quinta-feira, 23 de maio de 2024

O nome sepultado nas águas (3)

Erguendo o mais alto que podia, com o braço esquerdo, centenas de páginas inquietas, com o outro alcançou o mastro que, agora separado, muito longe já do corpo destroçado do navio, se segurava à superfície das águas. Luís amarrou-se ao grande tronco e repousava, por um segundo, o peito cansado, mas Dinamene ameaçava tornar-se um ponto negro perdido na espuma.

Com um braço no ar e outro a nadar, como contaria, depois, o seu povo, arrastou-se por entre as ondas - o rio acalmado, pensou - mas a ilusão de Luís nada poderia constituir, na realidade, e o que história haveria de contar seria que não era ainda chegada a hora do perdão. E as ondas levantar-se-iam. O vento continuaria a assobiar por entre os estertores. Dinamene já não suportaria muito mais vida, a sua doçura não resistiria muito mais à agressividade. 

E Luís nadava, avançava lentamente e em rodopio, enquanto uma ideia não lhe abandonava a cabeça: "Se eu deixasse o manuscrito, se rendesse este livro às ondas, nadaria, com certeza, mais depressa." O seu punho ora se tornava mais lasso, ora cravava as unhas no papel, o olhar permanecia envidraçado, o corpo já não sentia a dor.

A pele do rosto de Dinamene ficara ainda mais pálida e ela estava longe, longe, cada vez mais longe e mais impossível para o poeta. Parecia que aceitava o seu destino. Que ninguém pudesse ser maior que o amor - ela sabia que, se se deixasse salvar, ele seria forçado a abandonar a sua obra à ira do Mecom, para nada, para sempre.




Quando o vento desceu e o rio, por fim, cedeu ao cansaço, Luís nadava longe, arfante, mecânico no rodar do único braço livre, a movimentos curtos e compassados, incapaz de pensar o que quer que fosse. Muito, muito atrás, já separados pela corrente, pedaços da barca boiando, vindo, aqui e ali, à tona, como no fim de um banquete.

Todos os tripulantes, todos os passageiros, todos os condenados e cada um dos animais dançavam, entre as algas, em silêncio, por sob os escombros, como se aqueles fossem cruzes de um cemitério inventado à presa, inútil para honrar a memória de uma ninfa que a rebentação de nenhum rio poderia arrancar à terra.

Os primeiros esgares da aurora raiavam de azul e laranja o céu; transpirando em febre, Luís dava à costa - parecia que tinha acabado de cruzar o universo inteiro. Ainda na posse dos sentidos, compreendia que estava vivo e que o manuscrito repousava, deitado, a seu lado.

Excerto: 10 histórias de amor em Portugal, de Alexandre Borges, pgs.32/33/34.


Dinamene sacrifica-se pelo manuscrito?

 "ela sabia que, se se deixasse salvar, ele seria forçado a 

abandonar a sua obra à ira do Mecom, para nada, para sempre". 

Entre ela e a obra, como escolher?

Um dilema para o poeta...



Abraços 

Olinda


Continua...


Post 1,Post 2

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.Título da história: Dinamene e Luís de Camões

.Subtítulo: O nome sepultado nas águas (que usei como título do post)

.Comemoração, neste ano, dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões

23 comentários:

  1. Continuo a acompanhar a história.
    Um abraço.

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  2. Olá, querida amiga Olinda!
    "Que ninguém pudesse ser maior que o Amor"...
    Grande Verdade na mensagem da história.
    Uma coisa me chamou muita atenção: o alívio que Luís sentiu ao ver o manuscrito são e salvo a seu lado.
    Fiquei daqui imaginando o quanto não lutamos por algo ou alguém que amamos. Damos até o último sopro de vida. Enfrentamos naufrágios e outros.
    História forte.
    Tenha dias abençoados!
    Beijinhos com carinho fraterno


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    1. É, querida Rosélia.
      Nota-se que o manuscrito era precioso para ele. Lutou por ele com todas as forças.
      Quando temos apreço por algo ou alguém estamos dispostos a todos os sacrifícios.
      Beijinhos.

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  3. Me pareció un relato interesante. Te mando un beso.,

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  4. Bom dia Olinda,
    Uma perfeita narrativa de todo o dramatismo que envolveu Camões para salvar o seu manuscrito dos Lusíadas!
    Salvaram-se ele e a obra depois de uma luta que parecia não ter fim.
    Excelente narrativa esta de Alexandre Borges.
    Beijinhos e um ótimo dia.
    Emília

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    1. Olá, Emília
      Vimos da escola a saber isso, é verdade? Nesta narrativa temos a comprovação desse facto.
      No meio da tempestade não se poupou a esforços. Até quase perder as forças.
      Beijinhos

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  5. Mais um belo excerto aqui,Olinda! Ótimo dia! beijos, chica

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    1. Muito obrigada pelo comentário.
      Beijinhos, Chica.

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    1. Grata pelo comentário, Rosa dos Ventos.
      Abraço.

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  7. Um grande e dramático dilema teve que viver Camões, ou salvar Dinameme, ou salvar o manuscrito. E naturalmente, salvou o manuscrito, que era sem dúvida o seu grande amor.
    Esperemos para ver, com acaba esta interessante história de Alexandre Borges.

    Continuação de feliz dia, e ótimo fim de semana, amiga Olinda!
    Beijinhos.

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com
    https://soltastuaspalavras.blogspot.com

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    1. Olá, Caro Mário
      O dilema do poeta: dois amores ali em presença, no meio do temporal, a embarcação desfeita, sem ter a que se agarrar..
      Boa continuação também lhe desejo.
      Abraço

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  8. E penso: no tempo em que Camões fazia parte do nosso curriculum , nunca me equacinaram esta situação. Amor , Manuscrito. Mas dá mais que pensar, não é tão linear assim. Que belo Post, querida Olinda!. Beijinho

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    1. Querida Manuela
      É mesmo. Nunca nos apresentaram esse problema de duas faces com que Camões tivera de se debater.
      Dá que pensar e na interpretação dos factos ou da lenda ficamos também divididos...
      Beijinhos.

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  9. Adorei ler minha querida amiga, Olinda!
    Uma noite abençoada!
    Um beijinho iluminado!
    😍 😃😍 Megy Maia

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    1. Olá, Megy
      Obrigada pelo comentário.
      Também lhe desejo um dia feliz.
      Beijinhos.

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  10. Olá, querida Olinda. Um texto envolvente, gostei de ler. A última frase me fez refletir: "Ainda na posse dos sentidos, compreendia que estava vivo e que o manuscrito repousava, deitado, ao seu lado." Há vida e grande esperança!
    Bjs. Bom fdsemana...

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    1. Querida Anete
      Contente por estar aqui nesta mistura de sentimentos que está narrativa nos oferece.
      Muito obrigada.
      Beijinhos.

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    2. corrigindo:
      ...esta narrativa...

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  11. À espera do próximo capitulo!
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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