domingo, 30 de agosto de 2020

Mito

Virá o dia em que o jovem deus será um homem,
sem sofrimento, com o morto sorriso do homem
que compreendeu. Também o sol se move longínquo
avermelhando as praias. Virá o dia em que o deus
já não saberá onde eram as praias de outrora.

Acorda-se uma manhã em que o Verão morreu,
e nos olhos tumultuam ainda esplendores
como ontem e no ouvido os fragores do sol
feito sangue. A cor do mundo mudou.
A montanha já não toca o céu; as nuvens
já não se amontoam como frutos; na água
já não transparece um seixo. O corpo dum homem
curva-se pensativo onde um deus respirava.

O grande sol acabou, e o cheiro da terra
e a rua livre, colorida de gente
que ignorava a morte. Não se morre de Verão.
Se alguém desaparecia, havia o jovem deus
que vivia por todos e ignorava a morte.
Nele a tristeza era uma sombra de nuvens.
O seu passo pasmava a terra.

Agora pesa
o cansaço sobre todos os membros do homem,
sem sofrimento: o calmo cansaço da madrugada
que abre um dia de chuva. As praias sombreadas
não conhecem o jovem a quem outrora bastava
que as olhasse. Nem o mar do ar revive
na respiração. Cerram-se os lábios do homem
resignados, para sorrir frente à terra.

Cesare Pavese,
   (1908-1950)


Cesare Pavese
foi um escritor e poeta italiano.
Combatente antifascista, o que lhe valeu três anos de prisão no sul da Itália. Nessa época, iniciou o seu diário "O Ofício de Viver", título original "Il Mestiere di Vivere", uma autocritica revelada em reflexões sobre a sua arte, seus processos criativos e sobre o sentido da existência
. mais

Cesare não terá encontrado as respostas que almejava e a vontade de "sorrir frente à terra" não terá sido suficiente. Suicidou-se em 1950.



Mas aproveitemos a alegria e o convite de Luís Miguel 
e rumemos ao Sul 
para uns dias descontraídos, ao Sol.

Abraços.

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Poema: Citador
in 'Trabalhar Cansa'
Tradução de Carlos Leite

domingo, 23 de agosto de 2020

Eça de Queirós - um olhar sobre Júlio Dinis


Setembro 1871.

Um só livro seu, um romance, fez palpitar fortemente as curiosidades simpáticas -

As Pupilas do Sr. Reitor. Esse livro fresco, quase idílico, aberto sobre largos fundos de verdura, habitado por criações delicadas e vivas - surpreendeu. Era um livro real, aparecendo no meio de uma literatura artificial, com uma simplicidade verdadeira, como uma paisagem de Cláudio Loreno entre grossas telas mitológicas. Era um livro onde se ia respirar.

Júlio Dinis amava a realidade: é a feição viril e valiosa do seu espírito.

Nunca porém se desprendeu do seu idealismo e sentimentalismo nativo. A realidade tinha para ele uma crueza exterior que o assustava: de modo que a copiava de longe, com receio, adoçando os contornos exactos que a ele lhe pareciam rudes, espalhando uma aguada de sensibilidade sobre as cores verdadeiras que a ele lhe pareciam berrantes. As suas aldeias são verdadeiras, mas são poetizadas: parece que só as vê e as desenha quando a névoa outonal esfuma, azula, idealiza as perspectivas.

Nunca um sol sincero e largo bate a sua obra. Tudo nela é velado de névoa poética. Não é que não ame, não persiga a verdade: somente quando a fixa na página traz já a pena toda molhada no ideal que o afoga.

Dizem que os seus livros são memórias, e que ele faz a aguarela suave das paisagens em que viveu, e que personaliza, em criações finamente tocadas, os sentimentos com que palpitou; daí decerto a realidade que os seus livros deixam entrever, fugitivamente. Mas parece que não fora feliz, e que só ao compassar dos soluços o coração lhe aprendera a bater: daí pois aquelas meias-tintas azuladas e melancólicas em que se move, num rumor brando, o povo romântico dos seus livros, e com que ele procura esbater e adoçar a crueza das realidades humanas que o fizeram sofrer.

