sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Insónias



Doravante 
gritarei no alto dos montes a minha ode ardente, a minha hossana à mãe-natureza. Nos braços do vento, nas ondas do mar, na brisa acariciante, na frescura da água cantarei, vibrarei.
Procurarei beleza no macadame, no barulho da cidade, nos carros que passam, nos escapes que fumegam. Nas torres de cimento, nas máquinas que rugem, na tecnologia obcecante, no burburinho, buscarei e encontrarei amor...

Doravante
deixarei a minha pena correr, livre e enlouquecida, afiada, de ponta em riste, louvando isto e aquilo. No bolo de 
arroz acariciando o palato de uma figura de Rubens, na obesidade de um Adónis, verei graça e encanto. Na Messalina perdida que oferece seus favores, na Vénus desnuda de seios palpitantes, verei sinal de missão. Do status quo retirarei apenas e só o inefável. Da vida vivida o suco. Da realidade a aparência. 
Qual 
Fénix renascerei.

Dinola Melo


Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso. 
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Exagero meu no que te diz respeito, Dinola.
Mas de exagero, exagero excessivo, sabe Álvaro de Campos. 
Quanto ao resto, uma pálida amostra.







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Ode Triunfal (referência) - Álvaro de Campos

domingo, 20 de setembro de 2020

A casa em que nasci, Marianinha



«A casa em que nasci, Marianinha,
está voltada a Su-sueste
e tem à frente um cipreste
de atalaia à seara e vinha.

Casa já antiga, descaiada,
se o Sol lhe bate na fachada,
inunda-se a varanda de alegria;
tia Rita fia na roca
e dos buraquinhos da alvenaria
salta pardal com pardaloca.

À velha chaminé é um regalo
ver o fumo subir, fazer halo.
No montado, ouvem-se anhos balir
e derretem-se lantejoulas a luzir,
trouxe-as a Primavera no regaço
e espalhou-as pelo tojo, urze, sargaço,
sem desprezar trigal, jardim,
rampas, refúgio de erva ruim.

Manhã cedo, rompe a cantata,
nas árvores de fruto e pela mata.
─ Sol, Sol! ─ trauteiam os pardais,
tordos, melros e verdiais.
─ Sol, Sol! ─ pede o tuinho na balsa
e o auricu que apagou o candil na salsa.

E o Sol ergue-se por detrás dos montes,
e lá vem, sem olhar a vias nem pontes,
triunfal, contente como um ás,
com sua capa de arcebispo primaz.

Quem não ouve decerto sente
que vem salvando: ─ Olá, boa gente,
pássaros a voar e no ninho,
fonte, e tu a ladrar, cãozinho,
para que abram e nos deixem entrar.

Olá, meu amigo carvalho,
à minha espera no festo da colina,
e, no almarge, o carneiro do chocalho,
o cabrito, a cabrinha e até o chibo,
ronda-vos o lobo, mas sopro a neblina,
e vai mais longe buscar o cibo.
Salve, amigos, haja fartura e alegria! (…)» 
(ler poema completo aqui )

Aquilino Ribeiro 
  (1885-1963)


Aquilino Ribeiro, (Tabosa do Carregal, 13/9/1885 – Lisboa, 27/5/1963) Romancista, folhetinista, contista, novelista, professor, director da Seara Nova (1921), fundador e presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores (1956).


Sobre as "Terras do Demo", diz o Autor:

"...Chamei-lhe assim porque a vida ali é dura, pobrinha, castigada pelo meio natural, sobrecarregada pelo fisco mercê de antigos e inconsiderados erros e abusos, porque em poucas terras como esta é sensível o fadário da existência." aqui

Boa semana, meus amigos.



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Poema - in O livro de Marianinha (1967) - Livro dedicado à neta, Mariana aqui
Imagem - Fundação Aquilino Ribeiro - clique e leia mais sobre a vida de Aquilino Ribeiro 


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NOTA:
Por iniciativa da respectiva Junta de Freguesia, a 4.ª edição de Alvalade Capital da Leitura é dedicada a Lídia Jorge, que este ano celebra 40 anos de vida literária.
A autora de "O Dia dos Prodígios" (1980) será homenageada entre hoje (21) e o próximo dia 26...
Leia mais, clicando em "Da Literatura".


