sábado, 31 de março de 2018

Os caminhos da Felicidade, segundo Max Ehrmann

Pessoa amiga enviou-me este video em que Ruy de Carvalho empresta a sua voz a este prose poem intitulado Desiderata, de um autor norte-americano de nome Max Ehrmann. Nele são apontados alguns caminhos na procura da Felicidade. Aqui vo-lo deixo, com votos de uma Boa Páscoa.




The Desiderata of Happiness no idioma original - aqui


E também neste video:






Façam o favor de ser felizes, como diria o nosso Raúl Solnado.

Abraço.

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segunda-feira, 26 de março de 2018

Pobres dos nossos ricos

A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.

A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos "ricos". Aquilo que têm não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. (...)

Os nossos endinheirados-às-pressas não se sentem bem na sua própria pele. Sonham em ser americanos, sul-africanos. Aspiram ser outros, distantes da sua origem, da sua condição. E lá estão eles imitando os outros, assimilando os tiques dos verdadeiros ricos de lugares verdadeiramente ricos. Mas os nossos candidatos a homens de negócios não são capazes de resolver o mais simples dos dilemas: podem comprar aparências, mas não podem comprar o respeito e o afecto dos outros.(...)

Os nossos endinheirados dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem crianças que entraram numa loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns bens de ostentação. Servem-se do erário público como se fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância. a sua falta de cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza. (...)


Excertos das páginas 23 a 26 do artigo publicado em Savana, Dezembro de 2002 - In: Pensatempos - Textos de opinião - Mia Couto, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2005.






Na contracapa:

Nestes Pensatempos transparece a preocupação de provocar debate, sugerindo alternativas inovadoras, questionando modelos de pensamento e interrogando os lugares-comuns que aprisionam o nosso olhar perante os desafios da actualidade. O prazer já encontrado na escrita de quem se diz estar reiventando a língua portuguesa ressurge agora no gosto de pensar o nosso mundo e o nosso tempo.






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sábado, 24 de março de 2018

A mosca ou a aranha?

O que pode um escritor dizer sobre um tema como aquele que nos é proposto: "A Globalização da Tecnologia em Informática"? Ocorreram-me várias coisas enquanto pensava no assunto. No silêncio de uma velha sala, eu preparava esta intervenção quando me aconteceu observar na esquina do tecto uma teia de aranha. Esse pequeno animal concebera e construíra não uma casa onde morar, mas uma armadilha para caçar. Os ingleses chamam web a esse entrelaçar de fios. A tradução do termo é ambígua -  pode ser rede, pode ser teia. (...)




Preocupa-me a maneira como estamos cedendo à tentação de olhar a tecnologia como solução global para os nossos múltiplos males. Muitos de nós acreditamos que é a técnica que nos vai salvar da miséria. Essa crença nos deixa vulneráveis a uns tantos vendedores de produtos mágicos. O futuro não seria apenas melhor - como diz o slogan - mas fácil, tão fácil como digitar um teclado. Para sermos como eles, os desenvolvidos, basta preencher uns tantos indicadores nos critérios de consultores e, num ápice, entramos no clube.

Sabemos que não é verdade. Desconheço por que motivo queremos tanto ser como "eles" e não como nós mesmos, seguindo caminhos nossos para destinos que nós próprios inventamos. O que nos separa da riqueza são, sobretudo, questões de natureza não técnica. São atitudes, vontades, uma determinação política e uma postura do domínio da cultura. Digitalizar não nos converte em seres modernos.(...) Caso não venhamos a exercer alguma soberania em actos que, afinal, são de cultura, entramos nesse universo a que chamamos sociedade digital como um mercado menor, um pequeno parceiro da periferia.

Não pretendo fazer a apologia de coisa nenhuma. Afinal, é inevitável que abracemos todo este trilho das inovações digitais. Gostaria apenas de saber que estamos pensando o nosso lugar nesse universo, nós que somos uma nação profundamente marcada pela oralidade. (...) Gostaria de saber se estamos acautelados sobre o quanto iremos perder dessa teia de relações que é o nosso quotidiano do espaço público. (...)

