À Memória do meu Professor,
José Manuel Tengarrinha
Tengarrinha já tinha sido preso outras vezes. A mais violenta foi em 1961, quando havia sido duramente torturado. Desta vez, em 18 de Abril de 1974, levaram-no directamente para o reduto sul, para a última sala de interrogatório, ao fundo do corredor. Um inspector (...) perguntou-lhe o que estavam a preparar para o 1º de Maio. "Nada", respondeu. O inspector não insistiu e mudou de assunto. Queria saber se Tengarrinha estabelecera algum contacto com o movimento de oficiais que, um mês antes, estivera por detrás do golpe das Caldas e se tinha conhecimento de estarem em preparação novas movimentações. "Não sei", replicou lacónico.
O interrogatório durou várias horas, sempre à volta das mesmas questões. Já era noite quando o homem deu por concluída a sessão. "Da próxima vez vais falar. Ou confessas ou não sais daqui vivo", ameaçou. Deu-lhe uma semana para pensar e marcou novo interrogatório para daí a oito dias. Seria quinta-feira, 25 de Abril.(...) O inspector abandonou a sala e dois agentes entraram para conduzir Tengarrinha até ao reduto norte. Trancaram-no na cela de isolamento nº. 51.
Durante toda essa semana, esforçou-se por dormir o mais que conseguia. Sabia que ia ser sujeito à tortura do sono da próxima vez que o levassem para interrogatório. E temia o mais que lhe pudessem fazer.
Acordou em sobressalto na noite de 24 para 25 de Abril. Deveriam faltar poucas horas para o irem buscar, pensou. Nesse dia, no entanto, ninguém apareceu. Durante toda a manhã, nem sequer lhe foram entregar a côdea de pão e chávena de café que o guarda de serviço lhe levava todos os dias ao pequeno-almoço. (...)
As horas foram passando e também ele foi apercebendo dos vários indícios de mudança. Ao fim da tarde, ouviu, como os outros, informações dispersas sobre um golpe que derrubara o Governo. Depois de ter ecoado pela cadeia a voz de um preso pedindo prudência a todos os companheiros, Caxias calou-se. (...) Tengarrinha sabia da preparação de um golpe do MFA, mas também que estava iminente um levantamento da extrema-direita. Na altura, achou que a segunda hipótese era a mais provável. "Se for Kaúlza, vamos ser todos mortos", pensou.
José sentia-se profundamente só. Imaginava que os companheiros estariam despertos e apavorados. Precisava de ouvir uma voz, qualquer coisa que pudesse, ainda que, por segundos, tranquilizá-lo. Abriu a janela com cuidado, fez uma concha com a mão para abafar o som e perguntou, em voz baixa, ao preso do lado, igualmente em regime de isolamento: "Estás bem?" Ouviu-o levantar-se da cama e aproximar das grades. "Sim, e tu?" Não trocaram mais nenhuma palavra (...)
A noite estava gelada e o tempo parecia que não passava. Imagens de um fuzilamento tomavam-lhe o pensamento, sem que conseguisse afastá-las. Imaginou a angústia e o medo, o nó na garganta, a secura da boca e a vertigem no momento do fim. Via os agentes da PIDE a tirarem-nos das celas e a arrastarem-nos para o pátio, entre choros e gritos. (...)
Ao longo da noite, acabaria por aceitar esse destino. Sentia-se finalmente preparado. Já tinha amanhecido quando o silêncio em Caxias acabou. (...) As chaves rodaram na fechadura. José levantou-se. Parado à sua frente, um militar alto e louro, ladeado por dois homens, segurava uma G3.
_Como se chama? - perguntou-lhe.
José estava estranhamente tranquilo. Tivera tempo para se preparar para o fim. Chegara o momento.
_José Tengarrinha - disse.
_Pode sair. Está livre.
Afinal a manhã não lhe trouxera a morte. Mas faltaria ainda um dia inteiro para que efectivamente o devolvessem à liberdade.
Joana Pereira Bastos - In "Os últimos presos do Estado Novo -
Tortura e desespero em Vésperas do 25 de Abril" - pgs 111 a 114
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José Manuel Marques do Carmo Mendes Tengarrinha (Portimão, 12 de abril de 1932 – Estoril, 29 de junho de 2018) foi um jornalista, escritor, historiador, professor universitário, presidente do partido político MDP/CDE e deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da Republica de Portugal. aqui
Olá, querida amiga Olinda!
ResponderEliminarUma escolha excepcional embasada no contexto histórico da época.
Sabe, amiga, eu fico pensando, tanto lá como cá, onde anda a liberdade real?
Tivemos um grito inicial, mas que exige muita labuta e parece que nos cansamos com o decorrer dos anos...
"José sentia-se profundamente só."
José, Maria, nós... assim nos sentimos também.
A luta continua...
Exige grande ânimo e generosidade para não deixar cair por terra nosso ideal do "passado".
Que não seja preciso haver mais prisões, mortes, sangue derramado para se alcançar o mais óbvio à dignidade humana!
Tenha dias abençoados!
Beijinhos com carinho fraterno
Me pareció interesante. Te mando un beso.
ResponderEliminarLinda homengem aqui fizeste,Olinda! Fatos marcantes ,data importante! beijos, ótimo fds! chica
ResponderEliminarDevemos muito a estes homens.
ResponderEliminarUma homenagem a que me associo.
Um abraço.
Um combatente sem armas, só com a resistência!
ResponderEliminarAbraço
Olá Olinda, que beleza de apresentação homenagem a este que não se curvou diante da tortura e manteve seu desejo de Portugal livre. Pessoas que suportaram uma ditadura seja aí ou Portugal ou qualquer lugar, tem toda minha admiração. O sistema bruto não perdoa, mas ele é quebrável, quando uma consciência coletiva se faz presente. Vivemos algo semelhante que ainda hoje repercutem os seus horrores e que lutamos para que nunca mais aconteça.
ResponderEliminarGrato por fazer conhecer este grande homem professor e lutador pela liberdade de expressão e circulação.
Viva a Revolução dos Cravos.
Abraços e feliz fim de semana.
Merecida Homenagem ao Homem que o soube ser. As Honras e a glória da luta política ainda confundem muita gente.
ResponderEliminarGrato por esta partilha de situação que desconhecia.
Beijo,
SOL da Esteva
Querida Olinda, que emotiva e merecida homenagem a José Manuel Tengarrinha, professor, político, jornalista, corajoso resistente antifascista.
ResponderEliminarA ele e a muitos como ele devemos a liberdade.
Beijo, uma linda semana amiga.
Boa noite Olinda,
Um testemunho impressionante numa homenagem justíssima a José Manuel Tengarrinha.
Um grande Homem antifascista a quem também devemos a Liberdade!
Beijinhos,
Emília