domingo, 23 de fevereiro de 2020

A Fonte


                      I 
Eis-me perto da Fonte, muito perto.
Vejo brotar a água,
Uma água clara e límpida,
Boa, amável!

Eis a Fonte:
Fica perto de Badiopor. 
Junto dela nasci:
Eis a Fonte da minha infância.

Sim, eu amo essa Fonte,
Admiro-a,
Brinco,
Eu e meus irmãos, à sua beira.

Fica, fica perto de Badiopor, 
Desse lugar quase sagrado, 
Desse lugar ensombrado;
Badiopor, fonte de nossas almas.

A sua água nos atrai, 
E acarinha-nos. 
Vemo-la noite e dia;

E a Fonte que está mais perto.

Olha: a água a brotar da nascente, 
Como de fonte, 
Como um regato!

(Sim, parece-se mais com um regato.)

                         II

Mais pequena ainda que a Fonte, 
É a nascente onde tudo vem beber. 
A nascente, nossos pais, amamo-la. 
Nossa.

A nascente é fonte das árvores e das folhas.
Olhamos a nascente, o ribeiro,
Manancial de nossos pais.

É verdade:

Esta Fonte é mui antiga,

Nascente da Tradição, 
Fonte da Historia; eis 
O manancial do Reino, 
Tão perto de Badiopor!

Bem me lembro:
Há muito que ela se conserva no mesmo lugar, 
Manando água cristalina. 
Eis, eis a Fonte do Reino.

Ela protege-nos, 
Ela é a alma das crianças;
Fonte do Reino, força nossa, 
Ela é a nossa protectora.

As chaves do Reino onde estão?

Nessa Fonte,
Onde meus irmãos e eu vemos às vezes monstros
E trememos então de medo,
Ou choramos.

(Nós, filhos do Reino, 

Nos, príncipes desse seu Reino.)


                          III

É verdade, como príncipes, 
De tudo cantamos,

Nos, príncipes de Baboque 
Bem amados, 
Pelo sangue 
Oriundos daquele Rei,

Daquele que é Rei dos Reis;
Nos que vimos do seu Reino,
De todos o mais poderoso e vasto,
Como o Reino de Baçarel.

(E Baçarel é um grande Reino, 
Onde príncipes vêm a luz;
Baçarel, terra bem nobre, 
Seu lugar de nascimento.)


(Publicado: in Poesia & ficção, 1972)


Publicar ou não o poema na íntegra? Como vêem, optei por publicá-lo na totalidade. Se o não fizesse não conseguiríamos ver tudo o que autor pretende dizer, tanto no seu regresso às raízes como na importância que a sua cultura concede à parte telúrica da vida. Além do mais, este poeta insere-se na fase denominada de "Poesia de Combate", de 1945 a 1970, que referi num post mais atrás. Uma forma de combater: lembrando o quanto perdemos quando se esquecem os valores que enformam as nossas tradições mais caras, e das quais depende a sobrevivência de um povo.





Nota biográfica:

António Baticã Ferreira nasceu em Canchungo, em 1939. Filho de um soba (chefe de tribo em África, também denominado régulo), estudou em vários países, formando-se em medicina e tendo exercido a profissão no Hospital Santa Maria, em Lisboa. Não publicou nenhum livro, mas, segundo a sua família, tem muitos poemas inéditos. Os “Cadernos da Sociedade de Língua Portuguesa - Poesia e ficção I”, de 1972, pp. 15-21, publicaram sete poemas seus, seis deles reproduzidos em “No reino de Caliban” (1989) e também já tinha aparecido em “Poilão - Caderno de Poesias” (1973). Segundo Secco (1999: 214), «por ter vivido fora da Guiné, passa em seus versos a angústia do exílio. Canta a saudade da infância na Guiné e o mar, ...., apesar de pouco recorrente» (Couto e Embaló, 2010:108). aqui


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Daqui vos saúdo, regressando à actividade do blog na companhia de mais um poeta guineense.

Mas voltarei com outros apontamentos.

Bom domingo.

Abraços.


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Poema: in No Reino do Caliban, Manuel Ferreira - pg 324/325
Nota: Quando me refiro à Literatura guineense, leia-se p.f., Literatura da Guiné Bissau.

8 comentários:

  1. Gostei imensamente desse poema! Bom retorno e com gabarito,trazendo esse poema! Lindo! bjs, chica

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  2. Boa noite de alegria, querida amiga Olinda!
    Que beleza refrescante nos presenteou!
    Adorei as características apresentadas do povo nativo e destaco a humildade... Por isso são tão felizes.
    Ritmo do vídeo muito bom. Animado e singelo como gosto...

    "Ela protege-nos,
    Ela é a alma das crianças;
    Fonte do Reino, força nossa,
    Ela é a nossa protectora."

    Dentre tanta beleza poética, recortei esta estrofe...
    Muito boa postagem mais uma vez, amiga.
    Estava com saudade.
    Tenha dias muito felizes e abençoados!
    Bjm carinhoso e fraterno

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  3. Este poeta guineense, António Baticã Ferreira, tem uma poética muito bela e delicada. A nascente, a fonte, a sede são palavras que os poetas nunca esquecem porque os poemas sem elas podem secar…
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  4. "É a nascente onde tudo vem beber" - a fonte! onde tudo começa...
    e nesse banho matricial a mágica inscrição do nome - como inscrição de fogo!
    e o indelével perfil dos passos, ainda espera.

    um momento de rara beleza e emoção estética.
    gostei muito. muito mesmo, Olinda

    abraço, amiga

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  5. A Fonte... As raízes, querida Olinda! Sempre estamos à volta...
    Gostei de me dares a conhecer o médico poeta António Baticã Ferreira!
    Um beijo, querida, uma boa semana!

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  6. Comecei a ler e fiquei logo apanhada. A poesia tem caminhos que nos encostam às estrelas e estes são de nascente, de pureza, de raiz. É cheia de saber esta fONTE DO REINO onde a cultura de um povo mata a seda.

    Beijos, minha amiga Olinda.

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  7. Querida Olinda

    Fiquei comovida por ter sentido o meu poema "Tengo um namoro sabido de to l mundo", mesmo sem tradução. Há quem defenda que o mirandês terá um maior desenvolvimento se não for traduzido. Talvez seja um desafio maior.

    Terno abraço.

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  8. Tanto lá, como eram por cá, as fontes são lugares
    de grande convívio e socialização, especialmente
    no fim do dia...
    Gostei muito de ler, querida Olinda.
    O vídeo tem sons tocantes que me calam fundo...
    Venham mais!
    Beijinhos
    ~~~~~
    Ps - tenho andado com a minha atividade reduzida
    devido a problema ocular.
    ~~~~~~~

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