Há uns anos a fronteira entre civilizados e os povos indígenas era a sua integração na cultura europeia. Agora, uma nova fronteira pode estar surgindo - de um lado, os digitalizados e, do outro, os ex-indígenas que passarão de indigentes a indigitalizados. Uma nova proposta de cidadania está em curso. E nós estaremos, de novo, no lado dos subúrbios.

Enfim, a web é uma rede mas também uma teia. Nessa teia a que voluntariamente aderimos seremos a aranha se tivermos estratégia. Seremos  a mosca se nos mantivermos pensando com a cabeça dos outros.


Excertos, pgs. 65 a 67: (Palestra na Conferência das Telecomunicações de Moçambique - TDM sobre Globalização da Tecnologia num Mundo Informatizado, Maputo, Abril de 2001). In: Pensatempos, de Mia Couto, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2005.


  Na contracapa:

Com estes Pensatempos se publica, pela primeira vez, em Portugal, um livro de Mia Couto que não se localiza no território da ficção literária. Esta colecção de textos reúne, sim, artigos de opinião e intervenções que o escritor realizou nos últimos anos, dentro e fora de Moçambique. São textos dispersos e diversos, abrangendo uma vasta área de preocupações. Em todos eles, porém, está presente não apenas o escritor mas o cidadão envolvido com os problemas do seu tempo. (...) 

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Imagem: daqui

quarta-feira, 21 de março de 2018

Tabacaria

Não sou nada.



Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 


Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é 
(E se soubessem quem é, o que saberiam?), 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, 
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, 
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, 
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. 


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. 
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça, 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. 


Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. 
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. 


Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?



 Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Génio? Neste momento 
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim... 
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? 
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, 
E quem sabe se realizáveis, 
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? 
O mundo é para quem nasce para o conquistar 
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. 
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, 
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, 
Ainda que não more nela; 
Serei sempre o que não nasceu para isso; 
Serei sempre só o que tinha qualidades; 
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta 
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 
E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 
Crer em mim? Não, nem em nada. 
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 
Escravos cardíacos das estrelas, 
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 
Mas acordámos e ele é opaco, 
Levantámo-nos e ele é alheio, 
Saímos de casa e ele é a terra inteira, 
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. 





(Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, 
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) 


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 
A caligrafia rápida destes versos, 
Pórtico partido para o Impossível. 
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, 
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro 
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, 
E fico em casa sem camisa. 


(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, 
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, 
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, 
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, 
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, 
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -, 
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! 
Meu coração é um balde despejado. 
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco 
A mim mesmo e não encontro nada. 
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, 
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, 
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) 


Vivi, estudei, amei, e até cri, 
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. 
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses 
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); 
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo 
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente. 


Fiz de mim o que não soube, 
E o que podia fazer de mim não o fiz. 
O dominó que vesti era errado. 
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. 
Quando quis tirar a máscara, 
Estava pegada à cara. 
Quando a tirei e me vi ao espelho, 
Já tinha envelhecido. 
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. 
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário 
Como um cão tolerado pela gerência 
Por ser inofensivo 
E vou escrever esta história para provar que sou sublime. 


Essência musical dos meus versos inúteis, 
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, 
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, 
Calcando aos pés a consciência de estar existindo, 
Como um tapete em que um bêbado tropeça 
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. 




Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada 
E com o desconforto da alma mal-entendendo. 
Ele morrerá e eu morrerei. 
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. 
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. 
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, 
E a língua em que foram escritos os versos. 
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente 
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, 
Sempre uma coisa defronte da outra, 
Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 
Sempre o impossível tão estúpido como o real, 
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, 
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. 


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), 
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 
Semiergo-me enérgico, convencido, humano, 
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. 

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los 
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. 
Sigo o fumo como uma rota própria, 
E gozo, num momento sensitivo e competente, 
A libertação de todas as especulações 
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. 


