quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Reencontro

Depois de tantos dias de ausência trago uma carta de Nuno Júdice para marcar um encontro convosco. Nas palavras do poeta um encontro poderá ser em qualquer sítio, a qualquer hora, talvez privilegiando o silêncio ou então dizendo alguma coisa mesmo que não se diga tudo, ou ainda apenas o gesto, a boa vontade, a disponibilidade, num nascer do nascer ou pôr-do-sol, à beira-mar,

Laginha - São Vicente

Carta (esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida” 

Estrada da Corda - Delgadim - Santo Antão

ou mesmo aqui tão perto do céu, na dobra do caminho em que a mão de Deus nos toca de perto e nos sentimos tão pequenos, em sentido, em estado de pura meditação despindo-nos de vaidades. E então reparo, também, que poderá ser nas dobras deste Xaile o nosso reencontro.

Desejo-vos uma boa quinta-feira. Está frio mas, em compensação, está Sol.

Abraço.

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Poema: retirado do Citador 
As fotos são do pessoal cá de casa, tiradas na nossa ida a Cabo Verde.