domingo, 31 de janeiro de 2021

Rosa (in)Fixa

não há quem não persiga uma rosa
nos escassos dias da mortal residência na terra

não há quem não a busque
mística ideal solitária carnal geográfica ou comunal
inseparável de longas veias e bandeiras

nunca houve quem não a desejasse colhida nas mãos em concha
como água purificadora desses escassos dias de residência

volátil volúvel sublima-se e desespera ao mínimo gesto
do toque e do encantamento o achador

qual a tua rosa?

temos cada um de nós a rosa eletiva e nunca idêntica
por mais próxima mística ideal ou comunal à do outro

a rosa (in)fixa só aparentemente se movimenta
somos nós atrás dela velozes e perdidos
ansiosos de busca do que não temos ou temos imperfeitamente

cada um quer a sua rosa
clandestina mas rosa
apaixonada mas rosa

solitária — todas as rosas são solitárias — mas ainda assim rosa
comunal porém de todos rosa
carnal ou mística sempre e ainda rosa rosa mesmo que conspurcada
e rosa da rosa-dos-ventos rosa é
desabrochada sobre o mundo
de ilha a continente
de mar a mar
de pólo a pólo
levada pelos ventos

ó rosa que nos diversificas no âmago de ti própria!
qual a tua rosa?

rosa de ninguém porque minha e eletiva
não há quem não persiga a sua rosa
inagarrável estrela que adia a mortal residência
e nos sobra no leito ao acordarmos
nem sabemos em que horizontes de outras rosas.

Oswaldo Osório

Rosa (in)fixa. 
Todos procuram a sua de modo a fixá-la nas suas vidas. 
É a procura da Felicidade, talvez...
"cada um quer a sua rosa
clandestina mas rosa
apaixonada mas rosa"




Oswaldo Osório, do seu nome próprio Osvaldo Alcântara Medina Custódio é uma referência na literatura cabo-verdiana; nasceu em Mindelo a 25 de Novembro de 1937. Terminou o liceu e ingressou no Seminário Nazareno, tendo exercido várias funções profissionais, como trabalhador de rádio, funcionário público, empregado de comércio, presidente da União dos Sindicatos e jornalista no semanário Voz di Povo



Leia também:

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Cântico do nascimento


Aceso está o fogo
prontas as mãos
o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite. 

As mãos criam na água
uma pele nova
panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar 

Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças de leite
que o vento trabalha manteiga
a lua pousada na pedra de afiar 

Uma mulher oferece à noite
o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas 

As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras 

Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores. 

Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio
enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite. 
 
Ana Paula Tavares

Poetisa e historiadora angolana, Ana Paula Tavares, oriunda da cidade do Lubango, Huíla, nasceu em 1952.Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, aí fez o mestrado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Entre 1983 e 1985, coordenou o Gabinete de Investigação do Centro Nacional de Documentação Histórica, em Luanda. Membro da União de Escritores Angolanos, fez parte do júri do Prémio Nacional de Literatura de Angola entre 1988 e 1990.






Mulemba


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Poema: daqui

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Sem raça nem credo/Sien raça nien credo




Sem raça nem credo

A primeira vez que de ti me abeirei
todas as sedes me tomaram. Sem raça nem credo.
Cruzei-te num primeiro abraço, mar sonhando, desejado
e finalmente sentido. Quando a coragem permitiu
o primeiro mergulho, até a areia me bordou o corpo,
ponto por ponto. As cores brincavam e eram tantas
que despertavam e refletiam a luz que queria minha.

Nos meus olhos de céu e mar
cruzavam-se correntes loucas,
e eu, já sem roupa, fiquei à tona e deixei-me prender
nas mais belas cores. Fiz-me laço,
palmarés de glorioso arco-íris.
Sei, sei que te dei versos sem palavras e,
num silêncio prometedor,
até as czardas se ouviram.
As czardas que bailaria com paixão.
As czardas que, para ti, escreveria com emoção.




