terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Aparição




2019 - um ano que nos trouxe mais uma vez o espectáculo público, mesmo que ocorrido nos lares, de mulheres maltratadas e mortas, numa sanha quase incompreensível. Não refiro aqui o número das que pereceram, porquanto uma que fosse já representaria uma tragédia.

Encontrei este poema de Edmundo Bettencourt, "Aparição". 

Que nos sirva de algum refrigério essas palavras, mas com a consciência de que a mulher é um ser humano com as suas qualidades e defeitos e não há que divinizá-la mas tão-só olhar para ela e reconhecer-lhe o lugar a que tem direito. E à Mulher compete reivindicar esse lugar para si, sem perder as suas próprias características.

Aparição

A mulher que por mim passou na rua, há pouco,
foi uma coisa diáfana, gentil,
cedo, a pairar
na sombra dum jardim
com flores, em baixo, ajoelhadas,
ao senti-la na altura,
e mandando-lhe o aroma em lágrimas, desfeito,
para mantê-la em uma nuvem branca...

Mulher, coisa diáfana, vaga e bela, sem desenho,
logo fluido animando o colo duma nuvem, nuvem,
num ápice, trucidada pelo vento!

in 'Rede Invisível'

Edmundo Bettencourt (Funchal1899 — Lisboa1973) foi um cantor e poeta Português notavelmente conhecido por interpretar a Canção de Coimbra e pelo seu papel determinante na introdução de temas populares neste género musical. Notabilizou-se pela composição musical "Saudades de Coimbra" a qual é ainda hoje uma referência da música portuguesa universitária ...daqui




Desejo-vos, meus amigos, uma boa passagem de ano e que 2020 nos traga mais tolerância e compreensão em relação aos nossos semelhantes.

Abraços.




BOAS FESTAS

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Poema: Citador 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Ilha a Ilha. Dor a dor

Concluir o post anterior "Vou-me embora para Pasárgada" ou fazer um novo mas continuando com o mesmo tema? Opto pela última hipótese, bem se vê. E digo-vos, meus amigos, que apreciei imenso os vossos esclarecidos comentários sobre este belo poema de Manuel Bandeira. Momento que pretendo reviver aqui, agora falando um pouco de Ovídio Martins e de outros poetas não menos talentosos que realizaram a ruptura com um mundo limitativo, e encontraram inspiração na Literatura brasileira.



Para já, o poema de Ovídio Martins que referi anteriormente, e dedicado a João Vário, o homem de palavras profundas que nos submergem num mar de reflexões desencontradas, como vimos no post, "Oh a maturidade não nega o que tememos".

ANTI-EVASÃO
Ao camarada poeta João Vário

Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada

Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada

Porquê este grito de rebelião? De Ovídio Martins sabemos que ele não deixa as coisas por dizer, nem as deixa a meio caminho. Assim o vemos em "O único impossível", no qual lança o repto de "mordaças a um poeta?" e ainda "Flagelados do vento leste", A nosso favor/não houve campanhas de solidariedade/não se abriram os lares para nos abrigar/e não houve braços estendidos fraternamente para nós, poema vivo, homónimo da obra de Manuel Lopes.

Detenhamo-nos aqui, com Manuel Lopes. Com ele e com Baltasar Lopes (da Silva) e Jorge Barbosa, da geração de '36. E é Baltasar que nos diz: Tínhamos um problema. Um problema que tinha de ser resolvido e, para isso, tiveram de ir beber longe a forma e o modo de o fazer. Os homens da Claridade, rompendo com o status quo vigente inauguram uma poesia de entrega e pertença, comungam da partilha da fome, da seca, do chão que se estiola a cada ano, da morte vivida a cada instante. Mas também, a par e passo, de um certo pendor evasionista. Uma tendência literária tão centrada em Pasárgada que aparece grafada como pasargadismo. Algo chamado agora, por alguns, de terra-longismo.

E Pasárgada começa a representar uma possibilidade bastante tangível mas também uma quase-obsessão, em termos literários. Se Manuel Bandeira escrevera o poema num momento de puro desânimo, segundo ele próprio, visionando esse campo dos persas como um país de delícias, para os poetas cabo-verdianos representa um lugar de evasão e demonstram-no em diversas criações. 

