sexta-feira, 30 de maio de 2014

On n'a de droit que sur les choses pour lesquelles on a souffert

A sombra das chamas, como um ninho de víboras, floria de remorso - mas que remorso? - e de saudade absurda a alvura em fuga da parede caiada, apojada de grumos que aquele luzeiro avolumava e que sempre eram, um por um, na hora da solidão, referências aos segredos antigos.
Uma pequena fogueira num cinzeiro de louça. Apenas um papel a mirrar, já negro, encarquilhado, e sangrando ainda, pelo canto que sobrava, aquele resplendor de uma última e cínica despedida. Não iria estalar o cinzeiro? Os dedos brancos, mas já envelhecidos pela barrela e pelas frieiras, pegaram, com jeito, na folha quase consumida, voltaram para cima o clarão ameaçador, que logo minguou.
Em breve, soltando-se da mão fanada, que prudentemente se retirava, o resto da carta caiu de novo, com o seu rasto de lume a extinguir-se, fantasma já dominado, na concha de louça.
Ficou só um castelo de cinza crepitando mansamente, num silêncio de redoma. Como era doloroso ver arder uma carta: era como se ardesse também alguma coisa, ainda alguma coisa, de quem a mandara! Numa extremidade do papel carbonizado, tenazmente, ou já só ilusoriamente, viva, continuava a afirmar-se, airosa e egoísta, uma assinatura que parecia sorrir daquele sacrifício: Delfino!



Da vasta obra de Urbano Tavares Rodrigues, retiro este livro, Bastardos do Sol, 1959, e leio a primeira página e parte da segunda, excertos transcritos acima. E reparo que antes das páginas referidas e mesmo antes da dedicatória, À memória de Jaime Cortesão, vem a citação que serve de título a este post: On n'a de droit que sur les choses pour lesquelles on a souffert, de Robert Montesquiou, homem de letras, um esteta, que Marcel Proust elegeu como o professor da beleza de toda uma geração. Voltando à citação, estou em crer que terá muito a ver com o desenrolar da vida das personagens de Bastardos do Sol. Para o saber vou reatar a leitura no ponto em que a deixei. 

Chama-me a atenção um pequeno volume intitulado, Os poemas da minha vida, com poemas de vários autores e que se encontram entre as preferências de Urbano. Ele diz (prefácio da 1ª edição): Não sei bem quando comecei a ler poesia. Creio que principiei a amar as cantigas paralelísticas da nossa Idade Média muito antes de as ler, ao ouvir as modas alentejanas dos ranchos que saíam para os olivais, na apanha da azeitona.
Folheio-o e encontro poemas que também a mim me encantam e retenho:

O BEIJO (Paul Éluard)

Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
Vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.

Ou Cristalizações, Cesário Verde, do qual insiro esta passagem:

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
     De tão lavada e igual temperatura!
     Os ares, o caminho, a luz reagem;
     Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
     Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
     
E ficaria assim a acompanhá-lo, desde a primeira à última página, nesta selecção poética que, com tanto amor, produziu.




Dum manuscrito, diário de Urbano Rodrigues, saltam estas palavras, perfumadas: Simpatizo com a forma deste caderno. Estas coisas para mim teem importância: gosto do papel sedoso e das folhas ligadas.
Levantei-me há pouco e estou sem grande ânimo para me levantar. A Zita foi à praça. Tenho ainda as luzes acesas, embora a claridade do dia entre no quarto, através duma greta da janela. (...)

E termino aqui, de momento, esta viagem ao mundo de Urbano Tavares Rodrigues. A si, caro/a visitante, que acaba de me acompanhar nestas leituras parcelares, se quiser continuar para um maior aprofundamento, faço-lhe saber, se é que não sabe já, que está a decorrer, até 28 de Junho, na Biblioteca Nacional, uma Mostra da vida e obra deste grande autor da História Literatura Portuguesa do século XX, falecido em 2013.


quarta-feira, 28 de maio de 2014

Quase Memórias: Esta é a minha Verdade!

Hoje mais do que nunca o trabalho do historiador se mostra exigente. Com a sua capacidade de lançar olhares de conjunto, privilegiando o todo para o decompor em partes, é nessa tarefa que se deverá concentrar. Qualquer que seja o género de História que pretenda desenvolver, regional ou geral, é sua obrigação deixar portas abertas, pistas que outros possam seguir no sentido de se tentar compreender e completar ciclos que parecem isolados mas que na realidade se interpenetram.

