sábado, 27 de junho de 2020

Idílio



Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.



Antero de Quental (1842-1891) foi um poeta e filósofo português. Foi um verdadeiro líder intelectual do Realismo em Portugal. Dedicou-se à reflexão dos grandes problemas filosóficos e sociais de seu tempo, contribuindo para a implantação das ideias renovadoras da geração de 1870. Leia mais aqui



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Veja aqui : Antero de Quental e as diferentes faces da sua Poesia.

sábado, 20 de junho de 2020

O Eco do Pranto




Não me digas
Que essa é a voz de uma criança
Não...
A voz da criança
É suave e mansa
É uma voz que dança...
Não me digas
Que essa é a voz de uma criança
Parece mais
Um grito sem esperança
Um eco
Partindo de fundo de um beco
Não me digas
Que essa é a voz de uma criança,
Essa é doce e mansa
É uma voz que dança...
Esta parece mais
Um grito sufocado sob um manto
- O Eco do Pranto.

Agnelo Regalla, 
Antologia Poética da Guiné-Bissau,
 Editorial Inquérito, 1990





Agnelo Augusto Regalla com o pseudónimo Sakala (Campeane (Tombali), 9 de julho de 1952) é um poeta, jornalista e político guineense. Estudou jornalismo em França no Centro de Formação de Jornalistas. Fundou e dirigiu a Radiodifusão Nacional na Guiné-Bissau de 1974 a 1977 e em 1996, fundou a rádio privada Bombolom FM. Na política - Foi Diretor-Geral no Ministério dos Negócios Estrangeiros de 1987 a 1990 e secretário de estado da informação do Ministério da Informação de 1984 a 1985 e de 1990 a 1991. Foi presidente do partido União para a Mudança e foi eleito deputado pela UM no primeiro parlamento multipartidário de 1994 a 1998. Entre setembro de 2009 e janeiro de 2012, foi conselheiro de comunicação e de porta-voz do presidente da Guiné-Bissau Malam Bacai Sanhá.Em 2018 foi nomeado por Aristides Gomes para a Presidência de Conselho de Ministros e Assuntos Parlamentares. Na literatura - Não editou nenhuma obra individualmente mas os seus textos foram publicados em diversas antologias como, por exemplo, "Mantenhas para quem Luta". Agnelo foi um dos fundadores da Associação de Escritores da Guiné-Bissau em 10 de outubro de 2013. daqui

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Poema: daqui

"Se um dia..." - Poema do mesmo Poeta aqui no Xaile

Imagem: daqui

domingo, 14 de junho de 2020

Um dizer ainda puro





imagino que sobre nós virá um céu

de espuma e que, de sol em sol,


uma nova língua nos fará dizer

o que a poeira da nossa boca adiada

soterrou já para lá da mão possível

onde cinzentos abandonamos a flor.


dizes: põe nos meus os teus dedos

e passemos os séculos sem rosto,

apaguemos de nossas casas o barulho

do tempo que ardeu sem luz.

sim, cria comigo esse silêncio

que nos faz nus e em nós acende

o lume das árvores de fruto.


diz-me que há ainda versos por escrever,

que sobra no mundo um dizer ainda puro.



Vasco Gato nasceu em Lisboa, em 1978, cidade onde vive e trabalha como tradutor. Publicou na viragem do século o seu primeiro livro de poesia, intitulado Um Mover de Mão. A esse volume inicial seguiram-se onze coletâneas em nome próprio e duas recolhas de poesia por si traduzida. Daqui Ninguém Entra é a sua primeira incursão na escrita dramática.




"Daqui ninguém entra" - Um drama pouco dramático, visitado por uma ironia tangível ao absurdo, talvez uma comédia negra. Definir pode limitar e neste cenário não existem paredes. Por um motivo. Neste lugar as barreiras cingem-se ao campo da mente e a porta no centro do palco relembra-nos isso. Aqui E-Cultura


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Poema: daqui
Imagem: daqui


quarta-feira, 10 de junho de 2020

Depus a máscara e vi-me ao espelho

Interessantes os tempos que correm e a forma como aceitamos coisas que dantes nos incomodavam. Quem usasse uma máscara antes da pandemia era objecto de discriminação, de olhares desconfiados, de medo de aproximação. Interpunha-se entre nós e o portador da máscara uma distância nunca considerada suficiente. 

Agora o que nos diferencia é a consistência da máscara, a qualidade da máscara, o pendant que faz com a roupa que trazemos, a cor lisa ou estampada, o corte e o porte. E o olhar reprovador que lançamos a quem não se apresente com qualquer tira de pano, de preferência vistoso, que tape a boca e o nariz. 

A moda já aí está. O espelho devolve-nos um ar composto e confiante. Álvaro de Campos antecipou-se:

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.
E volto à personalidade como a um terminus de linha.


Também o mito aí está.
Sem máscara ficamos nus. Mostramos fraquezas e fragilidades.
Resultado: transformamo-nos na máscara, somos a máscara, como diz o poeta.

