terça-feira, 16 de abril de 2024

Meu Pai, o que é a Liberdade?



- Meu pai, o que é a liberdade?

- É o seu rosto, meu filho,
o seu jeito de indagar
o mundo a pedir guarida
no brilho do seu olhar.

A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto da vida
que a vida quis desvendar.

É sua irmã numa escada
iniciada há milênios
em direção ao amor,
seu corpo feito de nuvens
carne, sal, desejo, cálcio
e fundamentos de dor.

A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto do amor.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A mão limpa, o copo d’água
na mesa qual num altar
aberto ao homem que passa
com o vento verde do mar.

É o ato simples de amar
o amigo, o vinho, o silêncio
da mulher olhando a tarde
- laranja cortada ao meio,
tremor de barco que parte,
esto de crina sem freio.

- Meu pai, o que é a liberdade?

É um homem morto na cruz
por ele próprio plantada,
é a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.

É Cuauhtemoc a criar
sobre o brasileiro que o mata
uma rosa de ouro e prata
para altivez mexicana.

São quatro cavalos brancos
quatro bússolas de sangue
na praça de Vila Rica
e mais Felipe dos Santos
de pé a cuspir nos mantos
do medo que a morte indica.

É a blusa aberta do povo
bandeira branca atirada
jardim de estrelas de sangue
do céu de maio tombadas
dentro da noite goyesca.

É a guilhotina madura
cortando o espanto e o terror
sem cortar a luz e o canto
de uma lágrima de amor.

É a branca barba de Karl
a se misturar com a neve
de Londres fria e sem lã,
seu coração sobre as fábricas
qual gigantesca maçã.

É Van Gogh e sua tortura
de viver num quarto em Arles
com o sol preso em sua pintura.

É o longo verso de Whitman
fornalha descomunal
cozendo o barro da Terra
para o tempo industrial.

É Federico em Granada.
É o homem morto na cruz
por ele próprio plantada
e a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A liberdade, meu filho,
é coisa que assusta:
visão terrível (que luta!)
da vida contra o destino
traçado de ponta a ponta
como já contada conta
pelo som dos altos sinos.

É o homem amigo da morte
Por querer demais a vida
- a vida nunca podrida.

É sonho findo em desgraça
desta alma que, combalida,
deixou suas penas de graça
na grade em que foi ferida...

a liberdade, meu filho,
é a realidade do fogo
do meu rosto quando eu ardo
na imensa noite a buscar
a luz que pede guarida
nas trevas do meu olhar.

in 'Canto para 
As Transformações do Homem'

***


Publiquei este poema em 2018. Volto a fazê-lo hoje. E hoje mais do que nunca precisamos recordar-nos do que quer dizer esta palavra, do seu valor e do muito que ganharemos se todos nós a pusermos em prática. Propalá-la só em retórica não vale coisíssima nenhuma. É bom que tenhamos em conta que cada bom gesto poderá ser um sinal de paz. É um acto de amor que se manifesta nas mais pequenas coisas. E que, afinal, são grandes.
 



Jacques Brel
(08 /4/1929 - 09/10/1978)

La valse à mille temps


***


Moacyr Félix de Oliveira (Rio de Janeiro, RJ, 11 de março de 1926 — Rio de Janeiro, RJ, 25 de outubro de 2005) foi um poeta, escritor, editor e intelectual brasileiro. aqui



===

Citador - poema
Veja, aqui, no Xaile de Seda

***
Veja, se lhe interessar:
Cuauhtemoc - O ultimo Tlatoani de Tenochtitlán ...
considerado o líder da Revolta de Vila Rica


16 comentários:

  1. Boa noite de Paz, querida amiga Olinda!
    Li e encontrei dois pontos que me chamaram muita atenção no belíssimo e veraz post cujo tema nos diz muito sobretudo nos dias respingados de guerras...
    O primeiro:
    "É Van Gogh e sua tortura
    de viver num quarto em Arles
    com o sol preso em sua pintura."
    Formidável!
    Quer liberdade maior do que ser capaz de maximizar dons independente de certas circunstâncias que nos prendem?
    O segundo:
    "É um homem morto na cruz
    por ele próprio plantada,
    é a luz que sua morte expande
    pontuda como uma espada."
    Foi o sistema opressor vigente que o pôs naquela deplorável circunstância assumida com toda Liberdade...
    Um post substancial.
    Que não vejamos nossa Liberdade cerceada!
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Beijinhos com carinho fraterno

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  2. Poema de superior qualidade literária. Revelou-me um poeta. Grande publicação a de hoje neste seu blog.
    Um abraço.

