sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Ilha a Ilha. Dor a dor

Concluir o post anterior "Vou-me embora para Pasárgada" ou fazer um novo mas continuando com o mesmo tema? Opto pela última hipótese, bem se vê. E digo-vos, meus amigos, que apreciei imenso os vossos esclarecidos comentários sobre este belo poema de Manuel Bandeira. Momento que pretendo reviver aqui, agora falando um pouco de Ovídio Martins e de outros poetas não menos talentosos que realizaram a ruptura com um mundo limitativo, e encontraram inspiração na Literatura brasileira.



Para já, o poema de Ovídio Martins que referi anteriormente, e dedicado a João Vário, o homem de palavras profundas que nos submergem num mar de reflexões desencontradas, como vimos no post, "Oh a maturidade não nega o que tememos".

ANTI-EVASÃO
Ao camarada poeta João Vário

Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada

Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada

Porquê este grito de rebelião? De Ovídio Martins sabemos que ele não deixa as coisas por dizer, nem as deixa a meio caminho. Assim o vemos em "O único impossível", no qual lança o repto de "mordaças a um poeta?" e ainda "Flagelados do vento leste", A nosso favor/não houve campanhas de solidariedade/não se abriram os lares para nos abrigar/e não houve braços estendidos fraternamente para nós, poema vivo, homónimo da obra de Manuel Lopes.

Detenhamo-nos aqui, com Manuel Lopes. Com ele e com Baltasar Lopes (da Silva) e Jorge Barbosa, da geração de '36. E é Baltasar que nos diz: Tínhamos um problema. Um problema que tinha de ser resolvido e, para isso, tiveram de ir beber longe a forma e o modo de o fazer. Os homens da Claridade, rompendo com o status quo vigente inauguram uma poesia de entrega e pertença, comungam da partilha da fome, da seca, do chão que se estiola a cada ano, da morte vivida a cada instante. Mas também, a par e passo, de um certo pendor evasionista. Uma tendência literária tão centrada em Pasárgada que aparece grafada como pasargadismo. Algo chamado agora, por alguns, de terra-longismo.

E Pasárgada começa a representar uma possibilidade bastante tangível mas também uma quase-obsessão, em termos literários. Se Manuel Bandeira escrevera o poema num momento de puro desânimo, segundo ele próprio, visionando esse campo dos persas como um país de delícias, para os poetas cabo-verdianos representa um lugar de evasão e demonstram-no em diversas criações. 

Baltasar Lopes da Silva (Osvaldo Alcântara), em Rapsódia da Ponta-de-Praia, na revista Claridade no qual a voz poética quer se evadir de um arquipélago colonial imerso na miséria: “Eu vou-me embora/ não vou ficar mais/ avassalado/ pelo Astral Inferior,/ vou fugir/ naquele Grange/ ou naquele suíço. Em 1986 publica Cântico da manhã futura onde insiste, em vários poemas, no tema Pasárgada.

Do mesmo modo Jorge Barbosa ao utilizar a palavra “evasão” como um desejo, reafirmava em Poema do mar, na Claridade n. 8, de Mai. 1958, os poetas claridosos e sua revista enquanto adeptos do evasionismo: “Este convite de toda a hora/ que o Mar nos faz para a evasão!/ Este desespero de querer partir/e ter de ficar”*



E deixando muito por dizer sobre essa época fecunda, foquemo-nos em Ovídio Martins que veio abalar essa estrutura, afirmando-se anti-evasionista e vendo em Pasárgada, visão querida dos poetas da velha guarda, uma forma de fugir ao que deveria ser realmente resolvido. Gerador de polémicas, obviamente. Voltaremos a ele, numa outra ocasião, para falar disso e do que o movia.

Mas, antes, guardemos em nós este verso do poema "Ilha a Ilha":

Cá vamos nós reconstruindo o país. Devagar, é certo, mas avançando. Ilha a Ilha. Dor a dor.*

Entretanto, e aproveitando a época que atravessamos, pensemos um pouco na passagem para o novo ano, de como queremos fazer a transição do velho para o novo, do que desejamos deitar para trás das costas, do que não presta, e almejar vivências novas. Também evasões, naturalmente. Sem deixar de resolver problemas de fundo ou aqueles que vão surgindo, decorrentes do nosso quotidiano, há momentos em que o nosso espírito precisa de descanso, de ser alimentado com o que cada um de nós enquadra na sua própria maneira de ser. E há todo um mundo à nossa espera, dentro de nós e lá fora.