Depois deito-me para trás na cadeira 
E continuo fumando. 
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. 


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.) 
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. 



O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). 
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. 
(O dono da Tabacaria chegou à porta.) 
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. 
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu. 





Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


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Poema: Citador
Imagens: Pixabay 

quinta-feira, 15 de março de 2018

No fundo aberto

Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge
e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso
como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha.
Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho, 
sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores.
Estamos na aurícula do coração do mundo.
O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra.
Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar
e é a felicidade da língua vegetal
ou a cabeça leve que se inclina para o oriente.
Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue
e um harmonioso astro se eleva como uma espádua fulgurante
enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os lábios.

António Ramos Rosa
   (1924-2013)

in: Facilidade do Ar
pg
. 53





(...)


Tudo isso desencadeia um efeito de evidência muito próprio desta poesia que, na minha opinião, tem vindo a evoluir na direcção de uma transparência que a tem feito ultrapassar o que seria uma dimensão meramente descritiva, para mergulhar numa dimensão de conhecimento do mundo.
(...)

Fernando Pinto do Amaral


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Imagem: Desenho de António Ramos Rosa - aqui

sexta-feira, 9 de março de 2018

Momento

Em repouso, em ensimesmada indolência
cai a folha. A mão nupcial
desliza no ócio azul em ágeis graças
ou lentas cortesias. Um desenlace de matizes
no fundo da água e no fundo da retina.
Tantos tesouros líquidos, tanta minúcia imensa!
Tudo aqui nega o caos desde as raízes à cúpula
em transparência de clara primavera.
O ar é a ligeireza de um animal
que refresca os mais íntimos bosques
com a diafaneidade alegre das suas veias.

António Ramos Rosa
   (1924-2013)

in: Facilidade do Ar
pg
.42




(...)

Estamos, portanto, em presença de um autor que persegue palavras sempre ditas pela primeira vez, palavras inaugurais, que nos são oferecidas como uma espécie de promessa que permanece suspensa no limiar de si mesma e no horizonte de sentido que nos comunica. (...)

Fernando Pinto do Amaral


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Imagem: Desenho de António Ramos - aqui 

quinta-feira, 8 de março de 2018

Percepções





Viu o castelo desmoronar-se à sua frente. Ouviu e sentiu tremer as fundações. O estrondo foi imenso restando apenas pó e pedras sobre pedras. Estas, ganhando vida gemiam desorientadas e procuravam maneira de se porem de pé. Com dificuldade, atarantadas ainda pelo baque, foram galgando a pulso e desafiando a gravidade. Com esforço, inventaram o barro necessário para se fixarem umas em cima das outras, desalinhadas embora. Faltava o fio de prumo. Ou já não se usa?-perguntaram-se. Talvez um nível laser, mas difícil ou talvez impossível arranjar um, assim do pé para a mão. Sentiu que aquilo lhe dizia respeito. Não podia deixar as coisas ao acaso. Tinha de fazer algo, tinha de se decidir. Estava na hora de resolver e afugentar tal fardo. Aquele edifício rombo, à mercê de intempéries, ao sabor do que viesse, atingia-a sobremaneira. Reunindo as últimas forças, chamou a si a sua própria verticalidade. Do fundo do seu ser, faria surgir energia suficiente para se reconstruir a si mesma e ao seu mundo. 
Desafiou-se: 
Basta de incertezas e dependências. Agora é o momento. 
Agora é o presente e o futuro. 
E sorriu, confiante.

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O dia cobre-se de pássaros
que sobrevoam quotidianas ficções.
No meu país, as mulheres têm a cor
da sede nos seus olhos, ávidos de milagres.
É por isso que as mãos lhes estremecem de prazer.


GRAÇA PIRES


Um belo poema que a Querida Graça me trouxe hoje.

Muito obrigada

Bj
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Do blogue: Um Farol chamado Amizade



Dia da Mulher 2018


M adre, hija, hermana eres todo en la vida...
U nica como ninguna!
J oya entre las joyas más preciosa!
E norme eres por todo lo que haces por amor.
R eaccionas siempre por lo mejor contra las injusticias.