Baltasar Lopes da Silva (Osvaldo Alcântara), em Rapsódia da Ponta-de-Praia, na revista Claridade no qual a voz poética quer se evadir de um arquipélago colonial imerso na miséria: “Eu vou-me embora/ não vou ficar mais/ avassalado/ pelo Astral Inferior,/ vou fugir/ naquele Grange/ ou naquele suíço. Em 1986 publica Cântico da manhã futura onde insiste, em vários poemas, no tema Pasárgada.

Do mesmo modo Jorge Barbosa ao utilizar a palavra “evasão” como um desejo, reafirmava em Poema do mar, na Claridade n. 8, de Mai. 1958, os poetas claridosos e sua revista enquanto adeptos do evasionismo: “Este convite de toda a hora/ que o Mar nos faz para a evasão!/ Este desespero de querer partir/e ter de ficar”*



E deixando muito por dizer sobre essa época fecunda, foquemo-nos em Ovídio Martins que veio abalar essa estrutura, afirmando-se anti-evasionista e vendo em Pasárgada, visão querida dos poetas da velha guarda, uma forma de fugir ao que deveria ser realmente resolvido. Gerador de polémicas, obviamente. Voltaremos a ele, numa outra ocasião, para falar disso e do que o movia.

Mas, antes, guardemos em nós este verso do poema "Ilha a Ilha":

Cá vamos nós reconstruindo o país. Devagar, é certo, mas avançando. Ilha a Ilha. Dor a dor.*

Entretanto, e aproveitando a época que atravessamos, pensemos um pouco na passagem para o novo ano, de como queremos fazer a transição do velho para o novo, do que desejamos deitar para trás das costas, do que não presta, e almejar vivências novas. Também evasões, naturalmente. Sem deixar de resolver problemas de fundo ou aqueles que vão surgindo, decorrentes do nosso quotidiano, há momentos em que o nosso espírito precisa de descanso, de ser alimentado com o que cada um de nós enquadra na sua própria maneira de ser. E há todo um mundo à nossa espera, dentro de nós e lá fora.

CORNEILLE

Parce qu'on vient de loin



Bom fim-de-semana, meus amigos.

Abraços. 



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Ovídio Martins dedica "Flagelados do Vento Leste" a Manuel Lopes
e "O único Impossível" a Baltasar Lopes.
In: No Reino de Caliban, pgs 180 e 181/182, respectivamente.
Poema ora publicado: Anti-Evasão, dedicado a João Vário, pg.186

Leia, se lhe interessar:
*Ovídio Martins: Não vou para Pasárgada

Imagem de Ovídio Martins: No Reino de Caliban e Net
2ª imagem: pixabay


domingo, 22 de dezembro de 2019

"Vou-me embora para Pasárgada" - ou não vou?

Manuel Bandeira diz que sim. 

Vejamos como e porquê:

Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Mas, Ovídio Martins,  com o seu ANTI-EVASÃO, dedicado a João Vário, tem uma palavra a dizer sobre o assunto. E outros antes dele.

Completaremos o post em breve.

Entretanto, estarei ausente por uns dias.

VOTOS DE UM BOM NATAL.

ABRAÇOS

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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

"X Interação Fraterna de Natal - Tema: Minha Noite de Natal"

Festejar o Natal com familiares e amigos é muito bom. Mormente com amigos que ganhamos porque são generosos e desejam dar as mãos e comemorar a vida e o prazer de estarmos juntos. Assim, não interessa se estamos aqui ou no outro lado do Atlântico. Hoje em dia as distâncias são curtas e depressa chegamos uns aos outros, com palavras de amizade e de estímulo.



Assim fez a Amiga Rosélia trazendo-me o convite para participar na "X Interação Fraterna de Natal - Tema: Minha Noite de Natal", o que muito me sensibilizou e, claro, aceitei-o reconhecida.

Na minha Noite de Natal estarei acompanhada por familiares, ainda não sei bem se será cá em casa ou se na de outro familiar, mas o importante é estarmos todos juntos e em harmonia.