Era sobretudo um paisagista. As suas figuras só servem para dar expressão e vida à paisagem.

Os campos, as searas, os montes, as claras águas, os céus profundos, não são nos seus livros a decoração que cerca uma humanidade fortemente sentida: as suas camponesas romanescas, os seus galãs violentos e ternos, as meigas figuras de velhos, até as suas caricaturas - é que foram por ele colocadas assim para poder, em torno delas, erguer com cuidado, árvore por árvore e casal por casal, as aldeias que tanto amava. Há nos seus romances tal descampado, tal eira branca batida do sol, tal parreira onde os gatos se espreguiçam, que tem mais ideia, mais acção, mais vida, que as figuras vivas que em torno se movem.

Depois das Pupilas do Sr. Reitor as obras de Júlio Dinis passaram de leve, entre as atenções transviadas. Terá o seu dia de justiça e de amor. À maneira daqueles povoados que ele mesmo desenha, escondidos no fundo dos vales sob o ramalhar dos castanheiros, os seus livros serão procurados como lugares repousados, de largos ares, onde os nervos se vão equilibrar e se vai pacificar a paixão e o seu tormento.

Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria! Numa página à parte, tranquila e meiga, pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Tal é o nosso mal, que este espírito excelente não ficou popular: a nossa memória, fugitiva como a água, só retém aqueles que vivem ruidosamente, com um relevo forte: Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve.

Foi simples, foi inteligente, foi puro. Trabalhou, criou, morreu. Mais feliz que nós, tem o seu destino afirmado, e para ele resolveu-se a questão.

Passemos pois... Já do outro lado, para além desta página serena, ouvimos, inumeráveis como abelhas vingadoras, as ironias aladas que, com um rumor impaciente, zumbem no ar!

Eça de Queirós - In: Uma Campanha Alegre/I/XXXII - aqui

Júlio Dinis viveu de leve,
 escreveu de leve, 
morreu de leve.
Diz Eça de Queirós. ´
Tenho lido esta asserção nos mais variados sítios mas sempre quis identificar onde o tinha lido pela primeira vez. Foi em "Uma Campanha alegre", mas já não me lembrava. 
No texto acima, Eça justifica o seu juízo. 
Demasiado simplista?






Júlio Dinis,(1839-1871) pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, também Diana de Aveleda em pequenas narrativas. Faleceu com apenas 31 anos, vítima de tuberculose pulmonar. mais



José Maria de Eça de Queiroz, ( 1845-1900) contemporaneamente escrito Eça de Queirós, foi um escritor e diplomata português. Completaram-se, a 16 de Agosto, 120 anos sobre a sua morte. mais

Dois grandes vultos da Literatura Portuguesa e 
tão diferentes na sua interpretação da sociedade e da realidade..



Bom domingo, meus amigos.
E muita Saúde!

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Posts sobre Júlio Dinis, aqui, no Xaile de Seda.
E sobre Eça de Queirós, aqui, e onde aparecem referências a ele ou à sua obra, também no Xaile de Seda.

Ver, se interessar:

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

E dói-me




E dói-me esse rio de já me não amares

de já me não quereres assim como eu te quero

de não sobressaltares porque sou eu que te espero

em esquinas de lágrima ou sorriso

foi-se o amor chegou o siso

e eu

que não nasci para ter juízo


E dói-me o teu ventre que não afago

como quem depois de amanhã se afoga

e hoje apenas está, dê para o que der

e doa a quem doer


Passam sanguessugas pelos trilhos da memória

umas são mortas, outras são vivas,

outras são glória

de já não existir e teimar em persistir

e eu vou ao vento, sou palmeira seca,

sou teimoso sou frágil sou de teca de cetim

sou uns dias teu, outros assim assim


E dói-me o teu ventre que não afago

como quem depois de amanhã se afoga

e hoje apenas sente, e já pouco quer

para além de seres mulher


E sei que já não sinto o que senti nem sei quem sou

mas seja eu quem for fazes-me falta, ainda és música

perdi a pauta, nada sei cantar, acho que esta conversa

é coça umbigo, vai ter que parar


Mas dói-me o teu ventre que não afago

como quem não sabe nadar

e hoje é de festa, amanhã é de mar

é de mar


Manuel Cintra
 (1956-2020)