CORNEILLE

Parce qu'on vient de loin



Bom fim-de-semana, meus amigos.

Abraços. 



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Ovídio Martins dedica "Flagelados do Vento Leste" a Manuel Lopes
e "O único Impossível" a Baltasar Lopes.
In: No Reino de Caliban, pgs 180 e 181/182, respectivamente.
Poema ora publicado: Anti-Evasão, dedicado a João Vário, pg.186

Leia, se lhe interessar:
*Ovídio Martins: Não vou para Pasárgada

Imagem de Ovídio Martins: No Reino de Caliban e Net
2ª imagem: pixabay


12 comentários:

  1. Boa noite de Oitava de Natal, querida amiga Olinda!
    Tem "evasões" salutares e para elas eu vou toda vez que julgo conveniente...
    Muitas vezes, é preciso estar em Pasargada... Atravessar e vencer o próprio eu.
    Lutando ao "dor a dor" temos uma de Santa Teresa: de claridade em claridade...
    Adoro seus posts inteligentes e reflexivos. Aprendo aqui.
    Tenha dias abençoados e felizes, amiga!
    Bjm natalino, festivo e carinhoso

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    Respostas
    1. "Todo dia é Ano Novo
      Entre a lua e as estrelas
      num sorriso de criança
      no canto dos passarinhos
      num olhar, numa esperança...


      Todo dia é ano novo
      na harmonia das cores
      na natureza esquecida
      na fresca aragem da brisa
      na própria essência da vida.

      Todo dia é ano novo
      no regato cristalino
      pequeno servo do mar
      nas ondas lavando as praias
      na clara luz do luar...

      Todo dia é ano novo
      na escuridão do infinito
      todo ponteado de estrelas
      na amplidão do universo
      no simples prazer de vê-las
      nos segredos desta vida
      no germinar da semente.
      Todo dia é ano novo
      nos movimentos da Terra
      que gira incessantemente.

      Todo dia é ano novo
      no orvalho sobre a relva
      na passarela que encanta
      no cheiro que vem da terra
      e no sol que se levanta.

      Todo dia é ano novo
      nas flores que desabrocham
      perfumando a atmosfera
      nas folhas novas que brotam
      anunciando a primavera.
      Você é capaz, é paz
      É esperança.

      Todo dia é ano novo
      no colorido mais belo
      dos olhos dos filhos seus...
      Você é paz, é Amor, a alegria de Deus.
      Não há vida sem volta
      e não há volta sem vida
      no ciclo da natureza
      neste ir e vir constante
      No broto que se renova
      na vida que segue adiante
      em quem semeia bondade
      em quem ajuda o irmão
      colhendo felicidade
      cumprindo a sua missão.

      Todo dia é Ano Novo...
      portanto...
      Feliz Ano Movo todos os próximos dias!"

      Com carinho fraterno, obrigada pelo 2019 em sua amizade Olinda.
      Tenha dias abençoados e felizes em 2020!
      Bjm carinhoso, fraterno e festivo

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  2. Excelente!
    Pretensões de fugir (ir-se embora) são patentes nos sentimentos de quem sente desilusões acerca do que o(s) rodeia(am)
    Ir ou fugir para Parságada, representa tão só a revolta pelo isolamento e solidão de Alma.
    Também se dizia que ir para Parságada seria como tomar o caminho do Paraíso.
    Pois que assim seja!
    Que o Ano Novo seja um tempo realmente novo e sem remendos.

    Beijo
    SOL

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  3. um texto tecido de delicadas subtilezas, que nos permite saber que a Pasárgada, como mítico lugar de evasão, não o mesmo em toda a parte e para todos...

    entre a Pasárgada de Manuel Bandeira (um tanto lúdica, parece-me) e a Pasárgada de Osvaldo Alcântara vai todo um Mundo de distância!...

    seduz-me a rebeldia de Ovídio Martins:

    "Gritarei
    Berrarei
    Matarei
    Não vou para Pasárgada"

    de facto, há lugares que não desejo frequentar!

    belíssimo post, amiga Olinda
    grato pela partilha.

    abraço

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  4. Querida Olinda
    Uma passagem muito rápida apenas para dizer:
    Obrigada por me ter acompanhado durante todos este tempo que passámos juntas, visitando-nos mutuamente.
    Que o seu Natal tenha sido muito bom e o próximo ano seja espectacular!
    FELIZ ANO NOVO.