Fiz em tempos um post sobre a Consoada - Natal à Portuguesa e, essencialmente, em termos de iguarias, a minha Noite de Natal não diferirá muito do que escrevi nessa altura. Este ano a pedido dos vários comensais que, para minha alegria, integram a minha mesa, vou fazer bacalhau de alguidar. É um prato que se pode pesquisar na net. Fatalmente aparecerão as tais fatias douradas ou rabanadas e o arroz doce aldrabado, como refiro na publicação. 

E mais uns docinhos, miminhos de Natal, frutos secos, alguns presentes debaixo da árvore de Natal e uma pequena imagem de José, Maria e o Menino, que comprei há dias na Feira de Natal do Rossio, em Lisboa, relembrando um pouco o tempo em que o Presépio era o centro da casa.





Ali visitei algumas das tendas da Feira e achei engraçada a do Pai Natal, com uma janelinha amorosa, cuja foto vos deixo aqui. Lá dentro havia de tudo quanto é bonecos alusivos à quadra festiva, postais, saquinhos, meias, enfim uma parafernália imensa, aquelas inutilidades que, no entanto, nos fazem sentir imbuídos do espírito natalício.

Tempo ainda para registar a visão de Vinicius de Moraes, sobre o que, para ele, seria o Natal:

POEMA DE NATAL


Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:

Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:

Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:

Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.



Aproveito esta oportunidade para, desde já, desejar a todos: 


UM NATAL MUITO FELIZ


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A primeira imagem:
Selo enviado pela Rosélia




quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

oh a maturidade não nega o que tememos.






Canto Primeiro

Da morte nos ficou esse dom de a pensarmos
como coisa sua, coisa por que a pensamos
e acaso não a exprime, porque a
designamos.
Bizarro não é, pois, estar morto, mas lograr
que o tempo em si consigo não aja,
e erga a mão como quem sabe que a mão é
nossa
e não exprime
o que ambos exprimem,
uma, por mão, outro, por tempo que
aprende,
exprimem e juram em redor da mesa.
Para o que há sido o modo, a qualidade
de uma infinita aparição
ou o que há de exílio no exemplo que a
dissemina,
decidem a tradição e a carência
a espécie de facilidade que rememoraremos.
Sobretudo, decidem quando devemos
morrer
para pagar
a legitimidade ou o que há sido anomalia.

Porque de tudo nos ficou esse dom de não o sentir, de ficar com ele
só quanto seja a coisa que não tivemos.
A maturidade ou a alegoria que a tem
de outra coisa, oh a maturidade
não nega o que tememos.
O que queríamos dizer está já morto;
que poderíamos, pois, agora
acrescentar a essa alegoria?
Da condição da morte, o que morre
é nosso, e, além dele, dos bens nossos.


     (clic)

E agora, como interpretar isto? Perguntam-me a mim, imagine, João Vário! Teria de percorrer os caminhos trilhados por si na busca da sua verdade. Poeta do mundo, entregue ao seu afã de ler os outros para chegar a si próprio e construir o seu lugar. Um lugar só seu que muito poucos conhecem. Nos seus Exemplos foi deixando réstias do seu pensamento, do seu modo de estar, de reflexões filosóficas que os seus pares, aqueles que o terão lido, consideraram destoantes da sua realidade. 

Porquê aparecer então num momento de afirmação nacional, de contestação de poderes estabelecidos, com o seu raciocínio científico apenas focado naquilo que temos de transcendente, na contingência da morte e no poder incomensurável da vida? Apenas? Será que eu disse isso? E aparece nessa altura, assim vestido porque tinha de ser assim, porque era o seu destino, a sua sina, viver fora da sua terra e apenas voltar para ver a mãe e o irmão. E assim se fez e maturou o seu talento de homem de letras e de ciência. 
Oh a maturidade não nega o que tememos.