Isto para dizer que todos os dados, todas as memórias, todos os documentos são imprescindíveis como material de análise histórica. Esta obra de António de Almeida Santos, Quase Memórias, é um instrumento importante, aliado a tantos outros, para se compreender uma época que continua a causar-nos perplexidade.

Trata-se de um trabalho minucioso baseado na documentação produzida em todo o processo de independência das ex-colónias, conversações, tratados e também na sua visão pessoal, introduzindo a sua própria interpretação, as suas vivências e experiências.

    

"Longa como as estradas da Galileia foi esta digressão pelo estertor do colonialismo e pelo dossier da descolonização. A partir de agora, este livro deixa de ser meu. Não faço a menor ideia de como possa ser acolhido pela opinião pública portuguesa. Talvez agrade a alguns. Desagradará necessariamente a muitos, tão amargas são algumas das recordações que evoca. Mas, quem se põe a remexer na história, não pode satisfazer-se só com uma parte dela. Não pode deixar de tentar ser exaustivo, objectivo e verdadeiro. Esta é a minha verdade sobre o estertor do colonialismo e sobre o dossier da descolonização; sobre os mais salientes acidentes do processo revolucionário posterior a Abril que lhe determinaram o tempo, o modo e o resultado final. Deixo ligados a tudo isso inolvidáveis momentos da minha vida. Nem todos agradáveis. Apesar disso, foi reconfortante recordá-los."



Esta é a mensagem impressa na contra-capa da referida obra, composta de dois volumes, editada em Setembro de 2006. Normalmente, escrevo a lápis a data em que adquiro os livros e neste consta 2006/10/27, o que demonstra o meu interesse por esta matéria. É um livro que não se consegue ler de uma assentada. É para ser lido com tempo e, assim sendo, levei o meu tempo a fazê-lo. O 1º Volume traz o subtítulo: Do Colonialismo e da Descolonização. E o 2º : Da Descolonização de cada Território em Particular.

Estamos, de novo, a atravessar tempos que exigem de nós reflexão e grande sentido de responsabilidade. Isso, tanto no que diz respeito aos problemas nacionais como em relação a Europa, espaço onde nos encontramos inseridos. E, não há dúvida, esta Europa necessita urgentemente de ser repensada, regressando ao momento em que foi idealizada e reavaliando os seus objectivos.

Quanto ao panorama nacional, passa-se uma situação bastante interessante. No que se refere às eleições europeias de há três dias, os resultados por cá, no chão nacional, estão completamente obliterados. Já não se sabe bem quem as ganhou e quem as perdeu... Já não se sabe se houve uma vitória histórica... ou uma derrota histórica. E na liça temos mais um lidador. Que os mais altos interesses da pátria se alevantem.   


Nota: Por motivos vários, só hoje me foi possível fazer este post referente a esta obra de Almeida Santos, prometido há já um mêsAs duas imagens são do 1º e 2º volumes.    


domingo, 25 de maio de 2014

A Verdadeira Liberdade




A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim…
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança…
Sorriso da velha bondosa…
Apertar da mão do amigo sério…
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!
Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote.
Da casa do campo da minha velha infância…
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

ÁLVARO DE CAMPOS

in:Banco de Poesia Fernando Pessoa

Imagem daqui

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Na Terra Prometida...