    Desejo, também, bom Fim-de-semana
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  5. Olá, Olinda! É interessante perceber como o teu olhar é amplo para as artes e se expande para além das fronteiras do teu país, inclusive já te vi citares algumas vezes poetas e escritores brasileiros aqui no teu blog, alguns que admiro muito. O poema do Bandeira talvez seja um dos mais conhecidos aqui no Brasil, são palavras que desde cedo lemos na escola. Espero que estejas bem e que tenhas bons dias pela frente, que o Universo possa ser generoso com a tua existência nesse próximo ano. Um abraço.

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  6. Essa fuga para Pasárgada, quantas vezes não sentimos esse impulso quer como evasão quer como limite do suportável .
    Quer se grite quer se sufoque a voz na nossa intimidade , o importante é realizar o que as vezes parece inatingível .
    Mais que nunca apetece que Pasárgada seja mais perto como refúgio alcançável
    Gostei , Olinda deste desfile de opiniões
    E quero deixar expresso o meus desejos de Feliz Ano Novo e que nos proporcione novos encontros de amizade
    Beijinho

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  7. Gostei do seu post.Tenha um Próspero Ano Novo.

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  8. Gostei de ler. Não conhecia este poeta.
    Regressei ontem, quase noite.
    Um abraço, e um Feliz vinte vinte

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  9. Querida Olinda, mais uma vez aprendi muito neste teu Xaile, embora já conhecesse o poema de Manuel Bandeira. Todos nós temos tido momentos em que nos apetece fugir para bem longe, por vários motivos, mas, acabamos por ficar; chegamos á conclusão que não adianta, pois os problemas, as desilusões e as dores irão connosco e a fuga será um peso muito grande para o nosso coração já demasiado doído. Eu, Amiga, há já um tempinho, tenho vontade, não de fugir, mas de pegar um avião e voar para junto da minha mãe e enfrentar o problema de saúde dela; não posso...não convém esta minha ida repentina pois isso iria ser estranho para ela; conta comigo em Março quando fará 90 anos e, por muito que me custe, assim será; ela sente-se bem, fala comigo todos os dias e não imagina que tem um problema grave E assim vamos continuar, dia a dia, pedindo para que continue a sentir-se bem e que a vida lhe traga o seu último instante, sem sofrimento. Vai chegar um novo ano que será como todos os outros, com alegrias, tristezas, desilusões, muitos encantos, nascimentos que enchem o nosso coração de uma felicidade enorme e perdas que nos deixam arrasados e que farão de nós pessoas muito menos encantadas com a vida; assim ê a vida e será essa mesma vida que teremos em 2020 se ela assim quiser e por isso, querida Amiga, o que te desejo hoje e sempre é SAÚDE...SAÚDE...MUITA SAÚDE para todos os que te rodeiam e sempre, enquanto por cá andares que a SAÚDE te acompanhe. Quero agradecer-re o carinho que tens demonstrado durante todos estes anos e afirmar-te que, enquanto a vida me permitir, aqui estarei para prestigiar este xailinho que tanto me tem dado em conhecimentos e, o mais importante, a Grande Amiga que me permitiu conhecer. Uma Amizade que foi crescendo e que se tornou muito, muito importante para mim; não sei se terei de interromper o começar de novo por algum tempo, mas as minhas " conversas contigo, os meus desabafos, esses continuarão, com toda a certeza. Muito obrigada por tudo, querida Amiga e mais uma vez, uma vida com SAÚDE, agora e sempre para ti e para aqueles que mais amas. Se possivel, que haja um pouquinho de paz neste mundo tão conturbado; não tenho grandes esperanças, mas se conseguirmos harmonia entre os que nos estão próximos, já ê um pequeno passo e esse está ao nosso alcance. Um abraço do tamanho do mundo e desculpa este comentário nostálgico, mas ê assim que me sinto e não consigo fingir; Já deu para perceber que sou um " livro aberto" e que considero que os verdadeiros Amigos merecem ler, pelo menos, algumas páginas desse livro. Fica bem, Amiga!
    Emilia

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  10. Verdade magnífica: "há todo um mundo à nossa espera, dentro de nós e lá fora". Que tenhamos alegria e coragem para o explorar. Um doce 2020, com saúde e muita inspiração. Obrigada por me acompanhar ao longo deste ano.
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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