segunda-feira, 21 de março de 2016

Os meus versos - Maria do Carmo Santa-Rita

Ao ler estes versos que a autora me pediu para prefaciar, senti que tinha recuado no tempo, que tinha sido transportada para uma época em que as damas versejavam por inerência da sua condição.

Ao ler estes versos, senti que estava de novo perto do tempo dos Cancioneiros, dos Rimances, de uma poesia popular, atravessada aqui e ali por ecos de Florbela Espanca.

Nestes versos a sua autora - professora de Yoga - não projecta imagens da sua impassibilidade búdica, pois neles floresce e por vezes explode, um intenso hino à vida, às suas alegrias, tristezas e contradições.

Mapa emocional da vida da autora, estes versos são uma oferenda que ela generosamente fez de si e todos os que a lerem. E por isso merece o meu carinho.

Ana Hatherly - Novembro de 1997

Devaneios

Sonhei que possuía o mundo inteiro
num deslumbre de puras fantasias.
No pálido momento, o derradeiro,
reparo finalmente as mãos vazias.

Vivi do sentimento, na pureza
dum ideal sem par, todo brancura.
Revejo agora, sem ódio, com tristeza,
que tudo o que sonhei foi só loucura.

Relembro devaneios, rimas caídas
arrancadas para a rua
do livro que escrevi um dia.

Sofro, canto e choro amargamente.
Mas a dor indiferente
continua...

Maria do Carmo Santa-Rita
In: Os meus versos, pg. 73

Recebi este livro das mãos da autora, há já algum tempo. Hoje, dia em que se comemora a Poesia e tudo aquilo que ela nos traz de bom, permitindo-nos sonhar e expressar sentimentos, resolvi trazê-la ao nosso convívio.

Desejo-vos um excelente dia.

Abraço.

terça-feira, 8 de março de 2016

Só o amor me interessa

Nesta fase em que só o amor me interessa
o amor de quem quer que seja
do que quer que seja
o amor de um pequeno objecto
o amor dos teus olhos
o amor da liberdade

o estar à janela amando o trajecto voado
das pombas na tarde calma

nesta fase em que o amor é a música de rádio
que atravessa os quintais
e a criança que corre para casa
com um pão debaixo do braço

nesta fase em que o amor é não ler os jornais

podes vir podes vir em qualquer caravela
ou numa nuvem ou a pé pelas ruas
- aqui está uma janela acolá voam as pombas -

podes vir e sentar-te a falar com as pálpebras
pôr a mão sob o rosto e encher-te de luz

porque o amor meu amor é este equilíbrio
esta serenidade de coração e árvores 


Egito Gonçalves (1920-2001)
in: Antologia Poética

Sentimento idílico este que nos envolve. Mas, onde andará o amor quando há mães que matam os próprios filhos? Ah! As mulheres, porto seguro, lugar de abnegação, capazes de todos os sacrifícios pelas suas crias. Vemo-las, idealmente, amoráveis, belas, embevecidas, com o filho ao colo livrando-o dos perigos. Então que mal lhes afecta o coração, o cérebro, para se esquecerem de tudo e praticarem actos incompreensíveis? Ou será que têm razão aqueles que dizem que o amor maternal não é inato e que "parir é dor, criar é amor", pondo a tónica naqueles que sem qualquer ligação de sangue conseguem dar amor e protecção?

Amigos, hoje, dia dedicado à Mulher, não pude deixar de inserir aqui a minha preocupação perante este tão grande problema que nos tem assolado.

Um abraço.

sexta-feira, 4 de março de 2016

A Ponte

Diante de mim, a escuridão. A voragem
Que não tem cimo e que nem sequer tem margem
Lá estava, sombria, imensa; nada nela mexia.
Perdido no mundo infinito eu me sentia.
Ao longe, através da sombra, impenetrável véu,
Entrevia-se Deus, pálida estrela no céu.
Clamei: - Ó alma, alma minha! eu precisava,
Para atravessar o abismo cujo fim não vislumbrava,
E para durante a noite até Deus eu ascender,
De construir uma ponte e em mil arcos a estender.
Quem o conseguirá? Ninguém!ó dor! tormento!
Chora! - Um fantasma branco ergueu-se no momento
Em que à sombra um olhar de temor eu deitava.
A forma de uma lágrima esse fantasma mostrava;
Tinha uma fronte de virgem e duas mãos de criança;
Lembrava um lírio que toda a brancura alcança;
As suas duas mãos juntas acendiam uma luz.
Apontou o abismo onde tudo a pó se reduz,
Tão fundo que nem o eco aí segue a sua lei,
E disse-me: - Se quiseres, a ponte construirei.
Para o desconhecido ergui meus olhos do chão.
-Como te chamas? perguntei. Respondeu: - A oração.

Victor Hugo 
(1802-1885)
Poemas
(Selecção e tradução de Manuela Parreira da Silva)

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Olá, Amigos.
Sejamos construtores de pontes.
Muito obrigada pela vossa presença e simpáticas mensagens.
Um abraço