sábado, 28 de abril de 2012

Deus já foi mulher

Li algures que a primeira frase ou frases agarram o leitor levando-o a querer saber o que vem a seguir, num livro. É o que acontece com 'Deus já foi mulher' a primeiríssima frase, segundo penso, do último romance de Mia Couto, A Confissão da Leoa, cujos primeiros parágrafos o Bibliotecário de Babel publicou ontem. Um excelente incentivo para lermos o livro de uma assentada.

Primeiros parágrafos
«Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar.
Talvez por essa razão a minha mãe, Hanifa Assulua, não tenha parado de contemplar as nuvens durante o enterro da sua filha mais velha. A minha irmã, Silência, foi a última vítima dos leões que, desde há algumas semanas, atormentam a nossa povoação.
Porque morreu desfigurada, deitaram o que lhe sobrava do corpo sobre o lado esquerdo, com a cabeça virada para o Nascente e os pés virados para Sul. Durante a cerimónia, a mãe parecia dançar: vezes sem conta ela se inclinou sobre um cântaro feito por suas próprias mãos. Aspergiu água sobre a terra em volta que, depois, calcou com ambos os pés, com o mesmo embalo de quem semeia.»
[in A Confissão da Leoa, de Mia Couto, Caminho, 2012]
Boa leitura a quem se decidir a passar uns bons momentos na companhia de mais este romance de Mia Couto !  Quanto a mim vou fazer por isso.

Bom fim de semana.  :)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Hoje é dia de festa?

É, sim senhor. Basta pensarmos no quanto ganhámos num dia como este há trinta e oito anos. Basta pensar que eu não estaria aqui a escrever estas palavras ou outras quaisquer, a colocar questões e a reivindicar direitos. Tenho liberdade para isso. Então, ocorre que hoje é, ou deveria ser, dia de estralejar de foguetes, de música, de dança, nos jardins, nas praças, nas ruas, sem peias,  de forma espontânea. Riso nos rostos e alegria no coração, independentemente da crise e dos nossos diferendos. Também dia de festa no ambiente circunspecto do Parlamento, recinto representativo da nossa liberdade plural, a que terá faltado um certo calor, tendo em conta uma comemoração como esta. Ouve-se dizer que as palavras são sempre as mesmas. E se forem sempre as mesmas, qual o mal? Talvez assim se cimentem bem no nosso íntimo e nos convençamos da nossa sorte, a sorte de podermos discutir e de fazer escolhas. Com símbolos como o cravo, distribuído, num gesto espontâneo e feliz, e colocado no cano de uma espingarda, ecos de canções como 'e depois do adeus' e 'grândola vila morena' que serviram de senhas e nos ficaram nos ouvidos para sempre, de que precisamos mais? Inspiração e Liberdade temos. Resta aproveitá-las e construir a nossa felicidade. Um sonho? Seja... o sonho comanda a vida.


Dez reis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.