DEMIS ROUSSOS - INIMITÁVEL

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Poema retirado de Exemplo Geral: daqui
Título do post e citação retirado do poema.
Imagem - daqui

sábado, 14 de dezembro de 2019

Residência





Guardas as estações do sol e as harpas.
Os perfumados símbolos da terra cantam
no primeiro verão do olhar.
As mãos levam-te a vasos de margaridas brancas,
sinuosos e claros oceanos.
Sentas-te à mesa da tribo e repartes o pão.
Um homem que ama nas sombras o fulgor e as essências,
nunca chega tarde aos degraus da alegria, dizes,
o cheiro do vento e do trigo entre os dedos.

Não podes morrer contra o sonho contando as lágrimas,
a face reflectida nos espelhos da alma.

Nunca partas dessa casa onde cresce agora
a voz das crianças, os templos da sua inocência,
as mais bravas e fragrantes ervas do amor.
Queres, eu sei, esse mar, a breve cama dos pombos
quando se abrigam nos rumores.

Não há maior orfandade que chegar à ternura
sem palavras.

Eduardo Bettencourt Pinto


Nasceu em Gabela, Sul de Angola, em 1954. Residiu temporariamente na Rodésia e viveu sete anos em Ponta Delgada, Açores, onde iniciou a sua actividade literária. Reside no Canadá desde 1983. Além de vários livros publicados nos géneros de poesia e ficção, tem colaboração dispersa por jornais e revistas da diáspora norte-americana e europeia.
Ler mais em Correntes d'Escrita - aqui


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LURA


Eclipse - B.Léza


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Poema in "um dia qualquer em junho", pg 31
Ed. Instituto Camões
Imagem - daqui

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Mornas - Instrumental


MORNA

PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE

UNESCO

2019-12-11





Trago esta bela Rapsódia que preenche os nossos corações. 





Mas também este rabequista. Ora, apreciem-no. Assim, espontâneo, sem rede. E podem crer, é assim Cabo Verde, expressando naturalmente a sua música. Sempre foi assim e assim será.

Vai um pé de dança?

E não é que aqui encontrei aqui uma homenagem ao HUMBERTONA? 

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Meus amigos

Termino aqui esta pequena homenagem, (3 posts + este) mas já sabem, voltarei.

Bom fim de semana.

Abraço


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Na brêu di nha nôte - Celina Pereira




MORNA

PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE

UNESCO

2019-12-11


Um pensamento para Adriano Moreira que, em 1961, numa visita a Cabo Verde, promoveu a vinda de um grupo de jovens cantores e músicos cabo-verdianos para Portugal, a fim de actuarem e darem a conhecer a sua música. Dizem-no os mais velhos.

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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Câ Nô Dixâ Nôs Morna Morrê - Fernando Quejas




MORNA

PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE

UNESCO

2019-12-11



Fernando Quejas (Praia30 de abril de 1922 - Lisboa28 de outubro de 2005) foi um cantor e compositor cabo-verdiano.

Em Portugal, onde residia desde 1947, Quejas notabilizou-se aos microfones da Emissora Nacional, onde se manteve durante 25 anos.

Entre 1953 e 1960, gravou 22 discos para a editora "Alvorada", e colaborou também com a RTP, como autor e intérprete em programas sobre Cabo Verde.

A partir da década de 70, dedica-se a programas de rádio e espectáculos junto das comunidades portuguesa e cabo-verdiana, em Portugal e no estrangeiro.

Regressou a Cabo Verde em 1990, a convite do Governo, para um espectáculo na Assembleia Nacional, na Cidade da Praia.

Na sua terra natal, foi um dos sócios fundadores do Rádio Clube de Cabo Verde, estreando-se na primeira emissão radiofónica em directo da emissora. aqui

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"Mar Eterno" - de Eugénio Tavares


Diz quem sabe que Fernando Quejas foi o primeiro compositor e cantor cabo-verdiano a levar a morna para fora de Cabo Verde. Fez ou passou para o português muitas Mornas para que a mensagem fosse percebida, tendo-a interpretado em programas da Emissora Nacional. Na terra natal esse seu gesto foi incompreendido. Com o tempo foi-lhe sendo reconhecido o seu lugar na divulgação da Morna.

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PENSAMENTO - B.LÉZA




MORNA

PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE

UNESCO

2019-12-11

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Francisco Xavier da Cruz (B.Leza ou Beléza) foi um músico de Cabo Verde.