O tambor ressoava por todos os cantos do lugar. Era o modo de fazer chegar a todos as notícias. Havia sempre a esperança de serem boas, embora nem sempre o fossem. Aos poucos as pessoas começaram a juntar-se. Ainda longe, via-se a forma arredondada do tambor. Por detrás, adivinhava-se José de Nica, homem de estatura baixa, muito ciente da sua qualidade de arauto. No grupo que se ia formando ao pé de Joana as perguntas fervilhavam, quase em surdina: O que diz o tambor? O que diz o tambor? Mas a contenção foi abandonando as pessoas e já a correr e quase aos gritos: Ó José de Nica, o que diz o tambor? -Móia!!! Na sua linguagem codificada queria dizer que havia algures uma abundância qualquer. - Móia? Onde e de quê? -Na Praia Formosa. Encalhou lá o John. O navio está cheio de milho e de outras coisas... Não foi preciso ouvir mais nada. Todos sabiam o que fazer. Naqueles anos de estiagem e de racionamentos aquilo soava a milagre. Toda a gente começou a juntar o necessário, em ferramentas e vasilhames, e a reunir a família toda, incluindo velhos e crianças. Muitos partiram a pé, e quem ainda tinha alguma alimária carregava-a com os seus poucos haveres. Miriam lembrava-se muito bem daquele dia. Foram de bote e já na Praia Formosa, à noite, deitada e a olhar para as estrelas, ouvia vozes alegres de homens que vinham do navio com os seus salvados. Nas noites de lua cheia contava-se a história da Praia Formosa. Miriam dizia:- Ah! Lembro-me tão bem...-Não, filha, eras tão pequenina, nem três aninhos tinhas! Talvez te lembres por ouvires contar...- respondia-lhe Joana. 

Mas ela fitava a lua com um sorriso luminoso e cheio de mistério. Revia, nitidamente, a terra do leite e do mel...






Imagem daqui

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O pão que eu amassei...

Apresento à vossa apreciação visual e virtual um pãozinho que eu fiz, o meu primeiro. E porquê este alarido? Sempre que vejo uma receita de massas, isto é, em que se tem fazer a massa, fujo a sete pés. Mas desta vez resolvi armar-me em forte e segui as indicações da Madalena, autora do blogue A Panificadora Ribeiro, sítio que eu visito amiúde. É sempre com muito prazer que vou lá espreitar, dada a simplicidade com que apresenta as suas receitas e faz parecer que é tudo fácil.

Diz-nos a Madalena que numa destas manhãs viu que não tinha pão em casa, então, pegou em farinha, manteiga, fermento, água e amassou num instante um pão, sementinhas por cima, e que apetitoso que ficou! Alors, num grande atrevimento propus-me fazer o mesmo, o que, para mim, foi um grande feito. :))

Ei-lo:





Um pouco enrugadinho, não?




Um competente corte para a demonstração


Agora, o meu convite é o seguinte: Ide conferir, aqui, a obra da mestra (Pão de manteiga com sementes de sésamo) e regressai com as ferramentas necessárias para avaliardes a da aprendiza. Verificareis as abissais diferenças entre uma e outra. Digo, desde já, que lhe faltam as sementinhas e que não consegui fazer os desenhos porque a massa não me obedeceu. Justificações apresentadas, a priori...

Mas valeu pela experiência e garanto-vos que da próxima o meu pãozinho sairá com melhor aspecto.

Desejo-vos um bom pequeno-almoço, um excelente café da manhã, um óptimo mata-bicho, um rico petit-déjeuner, um lindo breakfast, enfim, de conformidade com as vossas coordenadas geográficas. 

Quanto a mim, já tomei o meu, com uma boa fatia do referido pão e uma chávena de café com leite, fumegante.

:) 

Bem. A esta hora já estamos a caminhar para o almoço...

domingo, 18 de maio de 2014

Comemoração dos "8 Séculos da Língua Portuguesa"

Numa espécie de resposta às minhas questões inseridas no post de oito do corrente mês, encontrei na revista e-Cultura referências às comemorações dos "800 anos da Língua Portuguesa", que decorrem entre 5 de Maio e 10 de Junho.





Eis o texto:

Entre 5 de maio de 2014 (Dia da Língua Portuguesa instituído pela CPLP) e 10 de junho de 2015 decorre a celebração dos “8 Séculos da Língua Portuguesa”, evento organizado pela Associação com o mesmo nome, que visa a valorização e a visibilidade da Língua Portuguesa enquanto idioma oficial de oito países inseridos em múltiplas matrizes geopolíticas e culturais.

Esta iniciativa assinala os 800 anos da Língua Portuguesa, tendo por base os primeiros documentos escritos em português – Testamento de D. Afonso II (1214), Notícia dos Fiadores (1175) e outros documentos dessa época.

A Associação “8 Séculos de Língua Portuguesa” conta com algumas pessoas de reconhecido mérito entre fundadores e corpos dirigentes, tais como os escritores Alice Vieira e António Torrado, os jornalistas Laurinda Alves e Mário Figueiredo, as professoras universitárias Inês Sim-Sim, Helena Bárbara Marques Dias e Marta Martins e Vasco Alves, ex–dirigente do Ministério da Educação.

O Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, IP apoia a celebração dos “8 Séculos da Língua Portuguesa”.

O projeto apresenta, entre outros, os seguintes objetivos:

- Fazer uma grande comemoração da Língua Portuguesa em todo o mundo lusófono, em 2014/2015, por altura da comemoração dos seus 8 séculos;

- Contribuir para a aproximação dos países lusófonos, bem como de Macau, em torno de uma grande manifestação cultural;

- Contribuir para pensar a afirmação da Língua Portuguesa no mundo, a nível cultural, político e económico, bem como nas grandes instituições internacionais;

- Contribuir para dar a conhecer nacional e internacionalmente poetas, escritores e artistas do mundo lusófono;


- Contribuir para incentivar a produção poética em língua portuguesa no mundo lusófono.

O Programa encontra-se aqui

Num site do Ministério de Educação encontrei também esta referência:

A Direção-Geral da Educação participará neste evento através da divulgação das várias atividades a desenvolver pela Associação, tais como a conceção de um sítio na internet, o lançamento de livros de poesia ou a realização de colóquios, de exposições e de grandes acontecimentos culturais e económicos subordinados à temática da celebração da Língua Portuguesa.


A imagem é do Observatório da Língua Portuguesa que noticiava talvez em Janeiro ou Fevereiro: Conferência de apresentação pública das Comemorações dos 8 Séculos da Língua Portuguesa, no dia 17 de Fevereiro, às 18 horas, no auditório B203 do ISCTE, em Lisboa.


Pelos vistos só eu é que não sabia de nada. Talvez porque a notícia não me tenha chegado pela via mais óbvia que é a TV ou então estive desatenta...

Desejo-vos um óptimo domingo.


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quero ir para casa, embarcar num golpe de asa




QUERO VOLTAR PARA OS BRAÇOS DA MINHA MÃE

Cheguei ao fundo da estrada,
Duas léguas de nada,
Não sei que força me mantém.
É tão cinzenta a Alemanha
E a saudade tamanha,
E o verão nunca mais vem.
Quero ir para casa
Embarcar num golpe de asa,
Pisar a terra em brasa,
Que a noite já aí vem.
Quero voltar
Para os braços da minha mãe,
Quero voltar
Para os braços da minha mãe.

Trouxe um pouco de terra,
Cheira a pinheiro e a serra,
Voam pombas
No beiral.
Fiz vinte anos no chão,
Na noite de Amsterdão,
Comprei amor
Pelo jornal.
Quero ir para casa
Embarcar num golpe de asa,
Pisar a terra em brasa,
Que a noite já aí vem. 
Quero voltar
Para os braços da minha mãe,
Quero voltar
Para os braços da minha mãe.

Vim em passo de bala,
Um diploma na mala,
Deixei o meu amor p'ra trás.
Faz tanto frio em Paris,
Sou já memória e raiz,
Ninguém sai donde tem Paz.
Quero ir para casa
Embarcar num golpe de asa,
Pisar a terra em brasa,
Que a noite já aí vem. 
Quero voltar
Para os braços da minha mãe,
Quero voltar
Para os braços da minha mãe.

Pedro Abrunhosa

Letra retirada do blogue:  amusicaportuguesa

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Ah, Primavera! Tão bela, florida e perfumada e tão castigadora...

É como me sinto, dividida entre as muitas belezas e divinos odores desta estação e o outro lado menos atraente das alergias causadas precisamente pelos pólenes e por tudo o que lhes está associado. Não há anti-histamínico que me valha, os espirros não me dão descanso e os olhos e o nariz já ganharam vida própria numa choradeira sem fim.

Mas há que remar contra a maré e, com um olho aberto e outro fechado, aqui estou eu a traçar estas linhas. Para dizer o quê? Hoje em dia, com a profusão de canais comunicacionais existentes, milhões de pessoas estão a dizer ao mesmo tempo as mesmas coisas, debatendo assuntos de grande importância ou assinalando apenas outros de seu interesse. Parece quase redundante eu aparecer também a fazer o mesmo. Contudo, há aspectos da sociedade, tanto no nosso bairro como em latitudes mais afastadas, que devemos todos apontar e rebater, se for caso disso.