Já não será preciso esconder o sorriso amarelo perante situações embaraçosas, nem mandar pôr o dente da frente que nos falta. Até numa entrevista de emprego poderemos negar-nos a tirar a máscara a bem da saúde própria e pública, escondendo assim as nossas misérias. E será considerada postura digna de grandes encómios.

Hoje, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Sempre considerei este dia sobrecarregado em termos de comemorações e de mitos. 

Na verdade, vivemos de mitos que nos sustêm, algo construído em dado momento, tendo em vista necessidades políticas concretas e que se estende no tempo como 
esteio que nos dá segurança e sentido patriótico.
Criam o elo necessário entre 
os cidadãos e a História pátria... 
Assim,
 A cada tempo a sua máscara.



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18-8-1934
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 61.
aqui

domingo, 7 de junho de 2020

talvez te encontre um dia



talvez te encontre um dia
tarde, de noite, demais,
rodeado de livros e de rugas
escritas uma a uma sangue a sangue.

talvez eu chore, talvez tu.
seja qual for, terá valido a pena
de pato, ainda plantada
na asa ou já gasta de escrever.

virei nu.
hei-de atirar-te
à cara essa nudez
que trago sempre no fundo
e me tem saído
caro.

caro com um beijo.
à cara como um beijo
depois.


Manuel Cintra
  1956-2020





Manuel Cintra, foi tradutor, jornalista, ator e encenador, sendo, no entanto, a poesia "a sua incontornável e apaixonada estrada"...
Começou a publicar poesia em 1981, com o livro "Do Lado de Dentro", na Editorial Presença, a que se seguiram mais de duas dezenas de obras.
"Tangerina" (1990), "Borboleta" (2006), "Alçapão" (2009), "Marie" (2009), "Receber a Poeira" (2014), "Parto" (2014), "Peixa" (2016) são algumas das que publicou. A editora Guilhotina publicou "Manobra Incompleta" em 2017, reunindo toda a poesia de Manuel Cintra. aqui
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Poema - aqui
imagem : daqui

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Homens que são como lugares mal situados





Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas


Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria
(1971-1999)

Poema que confirma o génio de Daniel Faria e de uma maturidade assombrosa para um jovem poeta. Revelador da sua visão mística e visceral, é ainda de um perfeito domínio formal aliado a uma poesia que ilumina, numa incessante busca e contemplação e numa serena exaltação dos mistérios do homem, intensificando-os, deixando-os no lugar.
Cláudia R. Sampaio - aqui




Daniel Faria, Poeta que morreu com apenas vinte e oito anos. Dir-se-à que perdemos muito do que ele teria ainda para nos dar, a dádiva da sua Poesia. E é verdade. Mas verificamos que mesmo nesse pouco tempo de vida deixou a marca da sua passagem de forma indelével.

Neste Poema verificamos a força da sua observação do mundo. Ontem e hoje, a nossa humanidade está sempre a ser posta em causa. Parecemos seres sem poiso e sem vontade de alcançar níveis de pensamento que nos dignifiquem. 

Pairamos algures, amorfos, na maior parte das vezes, sem tomar posição em favor do outro.  O outro é sempre o outro. Não nos atinge o que possa sofrer desde que não seja connosco. 

Contudo, creio no ser humano. Há momentos em que desperta e mostra que afinal continuamos por cá. E é bom sentir que temos ainda alguma noção de solidariedade e de amor universal.

Bom fim de semana, meus amigos.

Abraços.     


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imagem aqui

segunda-feira, 1 de junho de 2020

E a vida se renova






A cada instante soa um vagido debaixo da mulemba e nas narinas o cheiro a terra a marcar o compasso do tempo... ou num berço de oiro com lençóis de cambraia e ambiente perfumado... ou num hospital onde mãos experientes fazem o milagre, ouvindo-se então um berreiro fenomenal como que protestando contra a sua entrada intempestiva neste mundo... 

Assim nascem as nossas crianças, quando de forma natural, seres em que nos revemos e sabemos que continuarão a espécie e, quiçá, os nossos sonhos. 

É a vida que se renova e floresce.

Mimá-las e fazê-las sentir-se amadas. Defendê-las de situações que possam magoá-las. Facultar-lhes o que estiver ao nosso alcance e mostrar-lhes o caminho que pensamos ser o melhor. Ensiná-las a ser independentes de modo a serem capazes de tomar as suas decisões. 

E também ensiná-las a amar. 

É a nossa missão.




Hoje, pretendo apenas assinalar este Dia dedicado à Criança, mas aproveitando para referir, abaixo, alguns dos muitos posts que tenho dedicado a este tema. 




E com Zeca Afonso fazemos, aqui no Xaile, a festa e falamos do outro lado que tantas vezes preferimos ignorar.

Abraços.



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Referências às duas primeiras frases: Yaka de Pepetela

Pequena pesquisa no Xaile 

Legislação:

Declaração Universal dos Direitos da Criança
Convenção sobre os Direitos da Criança