segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Onde está a luz?

 


Era Dezembro, no seu princípio. E nós éramos quantos? Eu, marido, filha, marido da filha, uma irmã, um casal de sobrinhos...Portanto, sete. Planeámos visitar a ilha de rochas sumptuosas, Santo Antão. Um dos meus primos cedeu-nos a sua casa em Porto Novo. Tomámos o barco em S.Vicente, chegámos ainda a tempo de tomar o pequeno-almoço num restaurante perto do porto. Fomos deixar as nossas coisas em casa e seguimos com o meu sobrinho a conduzir. Subimos até ao alto da Corda, onde o clima muda repentinamente, fresco quase frio, árvores frondosas, ambiente verdejante, e, ao longe, as nuvens davam-nos a ilusão de mar imenso. Visitámos vários sítios, subimos e descemos por caminhos impensáveis. Tinha estado a chover, as estradas quase aéreas mostravam vestígios de derrocadas. Houve momentos em que nos sentimos em perigo e a tracção a quatro rodas fez-se necessária. Voltámos ao Porto Novo pela tardinha, cansados e transpirados. Todos de banho tomado, o pessoal mais novo encalorado ligou ventoinhas, televisão, alguns puseram-se a ouvir música. E eu, tipo ave de mau agoiro: cuidado, não conhecemos a casa... E eles na maior descontracção, com a ideia de repor energias. De repente, um apito ininterrupto, um alarme estrepitoso soou e todos espantados à procura da sua proveniência. Fomos dar com um quartinho minúsculo, talvez 2x2m, se tanto, entre a sala e os quartos, com uma instalação de fios bem pregados à parede que desapareciam pelo tecto. Do lado direito um contador que marcava 25%. 




Todos se interrogavam: o que será isto? Os especialistas de serviço, todos, a olhar para aquilo sem perceber nada, tudo em pânico pois receávamos ter dado cabo de alguma coisa... Os dois quartos foram destinados tacitamente a dois dos casais, a minha irmã encontrou um divã desdobrável que preparou na sala de jantar, filha e marido destinaram algumas almofadas que iriam colocar no chão da sala para dormirem. Ainda com aquilo a apitar, dirigi-me ao meu quarto premi o interruptor, ouviu-se um clique e foi escuridão total. Agora tudo às aranhas, ninguém sabia onde estavam as coisas. Às apalpadelas lá nos deitámos... Não passou muito tempo quando oiço a filha ao meu lado, aflita: mãe mãe passou-me um bicho pela cara acho que é um escaravelho, não quero ficar ali. Ajeitei-me para o meio da cama, ela deitou-se e, durante a noite, eu enchouriçada entre a filha e o pai sem poder respirar até que a manhã raiou (não: a manhã não raia, diz o poeta). A seguir, a utilização da casa de banho, com os banhos, a higiene, o pequeno-almoço atribulado...nisto chegou a senhora encarregada da casa e nós a prepararmos as nossas coisas para seguir viagem, para o outro lado da ilha. Muito embaraçados contámos o que tinha sucedido com a luz, o alarme, a atrapalhação e ela descontraidamente dirigiu-se ao quadro da luz e disse: Oh, quando aquele contador marca 25% é porque a energia solar acumulada vai esgotar e então liga-se a luz da Companhia. E foi o que ela fez. Simples.

 



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Imagens: net

Video: Cesária Évora: Nho Antone escaderode

sábado, 7 de setembro de 2024

Réstia de mim





Bates a todas as portas
Na busca incessante
de uma réstia de mim,
Nas minhas raízes
No meu rebento
No meu sofrer

Mas sempre prudente
Sussurante e felino.
Não fazendo perigar
O inexpugnável núcleo 
Que tão bem construíste
À custa das nossas Vidas!

Dinola Melo







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Imagem: pixabay

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Sob a magia do ritmo

 


Dançava e dançava. Os meus pés não tocavam no chão. Sentia-me leve como uma pluma. A técnica aliada à agilidade, a ginástica e o muito treino faziam-me voar. Com graça. Com donaire. Até me sentia orgulhosa de mim. Com elegância atirava ao ar a fita que cabriolava e fazia círculos no ar dando-me tempo para tocar o solo, quase não o tocando, uma perna dobrada, outra atirada ao ar gentilmente, a arte em todos os gestos. Um salto revoluteado leva-me ao infinito para, a seguir, dar um salto sobre mim mesma e cair de bruços já com a cumplicidade da fita a pousar sobre a minha mão direita. Apanho-a e num acto de mágica enrolo-a em mim, depois desenrolo-a, dou um salto mortal e ela continua companheira e pousa suavemente sobre o meu ombro esquerdo... Palmas entusiásticas troam os ares. Um pouco desconcentrada retomo a minha evolução, noblesse oblige. Até nem me interessava muito a pontuação. Entregava-me a essa execução e sentia-me realizada. A competência do meu corpo e a elasticidade levavam-me em apoteose...De súbito, uma estridência, um susto, o despertador soa.