Com este belo e sentido Poema, termino aqui, por ora, a homenagem a Manuel Cintra, autor de mais de vinte livros de poemas, tradutor, jornalista, actor e encenador, falecido no passado mês de Junho.

A editora Guilhotina publicou “Manobra Incompleta” em 2017, reunindo toda a poesia de Manuel Cintra.
"Geralmente escrevo o poema já pronto, quase sem correções. Faço os possíveis por não enlouquecer. Como sabemos, a poesia é uma arma, neste caso visceral. Sempre no limite. Sempre numa nova manobra. A evitar o acidente. Ou a vivê-lo a fundo”, costumava dizer o escritor, citado por Maria Quintans." 



Joe Dassin, 40 ans déjà: “Un homme gentil, généreux, qui en imposait” - diz Charles Van Dievort - aqui

Dele, trago hoje L'ÉTÉ INDIEN, uma das suas mais belas canções. 



Boa semana vos desejo, meus amigos!


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Dois Poemas deste Autor, publicados - aqui no Xaile

Poema agora publicado : in Não sei nunca por onde,
Quasi Edições
Publicado por: https://casadospoetas.blogs.sapo.pt/60627.html

Nota: O título do post "E dói-me" foi retirado de um dos versos do poema.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Da tomada da Ribeira Grande por Cassard

Aproximam-se os franceses! Devagar, em boa ordem, como uma mole imensa e compacta aproximam-se inexoravelmente da fortaleza . De dentro, o governador, o ouvidor, os demais oficiais, observam aquela marcha que mais parece uma manada cega e incapaz de ser detida. Mas mesmo assim, ao tê-los a uma distância que julga boa para o tiro, o governador manda abrir fogo nutrido sobre o inimigo.

Para seu espanto, quase imediatamente uma considerável parte da força de Cassard desorienta-se e bate em retirada. Mas o que é mais incompreensível é que a outra parte  mantém-se  ali firmemente a flagelar os sitiados, como se a parte debandada do exército nada tivesse a ver com a que ainda luta com ferocidade. Só depois se fica a saber que tudo aquilo tinha sido devidamente ensaiado para ser uma simples manobra de diversão: porque a tropa que fingiu retirar-se em debandada, na realidade contorna a fortaleza, desce à Ribeira Grande exactamente no sítio onde nasce a Maria Parda, e sem qualquer oposição entra e saqueia a cidade, e rouba tudo o que apanha a jeito, incluindo os paramentos da capela do Espírito Santo...

 A perda foi tão grave que o Bispo teve que ir negociar com Cassard a devolução de alguns objectos sagrados e paramentos, porque com esse saque tinha ficado impossibilitado de rezar a santa missa. ...

...a vergonha vai um pouco mais longe. A fortaleza está provida com pouco mais  de cinquenta homens, e diante do poder de fogo de que o inimigo está a mostrar-se capaz, começa-se a admitir a conveniência de uma capitulação. ...são enviados emissários de bandeira branca.

Cassard não entende uma única palavra de português... Porém, aceita tudo sem hesitar e assina de cruz o papel que lhe apresentam para esse efeito. As tropas sitiadas abandonam a fortaleza em boa ordem e dirigem-se para o interior da ilha.