António Gedeão

segunda-feira, 23 de abril de 2012

...de todas as horas

Ao meu lado, sempre. Mesmo agora, no comboio, olho-o com interesse e vislumbro nele uma visão da vida completamente nova, com um travo algo absurdo, porém, completamente exequível no âmbito de grandes lucubrações filosóficas. 
L'âme, dit-il, contrairement à ce que tu crois, l´âme est extérieure; elle enveloppe et imprègne le corps, et comme un fluide enveloppe la matière, chez certains hommes l'âme peut devenir visible, l'air qui les entoure se colorer. Il est des êtres dont l'âme est une exhalation continue, dont l'âme est d'une sensibilité extrême: ils sentent en eux l'univers entier. C'est de là aussi que naissent des sympathies subites, lorsque deux âmes viennent à se toucher, avant même que la matière soit contact.
Fico por momentos pensativa. Sinto-o aqui, acompanhante solícito, figura omnipresente a indicar-me caminhos por desbravar. Faço-lhe um afago e sorrio-lhe agradecida. Através da janela, vejo as árvores a passarem em sentido contrário, sugerindo-me um quase regresso ao passado. Parece que me lê no olhar alguma saudade do tempo em que, ainda menina, adolescente, tateava as primeiras descobertas e ensaiava os tons e os sons de um mundo em constante  mutação. Um mundo em que, pela sua mão, ia ultrapassando os obstáculos normais de uma alma sedenta de conhecimento, colocando tantas questões... Com voz doce, segreda-me: 
Cette âme, cette âme immense qui voyage de monde en monde, et qui recrée le printemps en chaque être, cette âme est tout. Le reste est insignifiant. C'est elle qui nous dévore, qui fait de la mort la vie, et de la vie la mort.
Coloco-o no regaço, mas ainda assim volto a folheá-lo, vejo-lhe a capa, a lombada, o título, a edição, nem sempre apresenta o mesmo aspecto físico, mas é sempre ele, o livro, o meu amigo de todas as horas.


Nota: Em itálico, passagens de Humus, Raúl Brandão, pgs. 20 e 22.Traduction du portugais et préface de Françoise Laye. Fondation Calouste Gulbenkian.     

sábado, 21 de abril de 2012

Os Azeitonas





Mulher sabes o quanto te amo...Um dia levo-te à América...Um dia levo-te à lua...

Ouvi esta canção há dias. Gostei. Desejo-vos um óptimo sábado.

Ora, cantem com os Azeitonas e...comigo:

Anda comigo ver os aviões 
Levantar voo, 
A rasgar as nuvens, 
Rasgar o céu. 

Anda comigo ao porto de Leixões 
Ver os navios 
A levantar ferro, 
Rasgar o mar. 

Um dia eu ganho a lotaria, 
Ou faço uma magia, 
Mas que eu morra aqui. 
Mulher tu sabes o quanto eu te amo, 
O quanto eu gosto de ti. 
E que eu morra aqui 
Se um dia que não te levo à América 
Nem que eu leve a América até ti. 

Anda comigo ver os automóveis, 
A avenida, 
A rasgar as curvas, 
Queimar pneus. 

Um dia vamos ver os foguetões levantar voo, 
A rasgar as nuvens, 
Rasgar o céu. 

Um dia eu ganho o totobola, 
Ou pego na pistola, 
Mas que eu morra aqui. 
Mulher tu sabes o quanto eu te amo, 
O quanto eu gosto de ti. 
E que eu morra aqui 
Se um dia eu não te levo à lua 
Nem que eu roube a lua só p'ra ti. 

Um dia eu ganho o totobola, 
Ou pego na pistola, 
Mas que eu morra aqui. 
Mulher tu sabes o quanto eu te amo, 
O quanto eu gosto de ti. 
E que eu morra aqui 
Se um dia que não te levo à América 
Nem que eu leve a América até ti.
 


Letra e video
Retirados da Internet

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Libertação através da cultura

