sábado, 30 de setembro de 2023

"Terra nhanhida, senhor! infeliz, desgraçada... - disse nha Venância

A Orlanda:
a quem, ao longo destes últimos anos,
no trato diário, fui surripiando,
às vezes traiçoeiramente,
muita da matéria desta narrativa,
quem sabe se impossibilitando-a
de um dia torná-lo sua...





   Empurrados do interior, os povos buscavam o litoral na esperança de um mandioquinha, de um caldinho de peixe, de um cana para chupar, ou de folhas verdes para mastigar. Qualquer coisa que lhes desse, ao menos, a ilusão de alimento. Mas nas povoações da beira-mar, mesmo nas terras maiores, os haveres tinham sido também arrasados pelos ventos da miséria. Nem a sopa da Assistência evitava que no alvor da madrugada a carroça da Câmara levasse os que haviam tombado, de noite, na rua, inteiriçados, frios. Nem a sopa da Assistência o evitava, bem se pode dizer: as bocas famintas, senhor eram às dezenas de milhar.

   De ponta a ponta, um pesadelo perpassava pelas aldeias e casalejos galgando pela amarelidão da terra nua e requeimada.

   Dondê quelas bananeiras verdinhas de cachos pendidos em arco ao rés do chão? Dondê queles pés de papaia carregadinhos, e quelas batatas-doces e quele feijão, e quele mandioca, quele nhame, e quele milho crescendo na achada, dando a fartura da gente e dos animais? Ervas, rebentos, raízes, tudo sumido na voragem da sede e do calor.

   Lá no interior, casas intactas só as de gente rica ou remediada, e nem sempre. Tantas sem janelas, sem tecto, sem portas, ficaram abandonadas na paisagem descarnada.

   A maldição varrera a ilha. A maldição da estiagem. Da fome. Os sobreviventes dessa fúria ciclónica, quem eram? Restos da vida absurda e degradada na luta impiedosa pela sobrevivência.

   E nesse tempo da fome a ilha de São Vicente era o porto de salvamento...

HORA DI BAI - pgs 7/8 - Manuel Ferreira 

***

Assim começa o Autor o romance Hora di Bai, o qual retrata o drama do povo cabo-verdiano nas fomes dos anos 40 do século XX. A trama do livro inicia-se em 1943 com uma viagem de S. Nicolau para S. Vicente, a bordo do navio Senhor das Areias onde se encontram refugiados que tentam escapar à situação de fome e miséria. A narrativa conclui-se com uma leva para S. Tomé, pois a fome, afinal, também assolava S. Vicente.




Manuel Ferreira (Gândara dos OlivaisLeiria18 de julho de 1917 — Linda-a-VelhaOeiras17 de março de 1992) foi um escritor português que se tornou conhecido por divulgar a literatura e a cultura africanas de língua portuguesa.

Licenciou-se em Ciências Sociais e Políticas pela Universidade Técnica de Lisboa. Durante o serviço militar, foi mobilizado como expedicionário para Cabo Verde, em 1941, tendo lá permanecido seis anos, até 1947. Na cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente, conviveu com os grupos intelectuais cabo-verdianos ligados às revistas Claridade e Certeza.

Casou com a escritora cabo-verdiana Orlanda Amarílis, 

Continue a ler aqui


Tenho falado, no Xaile de Seda, desse grande divulgador cultural nomeadamente em relação à Antologia de três volumes, em que compila a Poesia dos cinco países africanos conhecidos por PALOP: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e que ele intitulou, "No Reino de Caliban".

Através do percurso literário de Manuel Ferreira, que dedica a sua vida à Cultura dos Países Africanos de Língua Portuguesa, procurando dar-lhe visibilidade através das suas obras, além de criar a disciplina: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Letras de Lisboa, aprendi a conhecer e a compreender a Literatura desses países. Hoje, se tento divulgar alguns aspectos dessa realidade, devo-o a ele. Sem esquecer, claro, Isabel Castro Henriques, de quem já falei algures neste blog. 

