quarta-feira, 24 de novembro de 2021

QUÁSI

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indicios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
. . . . . 

Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Mário de Sá-Carneiro
   


Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de Maio de 1890 — Paris, 26 de Abril de 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.





Boa quarta-feira, meus amigos.

Abraços


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Poema - O Citador
in 'Dispersão'



sábado, 20 de novembro de 2021

Ignição - António Osório




Meus versos, desejo-vos na rua,
nas padiolas, pelo chão, encardidos
como quem ganha com eles a vida,
e o papel vá escurecendo ao sol,
a chuva o manche, a capa
ganhe dedadas, a companhia
aderente de um insecto,
as palavras se humildem mais
e chegue a sua vez de comoverem alguém
que compre, um faminto ajudando.

Meus versos, desejo-vos nas bibliotecas
itinerantes, gostaríeis de viajar
por aldeias, praias, escolas primárias,
despertar o rápido olhar das crianças,
estar nas suas mãos
completamente indefeso
e, sobretudo, que não vos compreendam.
Oxalá escrevam, risquem, atirem no recreio
umas às outras como pélas os livros
e sonhem, se possível, com algum verso
que súbito se esgueire pela sua alma.

António Osório
(1933 - 2021)


Qual o maior desejo de um poeta senão ver os seus versos lidos, relidos, apreciados, interpretados nas escolas, andando pelas ruas de braço dado com o vulgo, numa familiaridade apenas concebida por quem ama? 

António Osório faz-nos saber dessa necessidade sem rebuço, com toda a simplicidade, ele, o autor ...

Várias vezes premiado, com obra traduzida e publicada em Espanha, França e Itália, mas também no Brasil, elogiada por críticos tão diferentes como João Gaspar Simões, David Mourão-Ferreira, Eugénio Lisboa, Joaquim Manuel Magalhães, Vasco Graça Moura, Eduardo Lourenço, Fernando J.B. Martinho, João Bigotte Chorão, Eduardo Prado Coelho, Carlos Reis, Fernando Pinto do Amaral, Diogo Pires Aurélio, Pedro Mexia, António Carlos Cortez...


Queira ler o artigo sobre o poeta em Da Literatura, blog de Eduardo Pitta.


Bom fim de semana, meus amigos.

Abraços.



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Poema - O Citador
Referências trazidas do blog "Da Literatura"
Imagem pixabay


quarta-feira, 17 de novembro de 2021

migrantes ou refugiados?

De há uns anos a esta parte somos levados a reflectir sobre a realidade que as designações do título nos sugere. E hoje, com o que se passa entre a Polónia e a Bielorrússia, esta reflexão se torna mais premente.

Afinal o que são essas pessoas, as que abandonam as suas casas, as suas famílias, as suas raízes para se aventurarem por mar, por terra ou pelo meio de transporte que conseguirem? O que as move? Certamente não será a vontade de passar mal, de enfrentarem línguas desconhecidas, de serem concentradas em campos sem as menores condições de vida, com bebés de colo, criancinhas pequenas, velhos e novos, em climas adversos, numa salgalhada que só eles próprios poderão aquilatar.

São estrangeiros, disso não há a menor dúvida. Aliás, somos todos estrangeiros na terra de outrem, com maiores ou menores possibilidades de sobrevivência, de conformidade com as nossas posses e desejo de ali permanecer. Seremos emigrantes em relação ao nosso país de origem e imigrantes quanto ao de chegada. Seremos migrantes quando nos deslocamos dentro das nossas fronteiras, com a intenção de vivermos num outro local e fixarmos residência.

Contudo, a palavra migrante tem sofrido alterações, em termos de significação, ao longo do tempo. Tanto é vista como deslocações intra-muros como também com as que se fazem no plano internacional, identificando-a com as pessoas que referi acima, que abandonam tudo, sem documentos, apenas com a roupa que trazem no corpo, para enfrentarem sabem lá o quê. Pessoas que fogem de guerras, da violência, da miséria, perseguidas por causa das suas posições políticas. 

Mas essas não seriam de inserir no estatuto de refugiados?




É que os refugiados têm direitos bem definidos, por convenções internacionais, nomeadamente a de Genebra. Direito ao acolhimento e a serem tratados como seres humanos que são. Direito a um tecto. Direito ao trabalho. E enquanto durarem as situações de perigo que originaram a sua fuga, as instituições devem prover ao seu bem-estar com o contributo dos próprios à sociedade que os acolhem. 

