quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Que fazer?!

 


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Que fazer?!
Eu não compreendo o Amor,
eu não compreendo a Vida
Mistérios insondáveis,
Formidáveis,
Mistérios que o Homem enfrenta
Mistérios de um mistério
Que é a alma humana …

Eu não compreendo a Vida:
Há luta entre os humanos,
Há guerra,
Há fome, e há injustiça imensa:
Há pobres seculares,
Aspirações que morrem …
Enquanto os fortes gastam
Em gastos não precisos
Aquilo que outros querem …

Eu não compreendo o amor:
Amamos quem sabemos impossível
Sentir por nós aquilo
Que tanto cobiçamos …

A Vida não me entende,
Eu não compreendo a Vida.
Quero entender o Amor,

E o amor não me compreende!

Amílcar Cabral


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– “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983. daqui


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Nesta data em que se assinala o Centenário do nascimento de Amílcar Cabral, esta pergunta "Que fazer?" impõe-se. Sim, o que fazer neste mundo tomado pela intolerância e desamor? o Homem que defendia a concórdia encontra-se na escrita deste poema envolvido pela dúvida e descrença. Ontem como hoje, parece não haver evolução alguma no comportamento ou modo de pensar da Humanidade.
Vida e Amor...  




Eneida Marta
Africa Tabanka



Amílcar Lopes da Costa Cabral (Bafatá, Guiné Portuguesa, actual Guiné-Bissau, 12 de setembro de 1924 — Conacri, 20 de janeiro de 1973) foi um político, agrónomo e teórico marxista da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Ver mais aqui


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Imagem: Net

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Onde está a luz?

 


Era Dezembro, no seu princípio. E nós éramos quantos? Eu, marido, filha, marido da filha, uma irmã, um casal de sobrinhos...Portanto, sete. Planeámos visitar a ilha de rochas sumptuosas, Santo Antão. Um dos meus primos cedeu-nos a sua casa em Porto Novo. Tomámos o barco em S.Vicente, chegámos ainda a tempo de tomar o pequeno-almoço num restaurante perto do porto. Fomos deixar as nossas coisas em casa e seguimos com o meu sobrinho a conduzir. Subimos até ao alto da Corda, onde o clima muda repentinamente, fresco quase frio, árvores frondosas, ambiente verdejante, e, ao longe, as nuvens davam-nos a ilusão de mar imenso. Visitámos vários sítios, subimos e descemos por caminhos impensáveis. Tinha estado a chover, as estradas quase aéreas mostravam vestígios de derrocadas. Houve momentos em que nos sentimos em perigo e a tracção a quatro rodas fez-se necessária. Voltámos ao Porto Novo pela tardinha, cansados e transpirados. Todos de banho tomado, o pessoal mais novo encalorado ligou ventoinhas, televisão, alguns puseram-se a ouvir música. E eu, tipo ave de mau agoiro: cuidado, não conhecemos a casa... E eles na maior descontracção, com a ideia de repor energias. De repente, um apito ininterrupto, um alarme estrepitoso soou e todos espantados à procura da sua proveniência. Fomos dar com um quartinho minúsculo, talvez 2x2m, se tanto, entre a sala e os quartos, com uma instalação de fios bem pregados à parede que desapareciam pelo tecto. Do lado direito um contador que marcava 25%. 




Todos se interrogavam: o que será isto? Os especialistas de serviço, todos, a olhar para aquilo sem perceber nada, tudo em pânico pois receávamos ter dado cabo de alguma coisa... Os dois quartos foram destinados tacitamente a dois dos casais, a minha irmã encontrou um divã desdobrável que preparou na sala de jantar, filha e marido destinaram algumas almofadas que iriam colocar no chão da sala para dormirem. Ainda com aquilo a apitar, dirigi-me ao meu quarto premi o interruptor, ouviu-se um clique e foi escuridão total. Agora tudo às aranhas, ninguém sabia onde estavam as coisas. Às apalpadelas lá nos deitámos... Não passou muito tempo quando oiço a filha ao meu lado, aflita: mãe mãe passou-me um bicho pela cara acho que é um escaravelho, não quero ficar ali. Ajeitei-me para o meio da cama, ela deitou-se e, durante a noite, eu enchouriçada entre a filha e o pai sem poder respirar até que a manhã raiou (não: a manhã não raia, diz o poeta). A seguir, a utilização da casa de banho, com os banhos, a higiene, o pequeno-almoço atribulado...nisto chegou a senhora encarregada da casa e nós a prepararmos as nossas coisas para seguir viagem, para o outro lado da ilha. Muito embaraçados contámos o que tinha sucedido com a luz, o alarme, a atrapalhação e ela descontraidamente dirigiu-se ao quadro da luz e disse: Oh, quando aquele contador marca 25% é porque a energia solar acumulada vai esgotar e então liga-se a luz da Companhia. E foi o que ela fez. Simples.

 



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Imagens: net

Video: Cesária Évora: Nho Antone escaderode

sábado, 7 de setembro de 2024

Réstia de mim





Bates a todas as portas
Na busca incessante
de uma réstia de mim,
Nas minhas raízes
No meu rebento
No meu sofrer

Mas sempre prudente
Sussurante e felino.
Não fazendo perigar
O inexpugnável núcleo 
Que tão bem construíste
À custa das nossas Vidas!

Dinola Melo







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Imagem: pixabay

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Sob a magia do ritmo

 


Dançava e dançava. Os meus pés não tocavam no chão. Sentia-me leve como uma pluma. A técnica aliada à agilidade, a ginástica e o muito treino faziam-me voar. Com graça. Com donaire. Até me sentia orgulhosa de mim. Com elegância atirava ao ar a fita que cabriolava e fazia círculos no ar dando-me tempo para tocar o solo, quase não o tocando, uma perna dobrada, outra atirada ao ar gentilmente, a arte em todos os gestos. Um salto revoluteado leva-me ao infinito para, a seguir, dar um salto sobre mim mesma e cair de bruços já com a cumplicidade da fita a pousar sobre a minha mão direita. Apanho-a e num acto de mágica enrolo-a em mim, depois desenrolo-a, dou um salto mortal e ela continua companheira e pousa suavemente sobre o meu ombro esquerdo... Palmas entusiásticas troam os ares. Um pouco desconcentrada retomo a minha evolução, noblesse oblige. Até nem me interessava muito a pontuação. Entregava-me a essa execução e sentia-me realizada. A competência do meu corpo e a elasticidade levavam-me em apoteose...De súbito, uma estridência, um susto, o despertador soa.


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imagem: pixabay