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imagem: pixabay   

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Dê-me uma codinha, senhora mãe...

 O Brás ia manducando, de olhos parados, a cismar. Já se enxergavam pela casa fora os trastes todos. Em carrapatinho como a mãe o botou ao mundo, António, o mais novo, de cinco anos, rompeu do quarto de dormir. Vinha de verga arrebitada, com a bexiga cheia. E, chegando-se ao açafate, lamuriou:

_Dê-me uma codinha, senhora mãe...

_Levantas-te com fome canina, rapaz!

O pai deu-lhe um cigalho de broa e, derriçando, correu à soleira da porta, aberta de par em par à madrugada, a verter águas para a rua.

Banhado do sol, nem o Menino Jesus, o taludinho, que se dá a beijar no dia de Reis, a olhar do seu trono de luzes por cima do mar de cabeças. A benção de Deus o cobrisse e fizesse um homem!

O Brás guardou a navalha e disse para o Júlio:

_Anda, vai adiante ver se o tio Joaquim Paula já largou.

_Mete no bolso, comes pelo caminho! - aconselhou a mãe, que o via agarrado à bôla.

O Brás, de saco e guarda-sol em barba de baleia debaixo do braço, desandou:

_Até logo, mulher.

_Ide com Sant'António! - pronunciou ela do traço da porta. _Não esqueçam as testeiras, que daqui a pouco não tenho que calçar.

Aquilino Ribeiro, in Terras do Demo - pgs 128/129


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Aquilino Gomes Ribeiro (1885 -1963) foi um escritor português.

É considerado por alguns como um dos romancistas mais fecundos da primeira metade do século XX. Iniciou a sua obra em 1907 com o folhetim A Filha do Jardineiro e depois 1913 com os contos de Jardim das Tormentas e com o romance A Via Sinuosa, 1918, e mantém a qualidade literária na maioria dos seus textos, publicados com regularidade e êxito junto do público e da crítica.



Monumento em homenagem a Aquilino Ribeiro
Viseu - Portugal


A linguagem de Aquilino Ribeiro caracteriza-se fundamentalmente por uma excepcional riqueza lexicológica e pelo uso de construções frásicas de raiz popular, cheias de regionalismos....

Apesar de ter optado por uma literatura de tradição, Aquilino procurou ao longo da sua vida uma renovação contínua de temas e processos, tornando-se assim muito difícil sistematizar a temática da sua vastíssima obra. Leia mais aqui



A alma e a Gente - 
Aquilino Ribeiro nas Terras do Demo
José Hermano Saraiva



Sobre as "Terras do Demo", diz o Autor:

"...Chamei-lhe assim porque a vida ali é dura, pobrinha, castigada pelo meio natural, sobrecarregada pelo fisco mercê de antigos e inconsiderados erros e abusos, porque em poucas terras como esta é sensível o fadário da existência." aqui


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Ver Aquilino Ribeiro no Xaile de Seda - aqui


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Uma questão de perspectiva, talvez...





Comecei a achar que já não reconhecia aquela rua. Parecia-me muito pequena. Lembro-me que saía de Lombo do Meio para ir a Armazém e fartava-me de andar. A ponte que atravessava a vila tinha uma boa extensão. De um lado e do outro, agora, casas que me parecem sem traça, enormes. Os bancos da ponte desapareceram. Nas noites de lua cheia costumávamos percorrê-la dando uns bons passeios e neles nos sentávamos, contávamos anedotas, rindo às gargalhadas. E também nas noites escuras. Conhecíamos todos os desníveis da calçada. Nem um tropeço acontecia. A ribeira, seca em tempo de estio, também já não tinha aquela largura que eu atravessava a correr como se tivesse asas nos pés, alternativa para não passar pela ponte à saída da escola, quando queria fugir aos piropos dos rapazes. Não poucas vezes, nessa pressa, estatelava-me e então é que eram risos trocistas. Por conta disso, tenho boas marcas nos joelhos que o tempo conservou. Uma das minhas decepções foi já não ver o chafariz. O progresso fê-lo sumir restando apenas aquele recanto irreconhecível. Também as árvores-da-borracha, que davam uma bela sombra, foram arrancadas...



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imagem: net