sexta-feira, 31 de maio de 2019

Camões e Álvaro de Campos - sob o olhar de um Poeta dos nossos dias


Ta muda tenpus, ta muda vontadi,
Ta muda ser, ta muda konfiansa;
Tudu mundu é fetu di mudansa
Ta toma senpri nobus kolidadi.

Sen nunka para nu ta odja nobidadi,
Diferenti na tudu di speransa;
Máguas di mal ta fika na lenbransa
I di ben, si izisti algun, ta fica sodadi.

Tenpu ta poi berdi na txon dja stara,
Ael ki nevi friu kubriba pa tudu kantu.
I, na mi, ta bira txoru kel ki n kantaba

Ku dosura. I, trandu es muda sen para,
Otu mudansa ta kontise ku más spantu,
Ki dja ka ta mudadu sima kustumaba...



José Luiz Tavares, admiro este seu trabalho, hercúleo, diria. Confesso que ao ler os dois sonetos de Camões e, em especial, a sua Odi Marítmu*, quase que me apetecia bater com a cabeça na parede, pelas dificuldades que senti.

Mas, vi, claramente visto, a imagem sugerida nas suas palavras, expressas em crioulo, e emocionei-me.

E, nesse tudu kais é un sodadi di pedra, Álvaro de Campos, voluntarioso como só ele, que em toda a Ode grita e berra, não poupando em palavras, poderia ser um ilhéu no sentimento que empresta ao que se segue; e com ele, José Luiz Tavares:

Ah, tudu kais é un sodadi di pedra!
I ora ki naviu ta sai di kais
I di rapenti ta odjadu ma abri un spasu
Entri kais ku naviu
Un angústia risenti, n ka sabe pamodi, ta toma na mi,
Un nébua di sentimentus di tristeza
Ki na sol di nhas angústia relvadu ta brilia
Sima purmeru janela undi madrugada ta konko,
I ta envolve-m sima rakordason dotu algen
Ki, misteriozamenti, é propi mi.

Será este o Crioulo, escrito, que desejamos? Não há dúvida que é uma escrita que fia mais fino. Marcadamente de base lexical de Santiago, penso, longe das falas doces de Eugénio Tavares nas suas mornas, Brava, e do pioneirismo de Baltasar Lopes da Silva, que no seu trabalho de grande fôlego, nos explica todos os sons, todas as letras e, praticamente, quase todas as palavras de cada uma das ilhas.

Penso ter adivinhado, na tradução, uma preocupação científica e alguns dos pressupostos do ALUPEC, com dígrafos que sempre me deixaram um pouco perplexa na formação de algumas palavras, como, por exemplo, txon em vez de tchon. Enfim, por algum lado se tem de começar.

Gostaria de ver Manuel Veiga, Alice Matos, Dulce Almada Duarte e muitos outros linguistas, que constituíram o Grupo de Padronização da Língua Cabo-Verdiana, outra vez em campo, se é que não estão já. A legislação produzida em 1998 e 2005 sobre o assunto terá tido seguimento? Ao fim e ao cabo, a decisão terá de ser política, se levarmos em linha de conta a alegada glotofagia de uns crioulos em relação a outros. 

Ou, no final, a palavra será dada, exclusivamente, aos linguistas?



NHA TESTAMENTO
ILDO LOBO: numa das suas mornas mais belas. Que saudades!

Em tempo:

Com a indicação, abaixo, do D.L. 7/2009, de 17 de Março, parece fechado o assunto. Transcrevo a seguinte passagem:

1. O Alfabeto Unificado para a Escrita da Língua Cabo-verdiana (ALUPEC), aprovado, em regime experimental, pelo Decreto-Lei nº 67/98, de 31 de Dezembro, é instituído como Alfabeto Cabo-verdiano.

Assim sendo, por que razão cada um continua a escrever o crioulo à sua moda, muitas vezes  de forma ininteligível?

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Fontes referenciadas:

-*Odi Marítmu - pa Santa Rita Pintor-Tradução de José Luiz Tavares para crioulo de excertos da "Ode Marítima, de Álvaro de Campos, e de dois sonetos de Camões. Ler - inverno 2017/2018

-O Dialecto Crioulo de Cabo Verde (1958) - Baltasar Lopes da Silva

-ALUPEC - Alfabeto Unificado para a
Escrita do Cabo-Verdiano

-Decreto-Lei 67/98, de 31 de Dezembro - aqui
Resolução nº 48/2005, de 14 de Novembro - aqui

-Decreto-Lei nº 7/2009, de 16 de Março - aqui
Traça o historial do crioulo cabo-verdiano, enaltece o uso do Alupec em escolas e por várias entidades e, entre outros considerandos:
1. Que o ALUPEC é um instrumento útil e funcional para a escrita na língua cabo-verdiana;
2. Que se deve criar incentivos para a escrita do ALUPEC;
3. Que se deve criar um Instituto Autónomo ou uma Academia para se ocupar da problemática da língua cabo-verdiana. (...)

8 comentários:

  1. E eu sem saber nada sobre o crioulo, aliás nunca o tinha visto escrito, quer dizer lido!

    Abraço

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  2. Olinda

    de grande mérito o seu na divulgação dos poetas e escritores de Cabo Verde e, de uma maneira de todos os Países da Comunidade da Língua Portuguesa.

    é sempre gratificante acrescentar saber ao pouco que sabemos e - digo-o com pena - para mim a fecundidade da literatura e da cultura dos países da CPLP tem-me passado à margem.

    apenas tenho que agradecer.

    abraço grato, amiga

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  3. Parabéns pelo blog precioso. Lindíssimo. Estou seguindo e voltarei mais vezes. Trabalho fantástico.

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  4. Um tema excelente e oportuno. Infelizmente "ainda" há muitos a escrever como lhes soa nos ouvidos e isso não edifica línguas nem dialectos.
    Parabéns pelo tema.
    Cabo Verde sempre, com identidade unificada.

    Beijo
    SOL

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  5. Conhecia o crioulo, em Luanda tive dois amigos de Cabo Verde, mas nunca o tinha visto escrito.
    Abraço e bom fim-de-semana

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  6. Não me posso pronunciar sobre este caso, porque pouco
    conheço a realidade da cultura de Cabo Verde.
    Gosto de mornas, gostei desta, aprecio as de Tito Paris,
    mas mal as percebo...
    A língua parece-me uma miscelânea de português, de língua
    autóctone e africana, porém, se faz parte da cultura dum
    povo, deveria ser estudada.
    Ótimo fim de semana, Olinda.
    Beijinhos
    ~~~~~

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  7. Gosto do crioulo, gosto MUITO das mornas. Cesária Évora ensinou-me a gostar e eu quis perceber o que ela cantava, melodiosamente. Arrasa-nos a alma da paisagem por onde a voz se estende. Ildo Lobo, realmente, seduz.

    Parabéns, querida Olinda, pela profundidade cultural da publicação.

    Meu beijo.

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