M ulher, filha, mãe, és tudo na vida...
U nica como nenhuma!
L uz entre as luzes mais brilhantes!
H armoniosa!
E norme és por tudo o que fazes por amor.

R eagindo sempre da melhor forma contra as injustiças da vida.



Obrigada, Tétis, Poseidón e Argos.

Abraços

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Imagem: daqui

terça-feira, 6 de março de 2018

A fusão libertadora

Que doce e profunda é a água
quando
a luz e a sombra se reúnem.
Uma serena alegria
levanta o corpo em redonda doação.
Chegámos a este oiro incandescente,
deus e demónio em interna unidade,
que já não lutam e se abraçam
no círculo da vida libertada.
Todos os astros numa só constelação
tanta melodia e ritmo e graça
nas palavras, nos corpos e nas ondas
e todas as flores em fruto
e todo o corpo no seu livre dinamismo.

António Ramos Rosa
   (1924-2013)

in: Facilidade do Ar
pg.14







(...)


Esse o permanente enigma desta escrita, essa a permanente interrogação que se ergue na soberania tão luminosa dos seus "acordes". Ao tentar responder-lhe, poderíamos falar no amor, no desejo ou simplesmente nessa divindade  obscura e imediata que se confunde com a matéria e com a energia que a sustenta. Mas o essencial será mantermo-nos atentos ao sábio ardor da sua voz, a essa verdade tão sua mas tão ao nosso alcance, sempre condensada em cada uma das suas muitas "lições materiais".

Fernando Pinto do Amaral

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Imagem: Desenho de António Ramos Rosa : aqui

segunda-feira, 5 de março de 2018

Passagem

Será uma breve passagem entre a cinza e o vento.
Uma suave tentativa, um ligeiro sopro
às portas do silêncio. Uma perda
de tudo, do próprio sentido e do desejo.
Ser nada mas habitar o instante e os seus murmúrios
na infinita dispersão. Entre ruínas,
nos confins de uma terra acinzentada
em que as nuvens e as árvores se confundem,
tudo tem sabor a destino e a princípio,
a plenitude ou nada. E a palavra vibra
silenciosa, unânime, quase ébria
de um deus vegetal entre cigarras.
O mar cintila já. O exílio quase cessa.
O que é breve perdura em grávida leveza.

António Ramos Rosa
   (1924-2013)

in: Facilidade do Ar
pg.8





(...)
O que mais nos toca nesta belíssima poesia não ocorre, assim, ao nível de qualquer pendor confessional, mas sim graças à sua ideia de atingir um conhecimento ignorante: condenado à imanência (e à iminência) de uma fala que detém o poder de nomear, mas que se sabe efêmera, o poeta procura ligar o "deserto" ao "oásis", difundindo  a sua subjectividade por cada ínfima partilha do real, já que o sentido do mundo se encontra em todos os lugares e em lugar nenhum. (...)

Fernando Pinto do Amaral

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Imagem: Desenho de António Ramos Rosa - aqui

domingo, 4 de março de 2018

Mumadona Dias e Vimaranes

Mumadona ou Dona Muma. Quem sabe? Ainda se pesam possibilidades quanto ao seu verdadeiro nome. Também em relação às datas do seu nascimento e da sua morte parece não haver certezas. O que eu sei de certeza é que já a conheço há muitos e muitos anos. Sinto que somos quase da mesma idade. Sem razão nenhuma, tive sempre a sensação de que teríamos algo em comum. Mas não consigo encontrar esse ponto. Loucura minha, está-se mesmo a ver. 

Consta que era a mulher mais rica e poderosa do noroeste peninsular, filha dos condes Diogo/Diego Fernandes e Onega/Onecca, primos dos Reis de Leão. O que eu não compreendia era por que motivo ela tem o apelido "Dias/Diaz" e não Fernandes do pai ou Gonçalves do marido. Mas, posteriormente, descobri que naqueles tempos as regras quanto a apelidos eram diferentes. Em espanhol: Dias/Diaz significa filho de Diogo/Diego.


