terça-feira, 17 de outubro de 2017

Ler nas estrelas

E a chuva que não vinha. Todos os anos era aquele sufoco. Ele espreitava todos os sinais, sopesava-os e ia dizendo da sua justiça. À noite espreitava o céu. Huuumm...a lua com aquele halo amarelo não dizia nada de bom, mas a estrada de santiago prometia, leitosa, poderia ser um bom presságio. De dia via as nuvens a formarem-se prenhes de água, ai, mas os pássaros todos em revoada, prenúncio de vento que as levaria para longe. E assim era. Todas a despejarem-se no mar. Aquela leitura já a sabíamos de cor e, realmente, não falhava. Até nós olhávamos para a abóbada celeste com as mesmas  perguntas.

Chegava o dia em que a chuva, marota, depois de várias negaças lá resolvia visitar-nos. Não importava se era pouca ou muita, era sempre uma festa. Lavava a alma. Para já, o importante era que desse para as sementeiras. Tudo preparado naquela espera, toca de correr para os campos. E o milho medrava naquele chão de pousio durante tanto tempo, feliz por poder mostrar do que era capaz, com todos os seus elementos.

Agora o leitor das estrelas voltava a sua atenção para as plantinhas que, quase a medo, iam despontando. Ou o medo estaria no seu coração? Auscultava-lhes a cor, a resistência, o futuro. Se resistissem até à monda e a chuva voltasse em tempo devido tínhamos colheita garantida. E recomeçava o perscrutamento dos céus, o comportamento da lua, das constelações, do voo dos pássaros, do sol, quente e devastador.

Até que um dia, um belo dia, num ano qualquer, dava-se o milagre e completava-se o ciclo. Sementeira, monda, colheita, passando pelo ansiado dia de Santo André em que íamos comer milho verde assado, não sei se havia dispensa da escola ou como é que era mas o certo é que isso faz parte das minhas memórias. Na colheita, os homens e mulheres chamados para o efeito começavam logo de manhã e, pelo caminho, iam deixando algumas espigas para nós recolhermos.

E ajudávamos a descascar o precioso cereal à procura de uma espiga vermelha. E ouvíamos as histórias que eles contavam. E espreitávamos com afinco os bolos de milho, a mandioca, a batata doce que punham a assar na cinza quente.

O leitor das estrelas. O meu pai.

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Dedico este pequeno texto a quem por aqui por passar, com votos de dias de muita esperança.

Abraço.

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1ªImagem: Pixabay
2ª imagem:net

4 comentários:

  1. Quantas doces lembranças guardamos no nosso coração e que tornam o nosso presente bem mais belo.
    Adorei o seu texto, muito obrigado por este delicioso momento.
    Boa semana
    Beijinhos
    Maria de
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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  2. Passei por aqui, li e deliciei-me com este texto e com o teu " leitor das estrelas " Uma linda recordação do teu pai, Olinda. O meu não " lia as estrelas , mas o teu texto troixe-me boas lembranças da aldeia onde nasci e vivi até ir para o Brasil. Adorava as desfolhadas feitas nas casas das minhas amigas cujos pais eram lavradores. Era um trabalho dificil esse da " colheita " pois não havia máquinas; tudo era compensado com a grande festa da desfolhada e a minha mãe que ia ajudar os vizinhos adorava cantar aquelas " modas " Hoje, no Brasil, quando está bem disposta começa a cantar, pois as enfermeiras adoram ouvi-la; ela continua com a mesma pronúncia do Português do norte e, claro, acham muita graça. Obrigada, querida amiga e que estas recordações continuem vivas, dando-nos assim mais alento para suportarmos a tristeza de ver o nosso pais coberto de cinzas. Para muita gente as estrelas deixaram de brilhar e o céu ficará escuro por muito, muito tempo. Boa noite e um grande abraço
    Emilia

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  3. Corrigindo..." trouxe-me"
    Beijo e boa noite
    Emilia

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  4. Gostei muito da leitura deste seu texto dedicado
    às suas raízes...
    A chuva é sempre um problema no arquipélago.
    Grande abraço.
    Beijo
    ~~~

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