Surge-me, de pronto, o caso noticiado das meninas raptadas na Nigéria. Uma tragédia humanitária. E é tão grande e sinto-a tão minha que me é quase impossível encontrar palavras para se lhe referir. As autoridades internacionais têm responsabilidades, todos nós as temos, cada um no seu íntimo. Um espelho em que teremos de nos rever. E é obrigação nossa olhar em redor e verificar se não existem casos perto de nós, não com esta dimensão, como é óbvio, que necessitam de atenção. E oiço em eco este verso de Augusto Gil: Mas as crianças, senhor, porque lhes dais tanta dor

Num sentido totalmente diverso, lembro-me agora de uma notícia, num jornal regional, sobre o Avô Cantigas. Lembram-se dele? Um jovem de há 32 anos que resolveu vestir a pele de Avô para delícia das crianças. Agora já não precisa fingir que é avô, os cabelos brancos atestam-no. Um homem de visão. Um ideia interessante, um projecto que vai sendo realizado ao longo da vida. Vai comemorar estes anos de carreira, brevemente, em Évora, com um espectáculo, É Bom Sonhar. Pessoas que pugnam pela felicidade das crianças: De louvar.





E, por estes dias, uma outra notícia chamou-me a atenção, numa revista, embora a mesma já tivesse aparecido em Janeiro, em jornais, como verifiquei depois. Duas jovens portuguesas, no Reino Unido, projectaram um trabalho de promoção do nosso idioma, inserido no conceito de speed-dating, destinado a crianças. E esta, hein?! Trata-se da divulgação e aprendizagem da língua, envolvendo crianças bilingues, precisamente as nossas crianças no estrangeiro. São muitos os voluntários, cientistas portugueses, que estão a dar o seu contributo, pois nisso está também inserida a abordagem de outras matérias.

Por falar em língua, no passado dia 5 foi o dia da Língua Portuguesa e da Cultura da CPLP. Ouviram falar disso? Algum Organismo fez disso notícia? Houve acções em conjunto com o órgão que representa a Comunidade a dar-nos conta do que tem sido feito em prol de uma maior exposição da referida cultura? Vieram dizer-nos se têm sido levado a cabo providências no sentido de a língua portuguesa ser, efectivamente, considerada como língua de trabalho nas instituições internacionais?  Não sei. 

Mas como tenho estado mergulhado neste meu limbo de alergias é natural que me tenha escapado.

Desejo-vos uma excelente semana. Bem, o que dela resta ainda.


Notícia: speed-dating aplicado às línguas e à ciência
Imagem: Tatiana Correia e Joana Moscoso

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Quando eu for pequeno, mãe, quero ouvir de novo a tua voz





QUANDO EU FOR PEQUENO

Quando eu for pequeno, mãe, 
quero ouvir de novo a tua voz 
na campânula de som dos meus dias 
inquietos, apressados, fustigados pelo medo. 
Subirás comigo as ruas íngremes 
com a certeza dócil de que só o empedrado 
e o cansaço da subida 
me entregarão ao sossego do sono. 

Quando eu for pequeno, mãe, 
os teus olhos voltarão a ver 
nem que seja o fio do destino 
desenhado por uma estrela cadente 
no cetim azul das tardes 
sobre a baía dos veleiros imaginados. 


Quando eu for pequeno, mãe, 
nenhum de nós falará da morte, 
a não ser para confirmarmos 
que ela só vem quando a chamamos 
e que os animais fazem um círculo 
para sabermos de antemão que vai chegar. 

Quando eu for pequeno, mãe, 
trarei as papoilas e os búzios 
para a tua mesa de tricotar encontros, 
e então ficaremos debaixo de um alpendre 
a ouvir uma banda a tocar 
enquanto o pai ao longe nos acena, 
lenço branco na mão com as iniciais bordadas, 
anunciando que vai voltar porque eu sou 
                                                       [pequeno 
e a orfandade até nos olhos deixa marcas. 



in "O Livro Branco da Melancolia"
Poema retirado de 'O Citador'

Imagem: Tela de Manuela Batista, a partir de foto publicada aqui
Blogue: Histórias com mar ao fundo