A imagem que mais a identifica foi idealizada e esculpida por Álvaro de Brée. Perseguindo pressupostos históricos ou lendários, Mumadona teria de ser "formosa e firme e determinada, sustentando na mão esquerda o castelo que significa Guimarães e o documento que lhe deu forma e vida; a direita segura a Cruz. Ergue-se na praça que tem seu nome, donde ela contempla os sítios do seu mosteiro e agora da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira".*

Um dos acontecimentos que parece ser mais ou menos datado na vida desta Condessa é o do seu casamento com Hermenegildo (ou Mendo) Gonçalves que teria sido entre 915 e 920 e antes de Fevereiro de 926. Por morte do marido (950) dividiria os seus bens e domínios pelos seus seis filhos. É importante referir que um deles, Gonçalo Mendes, penso que o primogénito, viria a ser o dux magnus do nosso território e tronco dos condes portugalenses por seu filho Mendo Gonçalves.

Mas, o que interessa agora para este meu texto é o seguinte: o mosteiro que Mumadona mandara edificar e os povoados circundantes precisavam de ser defendidos das hordas de assaltantes que assolavam as suas terras. Júlio Gil explica isso assim: "Exércitos de muçulmanos vinham do Sul; bandos de vikings, piratas destros no mar e na guerra, saltavam nas praias ou rios dentro a matar, pilhar, destruir, arrastar cativos. Após um desses assaltos de "gentios", julga-se que nórdicos, Mumadona apressou a construção de castelo protector do mosteiro e refúgio de indefesos." 

Realmente, tempos complicados.



E sobre fraguedos, no outeiro do Monte Latito, Mumadona Dias manda erguer simples torre e precária muralha. O objectivo estava cumprido. Com o andar dos tempos foi tendo acrescentos e alterações até, provavelmente, ao reinado de D. João I. Contudo, "no século passado (XIX) a Câmara Municipal despachou da muralha e do próprio castelo muito granito para obras locais (calçadas e outras), chegando em 1836 um dos vereadores a propor o total arrasamento do castelo e o aproveitamento da silharia na pavimentação de arruamentos. Salvámo-nos por um voto..."



Felizmente, o nosso Castelo continua de pé e, penso, de boa saúde. Temos ainda que D. Afonso Henriques terá nascido em Guimarães local onde Vímara Peres, conde e presor do Porto e bisavô de Mumadona, fundara a localidade de Vimaranes, e onde ela se fixara. Outros dizem que o nosso primeiro rei teria nascido em Viseu. Mas, isso não interessa nada. O que nos interessa é que Guimarães é tida como a nossa Cidade-Berço. O Berço da nossa Nacionalidade. 

E hoje, terá lugar nessa bela e histórica cidade um evento que alguns considerariam menor. Mas não. Quem a escolheu terá tido isso em mente, ou seja, é nosso dever prestigiar os lugares que fazem a nossa história. Mitos, lendas e História de mãos dadas. Gosto. 




Rectificação do:


A nossa Condessa não tem vista sobre a Igreja da Oliveira e, que eu saiba, nunca teve. Está junto do tribunal, num largo grande com vista para o Paço dos Duques. E é tão digna e fidalga como a descreve.
Um dia tem que (nos) vir visitar.
Beijinho
Ruthia d'O Berço do Mundo

    Muito obrigada, querida Ruthia, pela sua preciosa participação.
    Beijinhos
    Olinda

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NOTA

A Ruthia tem razão quanto à localização actual da estátua de Mumadona Dias. Na imagem vemos perfeitamente o edifício da domvs ivstitiae por trás da estátua. Mas não foi sempre assim. A estátua já esteve noutro sítio.

