portador de uma verdade imensa, e que será a história de tantas mulheres, de tantas Luísas que há por aí e por esse mundo fora.Perguntar-se-á: então, e os direitos conquistados e a emancipação e...?


                                      Calçada de Carriche

                                         Luísa sobe,
                                         sobe a calçada,
                                         sobe e não pode
                                         que vai cansada.
                                         Sobe, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe
                                         sobe a calçada.

                                         Saiu de casa
                                         de madrugada;
                                         regressa a casa
                                         é já noite fechada.
                                         Na mão grosseira,
                                         de pele queimada,
                                         leva a lancheira
                                         desengonçada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                         Luísa é nova,
                                         desenxovalhada,
                                         tem perna gorda,
                                         bem torneada.
                                         Ferve-lhe o sangue
                                         de afogueada;
                                         saltam-lhe os peitos
                                         na caminhada.
                                         Anda, Luísa.
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                         Passam magalas,
                                         rapaziada,
                                         palpam-lhe as coxas
                                         não dá por nada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                         Chegou a casa
                                         não disse nada.
                                         Pegou na filha,
                                         deu-lhe a mamada;
                                         bebeu a sopa
                                         numa golada;
                                         lavou a loiça,
                                         varreu a escada;
                                         deu jeito à casa
                                         desarranjada;
                                         coseu a roupa
                                         já remendada;
                                         despiu-se à pressa,
                                         desinteressada;
                                         caiu na cama
                                         de uma assentada;
                                         chegou o homem,
                                         viu-a deitada;
                                         serviu-se dela,
                                         não deu por nada.
                                         Anda, Luísa.
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.
                                         Na manhã débil,
                                         sem alvorada,
                                         salta da cama,
                                         desembestada;
                                         puxa da filha,
                                         dá-lhe a mamada;
                                         veste-se à pressa,
                                         desengonçada;
                                         anda, ciranda,
                                         desaustinada;
                                         range o soalho
                                         a cada passada,
                                         salta para a rua,
                                         corre açodada,
                                         galga o passeio,
                                         desce o passeio,
                                         desce a calçada,
                                         chega à oficina
                                         à hora marcada,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga;
                                         toca a sineta
                                         na hora aprazada,
                                         corre à cantina,
                                         volta à toada,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga.
                                         Regressa a casa
                                         é já noite fechada.
                                         Luísa arqueja
                                         pela calçada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                     
António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967)