quarta-feira, 21 de novembro de 2018

ILHA DE NOME SANTO*

Francisco José TenreiroPoeta e ensaísta, foi voz da mestiçagem, da negritude e da africanidade, e deu expressão ao homem negro global e à 'nova' África. É uma das figuras de maior destaque na cultura e na história de São Tomé e Príncipe no século XX. (Video aqui)






M Ã O S

Mãos que moldaram em terracota a beleza e a serenidade do Ifé.
Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.
Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.

Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra
o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da ventura
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!

 Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.

Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!

Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!

Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.

Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!

  (1921 - 1963)

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Conceitos:

Negritude

Pan-africanismo

Poema - daqui
*Título da primeira obra de Francisco José Tenreiro
Imagem: daqui

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Afroinsularidade

Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento

nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte

por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
*e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas



Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas

como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram

incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d'óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram

os espectros — ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas

seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

in: O útero da casa


Conceição Lima


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- De: A poesia africana de Conceição Lima - Carlos Machado
  com glossário.

- Sobre estes versos:
(...)
*e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas
(...)
veja aqui, no Xaile de Seda.

Imagem: daqui

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O país de Akendenguê

Como afirmou Helder Macedo (2012, p. 7), “O país de Conceição Lima é uma ilha. Mas afinal todos os continentes são ilhas, ou partes de ilhas, o mundo é feito de ilhas. A sua ilha é São Tomé, ponto de partida e de chegada numa viagem entre a memória e o desejo. Ao percorrer esse caminho de partida e de chegada, a poetisa encerra seu terceiro livro, O país de Akendenguê, com um poema que traz em seu título, “Circum-Navegação”, a síntese metafórica da empresa colonial:




Os homens regressam 
Carregados de cidades e distância.

Adormecem os grilos. 
Uma criança escuta a concavidade de um búzio.

Talvez seja o momento de outra viagem 
Na proa, decerto, a decisão da viragem.

Aqui se engendram alquimias 
Lentos hinos bordados em lacerações 
Sossegaram os mortos 
Há grutas e pássaros de fogo 
Rebentos de incômodos recados.

O difícil ofício de lavrar a paciência. 
Acontece a arte da viagem 
Tanta aprendizagem de leme e remendo...

É quando o olho imita o exemplo da ilha 
E todos os mares explodem na varanda. [PA, 106-107]. 

Através desse poema – como, aliás, em muitos outros “lugares de memória” evocados por sua palavra poética – Conceição Lima realiza, num projeto elaborado desde sua obra inaugural, a contranarrativa da viagem, mítica e histórica, dos colonizadores, e nos oferece outra viagem que é sua (mas também de seu país e de seu continente), feita de memória e de desejo.
Pg 7

O título do livro homenageia o músico, filósofo e poeta pan-africanista gabonês Pierre-Claver Akendenguê. Ao prestar sua homenagem a esta figura lendária da música africana, a autora se dedica a saudar muitos outros nomes do universo da língua portuguesa, fazendo do próprio exercício poético uma viagem ao interior do projeto utópico sintetizado nos princípios do panafricanismo, que o mesmo Akendenguê representa.
Pg 6

in: A POÉTICA DE CONCEIÇÃO LIMA E SUA VIAGEM ENTRE MUNDOS,  
Simone Pereira Schmidt ( ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura)

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Maria da Conceição de Deus Lima, (1961), mais conhecida por Conceição Lima, é uma poeta são-tomense natural de Santana da ilha de São Tomé, São Tomé e Príncipe. 
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Imagem: daqui