Sien raça nien credo

La purmeira beç que a ti me cheguei
todas las sedes me tomórum. Sien raça nien credo
Cruzei-te nun purmeiro abraço, mar sonhado, deseado
i al fin sentido. Quando la coraige permetiu
l purmeiro maegulho, até l'arena me bordou l cuorpo,
punto por punto. Las quelores brincában i éran tantas
que spertában i debuolbien la lhuç que querie mie.

Ne ls mius uolhos de cielo i mar
cruzában-se corrientes boubas,
i you, yá sien benairos, quedei anriba i deixei-me prender
nas mais guapas quelores. Fiç-me lhaço,
ramo de guapa cinta de la raposa.
Sei, sei que te dei bersos sien palabras i,
nun siléncio pormetedor,
até as "czardas" se scuitórum.
Las "czardas" que beilarie cun paixon.
Las "czardas" que, para ti, screberie cun eimoçon.

Teresa Almeida Subtil





Peço emprestado à querida amiga Teresa Almeida Subtil este belíssimo poema bilingue para enfeitar o Xaile de Seda, que hoje completa dez anos. E a Schubert esta Avé Maria que adoro, aqui nas vozes de dois grandes intérpretes, Andrea Bocelli e Luciano Pavarotti.



Também esta Czarda a fazer jus ao poema e em agradecimento à sua autora.

A todos agradeço a presença e comentários com que têm distinguido este blog.

Abraços.

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Poema bilingue:
in Rio de Infinitos
Riu d'Anfenitos
pgs 154, 155

Ver Teresa A. Subtil no Xaile, aqui


domingo, 17 de janeiro de 2021

Falo de ti às pedras das estradas




Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que é louro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de princesas e de fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!

Florbela Espanca, 

in 
"A Mensageira das Violetas"



Florbela Espanca (1894 -1930), batizada como Flor Bela Lobo, e que opta por se autonomear Florbela d'Alma da Conceição Espanca, foi uma poetisa portuguesa. A sua vida, de apenas 36 anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos, que a autora soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotizaçãofeminilidade e panteísmo. Há uma biblioteca com o seu nome em Matosinhos. mais aqui

Magnífica Florbela Espanca!
 Poetisa maior, incompreendida no seu tempo. Os seus versos são para ler e reler prestando-lhe o reconhecimento que bem merece.

E por cá, agui e agora, ontem e hoje dias de Sol radioso que convida a passeios à beira-mar, à beira-rio, pelos jardins, pelos parques, passear o cãozinho (mesmo não tendo arranja-se um à pressa), tudo sem máscara. Máscara para quê? Tem-se de respirar esse ar que parece dizer "respira-me", de apanhar essa aragem fresca no rosto, correr de cabelos ao vento... porque o vírus é para os outros. Só acontece ao vizinho, àqueles que estão longe, noutras cidades, noutros países.

E também hoje, a votação antecipada em mobilidade para a eleição do próximo Presidente da República. Poderia estar já em carteira a votação electrónica para todos, isso meus senhores é que seria de grande utilidade, mormente com a pandemia que grassa por todo o lado, então nos lares e ambientes fechados nem se fala. Temos um Ministério da Economia e Transição Digital, não sei se isso faz parte das suas competências mas soa-me bem a propósito, a mim que sou leiga na matéria.

Bom domingo.

Abraços.    



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Poema: citador aqui

domingo, 10 de janeiro de 2021

Creio que o Amor tem asas de ouro






CREIO

Creio nos
anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

  in Sonetos Românticos


Amen.

Ao saudar este Ano de 2021 trago a extraordinária Natália Correia, mulher polémica na sua escrita e na sua postura, excessiva. Posições extremas na vida e com uma obra literária de respeito. Neste seu CREDO tomamos contacto com um léxico em que o maravilhoso toma assento e nos convida à descoberta da parte mais solidária da nossa visão do mundo.

E de facto andam anjos pelo mundo e é mister que acreditemos nisso. No meio da confusão que a nossa complexidade cria, em que sobressai especialmente o nosso lado lunar, não há dúvida de que aqueles que trabalham para o bem comum existem.

