sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Codex Amiatinus, o manuscrito mais antigo da Vulgata

Não fosse o desembargo de citações que pôs muita gente a interessar-se por essa colecção de textos que é a Bíblia, objecto de aturados estudos por parte de especialistas, e eu não teria o pretexto que há muito buscava para falar do Codex Amiatinus. Houve uma altura, não há muito tempo, em que tentei fazê-lo comparando o trabalho da Bíblia copiada à mão por um homem nas suas horas de ócio*- cá no nosso rectângulo-, com o texto antigo na óptica do novo e do velho, uma curiosidade. Perdi, entretanto, o jornal ou a revista onde o facto vinha relatado.



Contudo, reparo que é um fraco pretexto, diga-se em meu desabono. O caso vertente, o das citações, que deu brado, não é exemplo que se deva seguir ou referenciar sequer, a não ser para o abominar. É mister que detentores de lugares cimeiros na sociedade reservem para si ideias susceptíveis de influenciar comportamentos que não se coadunem com os cânones já estabelecidos na nossa civilização. Aliás, o sofrimento das pessoas e as estatísticas são do conhecimento de todos. Mulheres maltratadas e assassinadas empobrecem o nosso património mental, as nossas vidas, a nossa condição de seres humanos. O velho e o novo. Tenhamos bem presente isto: "Dou-vos um mandamento novo. Amai-vos uns aos outros". Isso dizia o homem de Nazaré há dois mil e tal anos e nunca mais aprendemos.


Então, o meu pretexto não será esse que disse acima, mas há um outro a que eu poderia apelar. Há 500 anos Martinho Lutero afixou as suas 95 teses numa clara rebeldia contra o status quo, o caso das bulas entre outros. Ele não teria, segundo parece, a intenção de causar a hecatombe que se seguiu, a Reforma* e Contra-Reforma, mas foi o que foi. Uma bola de neve. Vislumbro daqui o burburinho que não terá sido, o espanto, embora a situação de prepotência da igreja já se ter tornado um espinho que muitos gostariam de extrair.

Uma das coisas boas é que a Bíblia começou a ser traduzida para vernáculo e a imprensa de Gutenberg fez o resto. A novidade impôs-se. Os monges copistas com o seu belo trabalho, moroso e elaborado destinado a alguns tinham os dias contados. Era a mudança de ideias que abria um mundo imenso à divulgação cultural que se alargaria a toda a gente, no futuro. E vemo-lo no nosso século, de tal forma que já não há tempo para se ler tudo o que aparece editado.

Porém, vamos recuar no tempo. Diz-se que este manuscrito nem é dos mais belos. Não terá grandes iluminuras, aqueles enfeites eivados de sacralidade, que existem em tantos outros. Não interessa para o caso. Ele tem uma particularidade que os outros não têm. É o mais antigo da Vulgata. Ora, esta é a cópia considerada mais acurada da tradução da Bíblia para latim entre fins do século IV e inícios do século V, levada a cabo por Jerónimo de Estridão (santo).


E a novidade aqui é que este Senhor preferiu fazer a sua tradução a partir do hebraico, língua original, em vez do grego como era corrente, apesar das grandes críticas surgidas na altura. A Vulgata foi considerada a versão de melhor compreensão popular* e adoptada pela Igreja Católica. Numa revisão terminada em 1975, será promulgada em 1979 por João Paulo II, e toma o nome de Nova Vulgata, ficando assim estabelecida como a nova Bíblia oficial da Igreja.

Mais uma vez, o velho e o novo. O antigo com as suas prerrogativas, servindo-nos de ponto de partida para seguir em frente. O novo, ancorando-se nas raízes já existentes, lançando-se à descoberta do futuro. 

Todas as gerações sentem grande dificuldade em aceitar aquilo a que não estão habituadas. Não vou apontar aqui exemplos. Todos nós o sentimos no nosso íntimo. Salvo algumas excepções, todos nós temos um pouco de "Velho do Restelo", aquela figura ímpar de que se serviu Camões para mostrar os nossos receios, inseguranças e horror ao desconhecido.


95
— "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!


97
— "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?   

Aqui chegados, será que o que foi dito atrás é pretexto bastante para ter trazido o Codex Amiatinus? Já não sei bem. Tenho a certeza de que houve uma altura em que sabia o motivo por que queria falar de tal documento. Mas, esfumou-se dado o tempo transcorrido em relação à data da selecção do tema. 

Resta-me o prazer de ter estado aqui a comunicar convosco, como se os meus amigos não tivessem coisas mais interessantes para fazer. E outras leituras à espera!

Que post palavroso este!- quase que oiço em surdina.

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Ver, se interessar:
-*Os cinco Solas da Reforma - aqui, no Xaile
-Ócio criativo - Blog Começar de novo
Os Lusíadas: Cântico IV - estrofes 95 e 97
*Ter em devida conta o significado do termo "popular", nessa altura.

3 comentários:

  1. Este assunto é deveras interessante.
    E só de imaginar aquilo tudo escrito à mão... sendo que a tradução não era nada fácil.
    E o post não é nada palavroso, lê-se num ápice...
    Bom fim de semana, amiga Olinda.
    Beijo.

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  2. Belo documento, mas o que impressiona sempre são os versos de Camões, o papa, cujos textos são sempre atuais. Camões foi excelente - orgulho de Portugal, embora haja outros, como Fernando Pessoa, Bocage, Florbela, Ari dos Santos, Eça, José Régio...
    Bom fim de semana e tudo de bom. Abraço cordial. Laerte.

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  3. Aprecio imenso as tuas publicações, saio sempre muito mais enriquecida.
    Bjinho, amiga

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