No meu post "Por onde andei..." Rosa dos Ventos fez este comentário:

Acabei de ler há dias "Hora di Bai" e S. Vicente não era assim e ainda bem!

E com razão.


Fiquem bem, amigos.

Abraços.

Olinda


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Título do post - na pag 62 

Post "Por onde andei..." aqui

Imagem - da Ilha de São Nicolau

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Um cor-de-rosa outonal

 



 Contra todas as expectativas, temos à nossa disposição um colorido fora do comum nesta estação que acaba de entrar. O rosa da Paineira, árvore exótica, proveniente do Brasil. Assim, podemos festejar as duas estações Primavera e Outono com toda a alegria. A história desta árvore encontrei-a num artigo publicado na internet, de que dou conta mais abaixo.

 Acima, uma imagem da dita. Bela como tudo.

  E, para saudar o nosso Outono, que já cá está e com as suas cores -amarelos e castanhos, laranja, vermelho e roxo - há-de inundar os nossos espaços, insiro abaixo um poema de Ricardo Reis, com a sua Lídia:






Quando, Lídia, vier o nosso Outono
Com o Inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o Estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo actual que as folhas vivem
E as torna diferentes.

Odes de Ricardo Reis – 
Fernando Pessoa.



Festa da Primavera da amiga Rosélia


Leiam este artigo, de Leonardo Rodrigues:

Paineira: que árvore exótica é esta que

inunda de rosa intenso o outono de

Lisboa?


Continuação de boa semana, amigos.

Abraços.

Olinda


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Poema daqui
13-6-1930

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 

 - 120.

1ª publ. in Presença , nº 31/32. Coimbra: Mar./Jun. 1931.



Imagens: da net

sábado, 23 de setembro de 2023

Parece que...


...os ajuntamentos ainda nos dão água pela barba. Muita gente no mesmo sítio, a troca de abraços e beijinhos que sabem bem, olá há tanto tempo que não te via, ah estás na mesma, que elegante que estás, onde compraste os sapatos, e o vestido, oh, rapaz estás tão crescido, ainda ontem eras un petit gamin, e eis-nos todos aqui e ainda bem que não é num funeral, uma graçola que saiu inadvertida, mas a pessoa disse-a sem maldade, e não deixa de ser verdade... E depois é a noiva, a família da noiva, o noivo, a família do noivo completamente desconhecida. As apresentações e os beijinhos. E a cerimónia que se atrasa, não terá sido acautelado o factor tempo atmosférico, começou a chover, casamento organizado para ser ao ar livre, que bom!, mas assim não dá, as pessoas para cima e para baixo à procura de uma telha, e as roupas decotadas, vestidos leves próprios para o efeito, os homens nessas coisas estão muito bem vestidos, de fato, camisa e alguns até de colete e gravata, embora houvesse quem a tenha dispensado. Mau piso, empedrado, casinha de banho improvisado ao cimo de uma calçada, para o beberete o atravessamento de uma pontezinha toda trémula, no acto do casamento a oficial do registo civil a esquecer-se e a trocar os apelidos dos pais, talvez pelo cansaço da espera. Mas o pessoal jovem a salvar a situação com a sua dinâmica. Ao jantar, a chuva fez-se convidada, atrapalhação, os organizadores à procura de chapéus, e lonas de tendas...proteger os miúdos e os mais velhos era a palavra de ordem. Ao lado alguém constipadíssimo, garganta atacada...a humidade da chuva, o frio...houve quem tivesse ido buscar ao quarto toalhas turcas de banho para minorar a coisa...Era uma vez numa herdade...





E o vírus que se faz de morto à espera de um 
novo hospedeiro.

E encontrou-o...

É assim a vida. 
Feita de encontros e desencontros.
E assim ela tem de ser vivida, tendo em conta
um conjunto variegado de circunstâncias.

Tenham um bom fim-de-semana, meus amigos.

Abraços

Olinda


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Imagem pixabay