Natural do Mindelo, B.Leza inovou a morna ao utilizar frequentemente os acordes de passagem, (chamados de meio-tom brasileiro na gíria dos músicos cabo-verdianos), antes pouco usados nesse género musical.

O seu estilo e a sua obra, que começaram a ter sucesso na década de 1950, marcaram a música de Cabo Verde nos vinte anos seguintes. Compôs dezenas de mornas, entre as quais se destacam Eclipse, Miss Perfumado, Resposta de Segredo Cu Mar e Lua Nha Testemunha, que, diz a lenda, foi composta no leito do hospital, dias antes da sua morte a 14 de Junho de 1958.
Diz também a lenda que muitas pessoas iam ter com o mestre B.Leza para lhe pedir uma morna para a pessoa amada, para uma serenata ou para assinalar um acontecimento. Em questão de dias, B.Leza tinha a obra feita. Moacyr Rodrigues escreve que “influenciado pela música brasileira e argentina – B.Leza – vai enriquecer não só a música com a introdução do meio-tom mas também a letra pelo desenvolvimento de ideias”. aqui


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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

O Livro

Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.
Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza.
(...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.

 in 'Ensaio: O Livro'

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires24 de agosto de 1899 — Genebra14 de junho de 1986) foi um escritorpoetatradutorcrítico literário e ensaísta argentino. aqui





Dia Internacional do Tango



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Texto: daqui

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

"Cada homem está dividido entre os homens que poderia ser" - Paul Nizan

Se minha mãe, comigo no ventre, fosse morar em Londres, Paris ou Roma, eu seria a mesma criança, o mesmo jovem, o mesmo homem, a mesma pessoa? Supondo que os dons, o estro, os atributos são tramas de algum signo ou destino, haveria outras saídas e entradas que não as que me levaram a este comboio rolando em círculo, partindo e chegando aos mesmos sítios?
Esta cidade, estes ruídos, estas ruas, este café donde te escrevo, que têm a ver com os versos que as vozes me ditam, com os ais de que nenhum bardo me deu as rimas?
O Cruzeiro e a Ursa, o mar e a selva, o leão e a lontra, que tem isso a ver com os meus flatos de alma?
O Inglês, o Francês, o Italiano, o Português são idiomas, não são lágrimas ou suspiros. Quiçá venha uma língua universal. Provavelmente, continuaremos a soletrar as mesmas letras, a conjugar os mesmos verbos. Fatais viajantes entre o ser e o ter, entre o to be or not to be.

in Derivações do Brumário
Pg. 136


Já falei aqui de Germano Almeida, prémio Camões 2018. Hoje trago Arménio Vieira, prémio Camões de 2009, em Derivações do Brumário, onde revela um conhecimento aprofundado da cultura dita clássica e com isso o autor joga em textos curtos e mordazes com diversas personagens, fazendo-os desfilar em situações do nosso tempo.

Com efeito, na contra-capa lê-se:
"A fértil imaginação do autor, a par de uma notável erudição e ainda a capacidade de usar um grande número de passes originários dos magos do surreal, fazem deste poeta uma figura extraordinária no universo da moderna literatura em português.

Segundo Manuel Veiga, linguista, Arménio Vieira é um autor dissidente em relação à temática do terra-longismo, da mamãe-terra, da chuva-madrasta e braba, do mar prisão-liberdade, da seca-malfadada, da fome-ingrata e da ´lei´ que manda fincar os pés no chão, porquanto os tempos são outros. Falando do "Eleito do Sol", livro do mesmo autor, refere que muito mais do que as dez ilhas ou parte de um Continente, Cabo Verde, hoje, está e faz parte do Universo. Daí que O Eleito … pretenda ser o ´sol´ que ilumina o Mundo; e fazendo Cabo Verde parte do Universo, necessariamente também será bafejado pelos raios deste mesmo "sol". aqui

Mas o desconcerto desse mesmo mundo é evidente, neste Quiproquo:

Há uma torneira sempre a dar horas
há um relógio a pingar no lavabos

há um candelabro que morde na isca
há um descalabro de peixe no tecto

Há um boticário pronto para a guerra
há um soldado vendendo remédios
há um veneno (tão mau) que não mata
há um antídoto para o suicídio de um poeta

Senhor, Senhor, que digo eu (?)
que ando vestido pelo avesso
e furto chapéu e roubo sapatos
e sigo descalço e vou descoberto.