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sábado, 12 de setembro de 2020

Libertação através da Cultura

Um povo deve apropriar-se da sua cultura e fazer dela o seu estandarte. Revolver a terra à procura dos valores da sua ascendência e beber as ideias emanadas desde o princípio dos tempos. Despir-se de roupagens culturais trazidas pelo opressor numa assimilação imposta e eliminar em si próprio todos os resquícios externos fazendo nascer um homem novo. Amílcar Cabral acreditava neste paradigma, não propriamente com estas palavras, mas de forma sistemática e com uma fundamentação político-filosófica de mestre.
Qual a realidade geográfica e mental que ele tinha em vista? Pergunta retórica... Era a Guiné e, paradoxalmente, unido a Cabo Verde. Espaços geográficos diferentes e mentalidades diferentes e já com desinteligências no terreno de quase-séculos. Mas não é aqui que reside o propósito desta reflexão. É dentro da própria Guiné onde existia uma grande diversidade de povos, com as suas diferenças e as suas querelas ancestrais (R.Pélissier). Onde seria necessário encontrar um denominador comum que servisse de elo, numa noção de corpo e de nação trilhando os mesmos caminhos. Tê-lo-á descoberto Cabral? Talvez. Contudo, sabemos que ele não pôde consolidar e pôr em prática as suas ideias. Um tempo que lhe foi roubado.
Hoje sentimo-nos perplexos perante a instabilidade na Guiné-Bissau. Ali, todas as situações são consideradas de ruptura, não prevalecendo o diálogo e a procura do caminho ideal para que o país possa prosseguir em paz. Fazem-se perguntas. Apontam-se motivos. Soluções, não se vislumbram. 
Voltando a Cabral, mas com a adaptação necessária a estes tempos, há que dar pequenos passos, indo buscar ao passado elementos culturais válidos, como o amor arreigado à terra, no sentido de serem ultrapassadas as diferenças para a construção do país com o contributo de todos. 

Este é o excerto de um post que produzi, aqui, em 2012. De lá para cá pouca diferença a apontar no que diz respeito à Guiné-Bissau, apesar dos esforços desenvolvidos por alguns dos seus filhos.


Hoje passam 96 anos sobre o nascimento de Amílcar Cabral. O seu legado como homem que preferia o diálogo à luta armada e o primado da Cultura combatendo a ignorância, é um exemplo de savoir-faire e de estadista de alto nível.

Eu sou tudo e sou nada…
Mas busco-me incessantemente,
– Não me encontro!

Oh farrapos de nuvens,
passarões não alados,
levai-me convosco!
Já não quero esta vida,
quero ir nos espaços
para onde não sei.

Dúvidas que naturalmente assombram quem ousa sair de si mesmo e procura compreender o Mundo.



Abraços, meus amigos. 

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Poema - aqui– Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

Ver, se interessar: Amílcar Cabral e o gosto pela Literatura

domingo, 6 de setembro de 2020

Vida pós-Covid ou com Covid?

Acho interessantíssimo falar-se da vida pós-Covid, como se já tivéssemos atravessado o deserto com o oásis à vista, quando é certo que este será, por enquanto, apenas uma miragem. Neste momento não há certezas nenhumas sobre quando nos poderemos considerar livres de tal vírus, pois não há medicamentos específicos para o combater e vacina muito menos, ainda que haja algumas notícias nesse sentido. 

Compreendo que se queira pensar o futuro, fazendo projectos disto e daquilo. Mas não descuremos o presente que se apresenta tão periclitante. Esta pandemia veio pôr a nu situações gritantes de desigualdade social. A imposição do confinamento se, por um lado, terá sido o mais acertado até se perceber que medidas concretas poderiam ser tomadas, por outro veio atirar para a miséria pessoas cuja situação financeira já não era famosa. 

Daí que tenhamos de retomar a vida, as nossas actividades, agora, no quotidiano. Não há alternativa. De nada vale ficarmos trancados no nosso medo, sumamente humano, de ficarmos infectados. Todos os nossos hábitos diários implicam essa possibilidade. Tudo o que é produzido sai de mãos humanas, desde o cafezinho que vamos tomar ao Café da esquina, aos bolos, às refeições e compras que fazemos ou que nos vêm trazer a casa, ao restaurante que frequentamos, às fábricas de transformação de alimentos, ao dinheiro que passa de mão em mão, ao multibanco, ao rodar a maçaneta de uma porta, ao abraço a familiares e amigos, tudo é passível de transmitir a infecção. Nós, os humanos, somos os agentes deste vírus. Os únicos? Não sabemos ainda, penso eu.

Assim, o que há a fazer é todos nós seguirmos as regras que se têm como boas, isto é, consideradas capazes de nos defender de percalços. Não há dúvida nenhuma de que a situação não se presta a que nos relaxemos, não é verdade? Lavar as mãos, desinfectar as mãos, usar máscaras em espaços fechados...não fazer ajuntamentos, guardar distâncias de segurança. 

A abertura das escolas, dos colégios, dos infantários vem colocar-nos um desafio enorme. Será uma obra hercúlea. Nem sei como impedir que crianças de tenra idade se mantenham afastadas umas outras por mais regras que haja...Que Deus nos acuda!  

Quanto à máscara, lembremo-nos de que esta pandemia é real e que ela, a máscara, entre outros cuidados, serve para nos proteger da infecção e se lidarmos com ela displicentemente acabará por ser um veículo de transmissão do vírus.


 

Boa semana, meus amigos.

E muita Saúde!

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