quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Janela para Oriente

Tenho uma janela amarela virada para Oriente. Docemente e sem assombro. Todos os dias me sento defronte dela para a olhar. E o vento que a bate faz-me um incêndio para escrever, desce devagar a rampa por onde vou saltar. Minha e sem fim esta natureza fresca dos seus vidros, a luz que por ela é uma magia tão puríssima. Tenho a janela num quarto que amo, unido com o sangue verde do vale que dela eu vejo, dos livros fechados em seus destinos, dos jornais aos montes e sem notícias. O ar deste quarto está de sorrisos e de surpresas, de desgostos que irão viver, cheio de lugares que ainda não sou. Oiço músicas dentro dele, caladas e brancas de repente, oiço cores incessantes e um poeta que pressinto esteja a morrer. Leio as palavras que o são. Frias. Concretas. Óbvias e desertas. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam sem dizer. Um sibilar envenenado e arrepiante, um voar rasante e precipitante. A morte desenha-lhe as mãos que daqui posso ver a tremerem. E, por isso, fica o quarto mais cinzento, mais frio, severo como a pedra de um deus.
É directo e dói o poeta, dói como um peregrino que amanhece sem dormir.

Eduardo White -Janela para Oriente - (excertos) - Caminho






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Disse atrás que iria falar, por estes dias, da Literatura da Guiné Bissau, não é verdade?

Contudo, eis-me aqui com este excerto do livro de Eduardo C. White, Janela para Oriente...

Impressiona-me a saudade que perpassa na sua escrita. E a inspiração no espaço confinado de um quarto, um ar de sorrisos e surpresas e de lugares que nunca serão. E músicas e tantas outras coisas que invadem o poeta como peregrino na transmutação de um mundo que fica cinzento e frio. 

É directo e dói...


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Escritor moçambicano, Eduardo Costley White nasceu em Quelimane (Moçambique), 1963-2014. 

Integrou um grupo literário que fundou, em 1984, a Revista Charrua. Junto a outros poetas, colaborou também com a Gazeta de Letras e Artes da Revista Tempo, publicação cuja importância, assim como Charrua, foi indiscutível para o desenvolvimento da literatura moçambicana. Por intermédio desses periódicos, afirmou-se um fazer poético intimista, caracterizado pela preocupação existencial e universalizante. aqui
Em 2001, Eduardo White foi considerado a figura literária do ano em Moçambique, e três anos depois recebeu o Prémio José Craveirinha, atribuído pela AEMO ao seu livro O Manual das Mãos. Em 1992, já recebera o Prémio Nacional de Poesia por Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave.
aqui

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1999 - Janela para Oriente, Ed. Caminho

Excerto retirado de: lugares mal situados - os meus agradecimentos
http://lusofonia.x10.mx/white.htm

Ver aqui mais livros deste autor

9 comentários:

  1. Boa tarde de paz interior, querida amiga Olinda!
    Adoro os vídeos que posta, sao bem caracterizadores de Guiné.
    Por falar em Guiné, amiga, vou enviar e-mail sobre.
    Minha janela contrata bastante com a do poeta aqui destacado.
    Ela se abre para um azul radiante e o cinza quase nunca invade meu quarto. Logo, minha sensação é de vida.
    Gostei do contraste das janelas: a dele e a minha.
    Tenha dias abençoados e felizes!
    Bjm carinhoso e fraterno

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  2. O poema é interessante, mas algo mórbido...
    Gostei de ler e ouvir sons africanos e a voz de Moçambique...
    Postagem delicada...
    Abraço, querida amiga.
    ~~~~

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  3. tudo mt bem escrito e com musica tb bonita bjs e obrigada pela vesita volte sempre

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  4. E este texto parece ter sido escrito para mim e a imagem que escolheste , querida Olinda, assenta-me na perfeição, pois o girassol é a flor que mais admiro talvez por acha-la parecida com o ser humano. No meu quarto também me refugio quando a tristeza me invade e, agora, fico lá muitas vezes olhando as fotos dos meus pais, em momentos felizes da vida dele, nas paredes, em cima da cômoda. Estou a conseguir olhá-las sem choro, pois a dor está a transformar-se numa saudade, ainda triste, mas...com o tempo, não precisarei de me fechar no quarto; com o tempo, olharei para todas as outras espalhadas pela casa e um sorriso aparecerá ao lembrar os momentos que elas representam, todos eles, momentos de grande felicidade. Obrigada, querida Amiga, pelo apoio recebido que, acredita, tem ajudado muito. Um abraço do tamanho do mundo
    Emilia

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  5. Dir-se-ia que, num ambiente tão bem ficcionado e descrito, perpassa um sopro nocturno, uma espécie negra de "saudades de futuro" que invadem o poeta "peregrino na transmutação de um mundo que fica cinzento e frio".

    ... e, no entanto, é a Oriente que nasce o Sol.

    mais um excelente escritor, amiga Olinda
    que lhe fico a dever.

    abraço

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  6. Nunca li nada do autor, mas pelo excerto dá para ver que é um bom escritor.
    Obrigado pela partilha.
    Olinda, um bom fim de semana.
    Beijo.

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  7. Poema africano de muito boa "estirpe". Som maravilha. Imagem perfeita para o tema.


    Beijo
    SOL

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  8. Estou com problemas de som, mas o som do poema é de uma magia tocante porque há uma janela voltada a Oriente.
    E como é pungente toda a outra sombra de vida que perpassa pelo quarto.
    Como dói, querida Olinda!
    Beijos.

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