E Cassard toma posse física da mesma... De seguida as suas tropas restantes descem também para a cidade e acabam de saquear o que os seus camaradas tinham deixado para trás: as casas do bispo, do ouvidor-geral, do almoxarife, do feitor, de D. Isabel de Barros, avó do nosso coronel, e também do seu filho tenente Pedro Cardoso a quem, aliás, até se permitiram fazer judiarias como tomar-lhe o bastão, puxar-lhe a gravata, meter-lhe as mãos nos bolsos, etc. E para tudo concluir em grandeza, terminam arrebanhando cento e dez peças de escravos, belos rapazes e belas raparigas, cativos e forros misturados.

E vão-se embora finalmente, não sem antes terem minado com explosivos grande parte da muralha da fortaleza, abrindo nela grandes e avultados rombos.

E assim termina o ataque do pirata francês à Ribeira Grande...

...a consolação que historicamente restou aos enganados ilhéus foi terem ficado a saber que a seguir a esse saque Cassard foi para França, onde acabou preso.

In: "A morte do Ouvidor", de Germano Almeida, pgs 121 a 124


A bem dizer, os ilhéus nunca se recuperaram dessa afronta. Tantos anos volvidos, ainda se conta com emoção o ataque de Jacques Cassard à ilha de Santiago, a 5 de Maio de 1712, ao comando de uma frota de 12 navios.

Os corsários ocuparam uma boa parte da ilha, tendo o bispo da Diocese de Santiago de Cabo Verde à época, D. Francisco de Santo Agostinho (1708-1719), retirado para o interior, onde reorganizou as forças de defesa, liderando a resistência e incentivando o contra-ataque. Na retirada, os corsários levaram tudo o que conseguiram transportar...

Deste livro, fiz há algum tempo um post no qual apresento o co-narrador Luís Henriques que mantém com o narrador conversas deliciosas. Cada um tem a seu cargo a narração de acontecimentos de determinados anos, dentro do espaço temporal em que que decorre este romance histórico.

Voltarei com mais uma ou outra passagem.

Tenham uma boa semana, meus amigos.

Saúde!

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Imagens net : Forte de São Filipe, Santiago , Cabo Verde

Ribeira Grande de Santiago - hoje Cidade Velha

Maria Parda - Ribeira Grande de Maria Parda

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Sóya

Há-de nascer de novo o micondó —
belo, imperfeito, no centro do quintal.
À meia-noite, quando as bruxas
povoarem okás milenários
e o kukuku piar pela última vez
na junção dos caminhos.

Sobre as cinzas, contra o vento
bailarão ao amanhecer
ervas e fetos e uma flor de sangue.

Rebentos de milho hão-de nutrir
as gengivas dos velhos
e não mais sonharão as crianças
com gatos pretos e águas turvas
porque a força do marapião
terá voltado para confrontar o mal.

Lianas abraçarão na curva do rio
a insónia dos mortos
quando a primeira mulher
lavar as tranças no leito ressuscitado.

Reabitaremos a casa, nossa intacta morada
.

CONCEIÇÃO LIMA
in: A dolorosa raiz do micondó




Conceição Lima nasceu em 1961 na ilha de São Tomé, em São Tomé e Príncipe, país africano de língua portuguesa que se tornou independente de Portugal em 1975, após 500 anos de colonização. Ela cresceu em meio às lutas políticas pela independência de seu país. Formada pelo King’s College de Londres, Conceição é jornalista e trabalha para a BBC.  aqui

E mais:

Estreou com a colectânea de poemas O útero da casa publicado em Lisboa pela Editora Caminho em 2004. Dois anos depois publicou, também na Caminho, A dolorosa raiz do micondó. O micondó, ou imbondeiro, é uma árvore considerada sagrada por muitos povos africanos. Espécie de baobá, é conhecida como árvore da vida, devido à sua longevidade, que chega a seis mil anos. Portanto, em muitas comunidades, as gerações passam e as árvores sagradas permanecem, assistindo a tudo. É por isso que no poema “Sóya” (lenda) Conceição Lima escreve: “Há-de nascer de novo o micondó — / belo, imperfeito, no centro do quintal”. A árvore é uma referência ― quase certeza ― de futuro e de esperança. (...)



Boa semana, meus amigos.



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Sóya - Lenda, conto, fábula