Um povo deve apropriar-se da sua cultura e fazer dela o seu estandarte. Revolver a terra à procura dos valores da sua ascendência e beber as ideias emanadas desde o princípio dos tempos. Despir-se de roupagens culturais trazidas pelo opressor numa assimilação imposta e eliminar em si próprio todos os resquícios externos fazendo nascer um homem novo. Amílcar Cabral acreditava neste paradigma, não propriamente com estas palavras, mas de forma sistemática e com uma fundamentação político-filosófica de mestre.
Qual a realidade geográfica e mental que ele tinha em vista? Pergunta retórica... Era a Guiné e, paradoxalmente, unido a Cabo Verde. Espaços geográficos diferentes e mentalidades diferentes e já com desinteligências no terreno de quase-séculos. Mas não é aqui que reside o propósito desta reflexão. É dentro da própria Guiné onde existia uma grande diversidade de povos, com as suas diferenças e as suas querelas ancestrais (R.Pélissier). Onde seria necessário encontrar um denominador comum que servisse de elo, numa noção de corpo e de nação trilhando os mesmos caminhos. Tê-lo-á descoberto Cabral? Talvez. Contudo, sabemos que ele não pôde consolidar e pôr em prática as suas ideias. Um tempo que lhe foi roubado.
Hoje sentimo-nos perplexos perante a instabilidade na Guiné-Bissau. Ali, todas as situações são consideradas de ruptura, não prevalecendo o diálogo e a procura do caminho ideal para que o país possa prosseguir em paz. Fazem-se perguntas. Apontam-se motivos. Soluções, não se vislumbram.
Voltando a Cabral, mas com a adaptação necessária a estes tempos, há que dar pequenos passos, indo buscar ao passado elementos culturais válidos, como o amor arreigado à terra, no sentido de serem ultrapassadas as diferenças para a construção do país com o contributo de todos.
Li num jornal, há uns dois dias, que, em Bissau, os rapazes mais velhos, perante a falência de um outro modelo, transmitem aos mais novos o 'a,e,i,o,u', reunindo-se para isso debaixo de uma mangueira. E eles dão-lhe um nome:'escola bas di pe di mango'. Só interrompem quando a isso são obrigados pelo barulho das armas. Mas o sonho não morre, diz o articulista.
O povo que sofre já está a dar o exemplo.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Ó da barca!!!

Gil Vicente é daqueles autores cujos escritos atravessam os tempos. Aproveita-os para criticar a sociedade da época o que, mutantis mutandis, se poderia aplicar à sociedade de hoje. O Auto da Barca da Glória  talvez seja das mais representativas da sua concepção, aparentemente maniqueísta, do mundo. Composto de duas barcas que representam alegoricamente o Paraíso e o Inferno, o diabo vai fazendo acusações reclamando que a morte só lhe traz gente pobre e humilde enquanto os ricos e honrados não aparecem. Estes por ordem hierárquica ascendente, vão se apresentando, (o conde, o duque, o rei, o imperador, o cardeal, o arcebispo, o papa) e porque têm responsabilidades na gestão civil e espiritual das gentes, conforme as suas acções, assim estariam destinados a uma das barcas.
Nenhum deles passa no crivo apertado da balança que julga o bem e o mal.Todos eles vêem as suas acções dissecadas, as suas omissões postas a nu, os seus pecados publicitados, todos são acusados de não cumprirem o dever, a missão, para que foram destinados. Mas contra tudo o que seria de esperar, a barca do Paraíso acaba por ficar sobrelotada com estas personagens ou personalidades, apesar da má gestão, no mínimo, das responsabilidades que lhes foram cometidas. E a barca do inferno, com o diabo como timoneiro, mesmo ali, à espera de fazer a travessia com esta carga preciosa. Mas, à ultima hora são todos perdoados, e mais, essa culpa é lavada pela intervenção directa de Cristo através do Anjo que desfralda uma vela onde se encontra pintado um crucifixo, como chancela desse desidério. 
Então, é aqui precisamente que cai por terra o que se entrevê mais acima: crítico de todos os tipos sociais e de comportamentos, Gil Vicente parece fugir à postura moralista assumida nos autos das barcas do inferno e do purgatório, onde premeia o bem e castiga o mal, à revelia do moralismo apregoado. 
Talvez seja um acto premonitório, fatalidade que atravessaria os tempos e com a qual teremos de viver, numa óptica determinística. Ontem como hoje, parece existir uma inimputabilidade quase inata, aceite de forma tácita por quem teria a responsabilidade no apuramento dos factos e falhas na gestão da coisa pública, situação que nos leva paulatinamente para o abismo de forma irremediável. E, segundo tudo indica, quanto a isto não há remédio... 