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  3. Boa noite, cara amiga Olinda,

    O que é a liberdade?
    Uma pergunta de complexa explicação, ao contrário do que muitos possam pensar.
    A liberdade completa, na sua plenitude é dificilmente alcançada.
    Logo, tem na sua gêneses variadas interligações de diversos planos.

    Desde logo, liberdade de pensar pela sua própria cabeça, de se manifestar pelos seus direitos, sem condicionantes ou censura.
    Sejam de ordem física , social, cultural, financeira ou religiosa.

    Poder de mobilidade sem restrições.
    Ter direito a pão, a educação, saúde, habitação.
    Se conseguir ter acesso a todas estas premissas, talvez possa dizer que tem liberdade.

    Belos poema de evocação à liberdade que muito gostei.
    Parabéns pelo soberbo post!

    Grato pela visita e gentil comentário
    Votos de feliz semana!

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com
    https://soltaastuaspalavras.blogspot.com

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  4. Profundo poema. Te mando un beso.

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  5. O que é e quanto custa esta liberdade Olinda, é o nosso esforço e comprometimento diário no exercício consciente. Não se calar diante da força bruta que espanta e espanca. Um tempo que se apresenta cascudo, frio e mau. Liberdade de expressão contra toda força bruta que sufoca a voz na garganta, que pisoteia sonhos. Uma bela apresentação até então um desconhecido brasileiro.
    Grato por fazer conhecer Olinda.
    Abraços e feliz semana.

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  6. A liberdade custou o sacrifício de muitos saber preservá-la pode ser uma forma de os homenagear.
    Abraço de amizade.
    Juvenal Nunes

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  7. Pergunta e questionamentos profundos em linda poesia e é preciso saber o real significado dessa palavra !
    Liberdade é importante tema pra reflexão!
    beijos, tudo de bom,chica

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  8. Querida Olinda, simplesmente, ( ou será que vão ficando para trás outras memórias que já não enxergo?) das poesias mais encantadoras na suas perguntas directas e explicadas sem rodeios , que alguma vez li: Fabuloso, este poeta neste cântico feito louvor à liberdade.
    E estou plenamente de acordo com o seu remate. Liberdade não passa de uma palavra oca se não a usarmos em todas as situações com que nos deparamos na vida. Tantas vezes começa por um "não" só para ser ditador.
    Tantas vezes se é privado de liberdade por um simples freio ao sim. Por imposição.Por amuo, liberdade mais "básica" no nosso dia-a-dia.
    Porque a Liberdade no seu sentido pleno, a que rouba a condição essencial tanto para realização pessoal como para os desígnios de um Povo, essa definha a condição de ser gente - apóstolo de uma cultura
    Parabéns e obrigada, Olinda
    Beijinhos

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  9. Gostei de voltar a ouvir o grande Jacque Brel.

    O excelente poema , que desconhecia, tive que reler, pois é impressionante !!!

    Querida Olinda, que a liberdade nos corra sempre nas veias e palpite em actos na nossa vida de todos os dias!

    Fraterno abraço, tudo de bom.

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  10. Lindo demais de ler, refletir e agir a favor da verdadeira liberdade, a que vem de Cristo!
    O meu abraço carinhoso, Olinda...

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  11. Um poema libertador e um escritor que deixou um legado com obras interessantes e necessárias para nossa reflexão.
    Gosto de vir te ver,Olinda suas postagens acrescentam-me muito .
    meu abraço de bonsdias.

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  12. Liberdade é sermos capazes de deixar para trás o que não nos faz bem.
    Belíssima partilha, querida Olinda.
    Um beijinho carinhoso
    Verena.

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  13. Que grande poema! Que beleza de publicação!
    "A liberdade, meu filho,
    é o próprio rosto do amor."
    Querida Olinda, obrigada por me dares a conhecer mais um poeta. E, obrigada por Jacques Brel, que há muito eu não ouvia.
    O teu Xaile amiga, aconchega e encanta. Cada dia mais.
    Beijo.

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  14. Um poema sublime de um poeta que eu desconhecia.
    A verdadeira liberdade, é a capacidade de vivermos conforme a nossa própria consciência, sem medos ou coerções, tendo sempre presente, que a nossa liberdade individual termina onde começa a do outro.
    Gostei de voltar a ouvir Jacques Brel.
    Beijinhos

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  15. Poema e voz necessários! Inquietante é a falta de memória...
    Excelente, Olinda.
    Um beijo

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  16. Bom dia Olinda,
    Que poema tao belo, tão completo, tão tocante sobre a Liberdade!
    Nunca tinha lido um poema sobre este tema que me tivesse tocado tanto o coração.
    Muito obrigada por tê-lo partilhado e ao seu Autor que não conhecia.
    Um grande beijo.
    Emília

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