Passo a transcrever, na íntegra, a passagem que deu azo às minhas afirmações, resumidas, no início desta publicação:
Erguida na praça que tem seu nome, próximo e a sul da colina que chamavam Monte Largo, onde era a velha vila Araduca e é chão do Castelo, da Igreja de São Miguel e do Paço Ducal, a idealizada figura de Mumadona contempla os sitios do seu mosteiro e agora da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, e mais a ampla cidade baixa e os jardins e as quintas que sobem o monte da Penha dando escala e mais beleza a uma das mais belas paisagens da nossa terra.


Esta foto, sem qualidade nenhuma, que tirei com o meu telemóvel à página 47 da primeira fonte, abaixo indicada, tem esta legenda:

Estátua da Condessa Mumadona - ao fundo o grandioso Paço Ducal mandado construir por D. Afonso 1º Duque de Bragança.


Aqui vê-se a estátua com mais nitidez, embora o Palácio Ducal não esteja à vista (estará mais acima)

Como se pode verificar, uma imagem completamente diferente da que se vê junto ao Palácio da Justiça. E com razão de ser. A estátua foi deslocada para o recinto actual em 2004 ou, pelo menos, a deslocação foi projectada nessa altura.

Com efeito lê-se AQUI

A estátua da Mumadona vai ser deslocada para o passeio que contorna o Tribunal Judicial de Guimarães. A emblemática representação ficará colocada frente ao escadario que dá acesso ao interior do edifício judicial.
o projecto da obra de reconversão do espaço consta ainda uma passagem subterrânea que ligará o Largo da Mumadona à Colina Sagrada.
A notícia faz manchete na edição de hoje do jornal O Comércio de Guimarães. O projecto tem a assinatura de Siza Vieira e deverá avançar 
entre os meses de Agosto e Setembro.

Também concordo com a Ruthia num outro ponto. Tenho de ir a Guimarães para uma demorada visita. Já lá não vou há muito tempo. E tenho saudades.

Abraço



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Fontes:
*-As mais belas Cidades de Portugal, pg 42-Texto de Júlio Gil, Fotografia de Nuno Calvet - Editorial Verbo- 1995
**-Os mais belos Castelos de Portugal - Guimarães- pag. 33 e 34 - Texto de Júlio Gil e Fotografia de Augusto Cabrita, 3ª Edição Editorial Verbo
-Dicionário de História de Portugal-IV, pg 357, de Joel Serrão -Livraria Figueirinhas - Porto

Testamento de Mumadona Dias
 Património

2ª Imagem - daqui
3ª imagem - daqui

quinta-feira, 1 de março de 2018

bordando os dias (VI)






Terminei a minha obra. Gosto dela. Embora não seja uma especialista em bordados tudo nela faz sentido e o mais importante é que traduz um pouco o que sentia quando a fiz. Agora vou fazer-lhe um picô. Confesso que não sei muitos pontos de picô. Assim, vou fazer o mesmo de sempre com pequenas alterações. Penso sempre em aprender mais alguma coisa mas deixo para depois. Algum dia há-de ser. Quanto ao crochet propriamente dito sei fazer alguns pontos mas não vario muito. A minha mãe é que tinha umas mãos de fada. Houve uma altura em que me fez alguns jogos de renda para o meu enxoval. Trabalho de minúcia, com linha finíssima. Eu, na minha inconsciência de pessoa jovem, resolvi ofertar com eles a algumas pessoas, num Natal, inclusivamente à minha madrinha de baptismo. Nunca lhe ouvi uma palavra de reprimenda. Durante muitos anos não achei falta de amor e ingratidão o que fiz. Mas com o tempo comecei a sentir-me mal com isso. 
Oh!Vem aí a minha amiga:
-Bom dia, vizinha. Vejo que já acabou o paninho.
-É verdade, Dª Maria, estou a acabá-lo. 
-E que bonito que está! Olhe, passei pela Caixa, trago-lhe a reforma. 
-Ah, muito obrigada. Sempre muito prestável. 
-Não me custa nada. A vizinha, com esse joelho assim, não tem saído muito, não é? O que tem feito para se entreter?
- Vou bordando os dias, Dª Maria. Bordando os dias.

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Imagem: daqui