Imagem: Internet

A espantosa realidade das coisas


A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais, naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro

Esboço de Cristiano Sardinha


In 'Poemas Inconjuntos'
Imagem:Net

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Concurso Conto Infantil - Prémio Matilde Rosa Araújo

Publiquei aqui, em tempos, um poema de Matilde Rosa Araújo, intitulado Saber Ler na Vida. Talvez por isso me tenha chamado a atenção um Concurso do Conto Infantil promovido pela Câmara Municipal da Trofa de parceria com o Instituto Camões e cujo prazo, para a entrega dos trabalhos, termina no próximo dia 21 de Abril. Este concurso tem a particularidade de se destinar a todo o espaço lusófono, com o propósito de desenvolver entre os povos, o amor à língua portuguesa, fomentar a escrita criativa, impulsionar a expressão literária e, ao mesmo tempo, divulgar os autores.


Mãos à obra, meus amigos.

Entretanto, mais um poema de Matilde Rosa Araújo, como inspiração.

Arco-Íris

— Disseram-me que o Amor era azul. 
E, minha Mãe, eu hei-de amar! 
Disseram-me que o amor era vermelho. 
E, minha Mãe, eu hei-de amar! 
Disseram-me que o Amor era violeta. 
E, minha Mãe, eu hei-de amar! 
Disseram-me que o Amor era violeta. 
E, minha Mãe, eu hei-de amar!
E verde é a minha esperança! 
E se eu chorar, minha Mãe? 
— Dou-te um lencinho de branca nuvem 
E enxugas as lágrimas.

In: O Cantar da Tila - poemas para a juventude

Antes que o rio seque

O Cerejo, o castanho: os limites da 
agricultura para os hemisférios
da fome e da fartura.
No cerejo os frutos bravos, muitas aves,
à mão colhidos;
os dias vastos,
a morna sobrevivência.
No castanho as horas graves,
o sustento coado de raízes.
Eis o que os meses
de seu saco têm para dar.
Baça agricultura, lenta
(sob promessa, mas
tão lenta) divisão.

A.M.Pires Cabral
(1941)

Antes que o rio seque - Poemário 2012                                                                                                        

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Viver é...

Hoje, partilho convosco este texto de Joaquim Pessoa, no qual o autor procura definir o que é viver... O ritmo, o movimento que ele imprime às palavras deixa-nos entrever esta policromia imensa que é a vida, passível de muitas interpretações, dependendo muito da forma como a visionamos. Eu... gosto desta sua visão:


Viver é uma peripécia. Um dever, um afazer, um prazer, um susto, uma cambalhota. Entre o ânimo e o desânimo, um entusiasmo ora doce, ora dinâmico e agressivo. 
Viver não é cumprir nenhum destino, não é ser empurrado ou rasteirado pela sorte. Ou pelo azar. Ou por Deus, que também tem a sua vida. Viver é ter fome. Fome de tudo. De aventura e de amor, de sucesso e de comemoração de cada um dos dias que se podem partilhar com os outros. Viver é não estar quieto, nem conformado, nem ficar ansiosamente à espera. 
Viver é romper, rasgar, repetir com criatividade. A vida não é fácil, nem justa, e não dá para a comparar a nossa com a de ninguém. De um dia para o outro ela muda, muda-nos, faz-nos ver e sentir o que não víamos nem sentíamos antes e, possivelmente, o que não veremos nem sentiremos mais tarde. 
Viver é observar, fixar, transformar. Experimentar mudanças. E ensinar, acompanhar, aprendendo sempre. A vida é uma sala de aula onde todos somos professores, onde todos somos alunos. Viver é sempre uma ocasião especial. Uma dádiva de nós para nós mesmos. Os milagres que nos acontecem têm sempre uma impressão digital. A vida é um espaço e um tempo maravilhosos mas não se contenta com a contemplação. Ela exige reflexão. E exige soluções. 
A vida é exigente porque é generosa. É dura porque é terna. É amarga porque é doce. É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais séria das coisas divertidas. 

Joaquim Pessoa

in 'Ano Comum'