E de si, Arménio Vieira diz isto:

SOU UM POETA. Apenas ISSO.*


"Aqui, Arménio Vieira - Conde da Sátira crioula . Video RTP
Nota: A citação no título do post é o título do texto ora transcrito.

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Meus amigos

Desejo-vos uma bela semana. Peço desculpas pela ausência.
Visito-vos em breve.

Abraço

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Poema: aqui
*Divagações do Brumário

sábado, 30 de novembro de 2019

Vive, dizes, no presente

Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?

É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.


Alberto Caeiro
   (1889-1915)





Alberto Caeiro, heterónimo criado por Fernando Pessoa, sendo considerado o Mestre Ingénuo dos heterónimos Álvaro de Campos e Ricardo Reis e também de seu próprio autor, Fernando Pessoa.
É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade. Suas principais obras são O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos. aqui

Descrito pelo heterónimo Álvaro de Campos assim:

"Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo; depois, os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo-nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura, que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga. A expressão da boca, a última coisa em que se reparava — como se falar fosse, para este homem, menos que existir — era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de existir, e não de nos falar." aqui


Fernando Pessoa faleceu em 30/11/1935.

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Poema daqui
Imagem daqui

Sons da vida


Oiço-o. Trauteia algo. É o canto do corvo. Nunca canta. Assobia. Das poucas vezes que resolve cantar vem-me aos lábios um sorriso divertido. Nunca vi ninguém tão musical, ouvido muito apurado, arrancando sons divinos da sua viola de doze cordas, com voz desafinada de tal calibre. E digo-lhe, eu não sei afinar o meu violão (seis cordas) e ele responde é fácil, basta seguires o canto do corvo, começa na quarta corda (ou quinta?) e vai descendo até ao mi, depois sintoniza o mi agudo com o mi grave e afina a corda de baixo pelo seu som. Simples. E mais, ainda podes fazer mais e melhor: esticando a prima e passando daqui para ali podes afiná-lo ficando com os sons de uma guitarra.  Assim fazia ele. Os acordes doces e afinadíssimos começam a soar, fazendo gala dos bemóis e sustenidos misturados com notas simples que, no seu conjunto, fazem a vida mais bela.

E dedilhador como só ele, aparecem logo as mazurkas de sempre que, quase automaticamente, me fazem marcar o ritmo. Aproveitando a última nota da mazurka surge a valsa que me faz rodopiar a saia curta e pondo-me na ponta dos pés finjo apoiar-me no meu par. E assim por diante, uma rapsódia cada vez mais inspiradora faz nascer a dançarina em mim, de pés alados. Sinto e ouço, os sons vão baixando... Ali está ele. Adormece com os dedos na primeira posição do dó maior. É sempre assim. Deixa-se embalar pela própria música. 



Dezembro é o nosso mês. Meu, dele e do António. E mesmo não estando por cá todos tenho a certeza de que faremos uma festa. O João e o Elísio com pretensões a Paganinis. A Inês com a sua voz maviosa e a Maria alcançando tons de soprano. E o António, Ah, o António! Belo, com os seus ares de cientista louco comandará os passos da contra-dança, en avant! en avant quatre! deixem a dama brincar agora! 

Da Bela, belíssima, recordaremos as canções que ouvimos tantas vezes, tantas que as sabemos de cor, as suas leituras, o dizer das palavras, os livros que adorava ler, e que depois li. Dela ficou-me também isto de Lamartine, em Regina e Graziela: Para quê recordar os dias do passado? Pranteiam o vento e o mar a triste sorte não chores coração amargurado, medita nesta morte.

Mas é de vida que se trata aqui. Dos sons da vida. 
     E debaixo da Figueira mansa faremos a nossa festa.





e qual a diferença entre a valsa e a mazurka? Aqui ficamos a saber...

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