Mas dir-me-ão, nem todos serão refugiados, no meio poderá haver elementos que aproveitam esse êxodo por motivos outros. De acordo. Para separar o trigo do joio é que existe um Alto Comissariado para os assuntos relacionados com migrações e refugiados, além de outras instituições, no sentido de avaliarem a situação de cada um. Não é tudo ao molho e fé em Deus como que à espera que as coisas se resolvam por si.

As notícias (e imagens) que correm sobre os milhares de migrantes/refugiados entalados entre a Bielorrússia e a Polónia é sinal de que alguma coisa corre muito mal neste mundo a que pertencemos. E no meio do conflito a nossa União Europeia. Não vou analisar aqui de que lado estará a razão até porque me faltaria o engenho e a arte, e além disso salta à vista que estamos perante um jogo de poder.



A 16 de Novembro de 1940, os nazis erigiam um muro cortando o acesso ao gueto de Varsóvia e segregando os judeus que ali foram metidos. Quererei com isso dizer que a Polónia deveria franquear, tout court, as portas do seu território às pessoas que se encontram na sua fronteira? Claro que não, porque os tempos são outros, as motivações outras e os meandros do poder também outros. 

Isto é só para não esquecermos a História. Talvez se lhe prestarmos mais atenção consigamos fazer uma leitura melhor do que se passa no nosso tempo. E tomarmos as decisões devidas. E aplicarmos soluções que gostamos muito de propalar mas que chegado o momento ninguém apresenta.

Haverá negociações em cima da mesa, certamente, mas despachem-se.

As pessoas ali em evidente sofrimento, Senhores, até quando aguentarão essa morosidade e jogo de interesses?


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Queira ler, aqui,
matéria de interesse.
2ª imagem daqui
Leia no Xaile alguns
apontamentos sobre o
Mediterrâneo e os 
migrantes/refugiados.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Língua Gestual Portuguesa

Em 29 de Janeiro de 2020, produzi uma publicação intitulada Para lá das palavras - gestos e silêncios, em que falava, entre outras considerações, sobre a Língua Gestual Portuguesa, uma das três línguas oficiais do nosso universo, mal sabendo nós da utilização que ia ter durante o tempo todo do nosso descontentamento e infelicidade, assombrados pela pandemia.



Essa Língua, importantíssima para um enorme número de portugueses, teve durante cerca de ano e meio grande visibilidade. Habituámo-nos a ver aquelas figuras de negro com as suas belas e expressivas mãos que faziam chegar a informação a quem dela precisasse. Figuras algo esquecidas, sem grandes esperanças de uma carreira reconhecida, como vi numa entrevista. 

Li que hoje é o Dia Nacional da Língua Gestual. 

O objetivo deste dia é promover a Língua Gestual Portuguesa e garantir o respeito dos direitos das pessoas surdas. Neste dia os programas televisivos podem apresentar linguagem gestual, assim como se podem realizar cursos e outras iniciativas especiais a valorizar esta silenciosa linguagem. Leia mais aqui

Saibamos dar o devido valor a esta língua que, como vimos, foi de fulcral importância num momento aflitivo para todos.

Boa semana, meus amigos.

Abraços


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queira ler, no Xaile: aqui 
imagem daqui

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

As chuvas vieram suaves




As chuvas vieram suaves e o odor da terra
E as andorinhas dando voltas com seus débeis pios;

E as rãs nos tanques cantavam pela noite
E as ameixas silvestres num tremular branco

Os pintarroxos vestiram suas plumas de fogo,
Silvando seus caprichos sobre uma cerca baixa.

E ninguém sobrará da guerra, ninguém
Se preocupará, ao final, quando se haja concluído.

E nada lhe importaria, nem ao pássaro nem a árvore,
Se a humanidade pereceu completamente.

E a primavera mesma, quando despertar ao amanhecer
Apenas se daria conta de que fomos embora.

Sara Teasdale
    (1884-1933)



Em conversa, ouvi o nome de Sara Teasdale pela primeira vez, há dias. Então resolvi procurar mais sobre ela:


Poetisa lírica norte-americana. O primeiro poema de Teasdale foi publicado por William Marion Reedy no Reedy's Mirror, um jornal local, em 1907. A sua primeira coleção de poemas, Sonnets to Duse and Other Poems, foi publicada no mesmo ano.

A segunda coleçção de Teasdale Helen of Troy and Other Poems, foi publicada em 1911. Foi bem recebida por críticos, que louvaram sua maestria lírica e caráter romântico. 

 A sua terceira coletânea de poesias, Rivers to the Sea, foi publicada em 1915. Foi e é um bestseller nos Estados Unidos, sendo reimpresso diversas vezes. 