No nosso dia-a-dia há tanto por que agradecer a todos os que labutam para que a nossa vida seja o mais normal possível. Na saúde, no comércio, na restauração, na recolha dos nossos lixos, na agricultura e transporte de víveres, naqueles que nos vêm trazer a casa as compras que fazemos online ou por telefone, nos transportes públicos, nos voluntários que não conhecem distâncias e porfiam pelas ruas, pelos hospitais e demais instituições pelo bem-estar dos outros - aí, meus amigos, há que acreditar na ocupação do mundo pelas rosas. E é visível que coisas incríveis e assombrosas acontecem a cada instante. 

No ano que acaba de nos deixar vemos sem dificuldade mulheres que em plena pandemia souberam elevar-se e trazer soluções válidas para as suas comunidades, como por exemplo Ursula von der Leyen(UE), Ângela Merkel, (Alemanha), Jacinda Ardern (Nova Zelândia), Tsai Ing-Wen (Taiwan). Tomaram nas mãos as suas responsabilidades, com lucidez, e mostraram como se faz. 

Por cá, de entre um exército de gente anónima dedicadíssima, tenho a assinalar Marta Temido e Graça Freitas que sem informações concretas sobre o vírus, com a pressão insuportável vivida por todos, enfrentaram o seu dever de dar a cara e representar um ponto de apoio numa altura em que ninguém se entendia. 

E confesso que creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, em coisas que parecem transcender-nos, como a magia de crer num mundo capaz de momentos de glória e de superação. Com a nossa idiossincrasia, própria de humanos, habitamos as duas faces de uma mesma moeda, pairamos entre o lado brilhante do Sol e o obscuro. Mas com discernimento e livre arbítrio creio que temos a capacidade de proceder à leitura correcta do que poderá constituir a nossa felicidade e a dos outros. 

Assim seja.

BOM ANO, meus amigos. 

Abraços.


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Poema: daqui
Título do post retirado do poema transcrito
Até que foi Deusa, de Fernando Pinto Amaral, artigo sobre Natália Correia


segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Perfil Invisível dos Dias

Todas as ausências são o lugar abstracto
Das dores e das mágoas que em círculo
Celebram o estertor da palavra.

E prenunciam a euforia 
Dos silêncios.

De nada vale queixar-nos: nem as palavras
Nem as coisas, em sua linguagem muda,
sobrevivem ao colapso das formas.

Nem ao surdo rumor das esferas
A desenhar o perfil invisível dos dias.

in Perfil dos Dias
pg. 15





sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

CANOA DO TEJO


1939 - 2021

Sabemos do empenho de Carlos do Carmo quanto ao reconhecimento do Fado como Património Imaterial da Humanidade, mas ele remete para Amália o papel maior em relação à sua divulgação no exterior:

"Tenho uma dívida para com ela e essa justiça tem de ser feita.

Quem divulgou o fado lá fora foi a Amália. Eu fui a seguir, depois apareceu esta geração, mas ela é que abriu a porta a tudo isso."

Carlos do Carmo, fadista.

in: Amália

- Ditadura e Revolução,

Junho de 2020,

de Miguel Carvalho

"Lisboa Menina e Moça"

Canção Oficial de Lisboa

Decide a Autarquia unanimemente


No Castelo, ponho um cotovelo
Em Alfama, descanso o olhar
E assim desfaço o novelo de azul e mar
À Ribeira encosto a cabeça
A almofada, da cama do Tejo
Com lençóis bordados à pressa
Na cambraia de um beijo
Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura
Cidade a ponto luz bordada
Toalha à beira mar estendida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida
No Terreiro eu passo por ti
Mas da Graça eu vejo-te nua
Quando um pombo te olha, sorri
És mulher da rua
E no bairro mais alto do sonho
Ponho o fado que soube inventar
Aguardente de vida e medronho
Que me faz cantar
Lisboa menina e moça, menina
Da luz que os meus olhos


Autoria:

Ary dos Santos, Joaquim Pessoa, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho

(Actualização do post  em 2021/01/04)

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Sobre o artista, no Xaile de Sedaaqui.

Notícia do falecimento in Expresso - aqui