Em 1918 ela ganhou um Prêmio Pulitzer pela sua coletânea de poesias de 1917, Love Songs. Ela foi possível graças à The Poetry Society; a organização atualmente divulga que ela foi a primeira pessoa a receber o Prêmio Pulitzer de Poesia (inaugurado em 1922).

Suicidou-se em 1933.

aqui


De referir o Legado de Teasdale, ao longo do tempo. Os seus poemas têm sido utilizados em várias manifestações culturais.


Bom fim de semana, meus amigos.


Abraços


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Poema trazido de:
http://arspoeticaethumanitas.blogspot.com/2016/11/que-isto-seja-esquecido-sete-poemas-de.html

A imagem, trazida de pixabay
Poderá não ilustrar cabalmente o poema, mas gostei dela, pela sua leveza.

domingo, 7 de novembro de 2021

No País do Tchiloli

“Risonho, o Equador saltita para o umbigo de Mãe-África
sensualizando-a nos caminhos abertos às correntes atlânticas
onde as sementeiras proliferam ao deus-dará
como tudo o que é bom.”
(in Pingos de Chuva, Olinda Beja)


Tchiloli é uma peça de teatro com origem em Portugal no século XVI, que se tornou numa das mais persistentes realizações culturais e populares na ilha de São Tomé, em São Tomé e Príncipe. Inspirada na tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno, é da autoria do dramaturgo madeirense Baltazar Dias, interpretada em português antigo e moderno por companhias locais, constituídas somente por homens, com um anacronismo assumido, e que coloca em cena escravos e mestiços, mascarados e fantasiados ao estilo europeu.



Olinda Beja, romancista, contadora de histórias e poetisa, que já tive o prazer de trazer a este Xaile, diz numa entrevista cujo link indico abaixo: "Quando se fala de Tchiloli, ninguém sabe o que é", isso no contexto do desconhecimento da História e cultura são-tomenses. Nessa entrevista ela fala de tudo, ou quase tudo, desde a descoberta das ilhas de São Tomé e Principe, passando pelo seu povoamento- não esquecendo o envio de crianças judias por D.João II- os contratados, os contornos da literatura africana, nomeadamente a são-tomense, a literatura portuguesa... 

E, claro, escreveu um livro de poemas intitulado "No País do Tchiloli", no qual lança o seu olhar penetrante e lúcido. A sua obra é já extensa, contando no seu palmarés vários prémios.

Hoje deixo-vos um dos seus poemas, trazido, mais uma vez, do site de António Miranda:



Germinal

Ó minha ilha queimada pelo sol
pelas lágrimas do vento que escorreram
das escarpas e das vidas de teus filhos

em ti repousam as cinzas das esperanças
que outrora viveram no leito de teus rios
Malanza, Manuel Jorge, Contador, Cauê...

Em ti germinam vidas repassadas
de lua e sol no cais do sofrimento
que as âncoras da vida vão soltando!

Ó minha ilha adocicada pela chuva
lacrimejante e pura batendo na sanzala
de todos os ilhéus sequiosos de amanhãs.

Olinda Beja

 

Bom domingo, meus amigos.

Abraços


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Queira ler:

Tchiloli - aqui e aqui
Olinda Beja - aqui
Entrevista - aqui
Crianças em "viagens trágico-marítimas" - aqui

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

A política é uma arma


Eis como Eça de Queiroz via a política, no seu tempo:



Política de interesse

Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.
A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.
A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.
À escalada sobem todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos (...) todos querem penetrar na arena, ambiciosos dos espectáculos cortesãos, ávidos de consideração e de dinheiro, insaciáveis dos gozos da vaidade.

Eça de Queiroz, in 'Distrito de Évora (1867)


Isto era o Eça e a sua maneira fulminante de interpretar a sociedade. Quanto a mim vejo uns miúdos à volta da fogueira das vaidades ou fogo-fátuo - e não chego, bem entendido, ao exagero de nomear a política como o fez Bordalo Pinheiro - miúdos esses sem a mínima noção de que assim baralham o eleitorado, ficando sem saber para que lado se há-de virar. 

Poder-se-á dizer que é a democracia a mostrar-se viva e dinâmica 
e outras invenções que tais. 

Que nem digo que a decisão destas eleições antecipadas deixa para trás 
ferramentas que, talvez, fossem de bom tom experimentar, 

Que se tentassem outras vias que não esgotadas ainda 
ou, no limite, se ouvissem os constitucionalistas.

E, assim, está armado o espectáculo!
               
       


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Texto: Citador
O título do post retirado do texto