Estas perguntas foram colocadas num inquérito a poetas do Brasil, Espanha e Portugal. Do nosso lado são 23 os inquiridos, com muitos nomes sonoros, já conhecidos nossos:
A.M.Pires Cabral; Adília Lopes; Alberto Pimenta; Armando Silva Carvalho; Daniel Jonas; Diogo Vaz Pinto; Fernando Guimarães; Fernando Pinto do Amaral; Gastão Cruz; Herberto Helder; Inês Lourenço; José Luís Barreto Guimarães; José Emílio-Nelson; José Miguel Silva; José Tolentino Mendonça; Luís Quintais; Manuel António Pina; Manuel de Freitas; Manuel Gusmão; Margarida Vale de Gato; Nuno Júdice; Rui Lage; Vasco Graça Moura.
De entre as respostas escolho a de Armando da Silva Carvalho por um motivo: ele vai buscar Bernardo Soares para documentar o seu discurso, o qual, por sua vez, inspirou um trabalho intitulado, "O Riso Agudo dos Cínicos": Desassossego e Ironia, em Armando Silva Carvalho, da autoria de Joana Matos Frias, Universidade do Porto, em que a autora, a partir de uma reflexão sobre a resposta do poeta à questão “A poesia é uma forma de resistência?” e sobre o seu dictum “O texto não faz nem refaz o mundo”, procura reconstituir na sua obra poética, desde o inaugural Lírica Consumível (1965), os princípios elementares que presidem ao exercício da “expressão desassossegada”, da retórica da ironia e da textualidade paródica que têm singularizado o discurso do poeta no panorama da literatura portuguesa contemporânea.
A RESISTÊNCIA COM
BERNARDO SOARES
(...)
A vossa pergunta optou
por relativizar a resistência: ela será mais uma atitude a concorrer no
trabalho poético. Ou seja, os contextos e a sua diversidade podem levar o autor
( por razões de ética, civismo, ou simplesmente cultura) a subordinar-se a um
valor suposta e temporariamente mais alto: a resistência.
E no entanto, o
menos que me posso pedir enquanto faço versos, me atolo
no magma verbal ou nos dias que escorrem por mim e à
minha frente, é que não me faltem aquelas das palavras que sempre me
acompanharam na expressão desassossegada da escrita e
provocada pela experiência do ser e do existir, pela visão absurda do
meu mundo, dos outros, de todos; pela partilha do mal pela ausência do
bem, do justo pelo injusto (sem nunca chegar a saber, no fundo, dos dois,
afinal o quem é quem no texto), pela impotência frente ao terror, à
carnificina, à estupidez imposta a nível mundial e tantos outros lugares
cativos e sabidos neste palco global, nesta corrida cada vez mais acelerada a
caminho da catástrofe.
E tudo, enquanto vou
ficando cada vez mais a sós comigo, guiado pela intuição, essa bússola nos
descampados da alma, no dizer de Bernardo Soares, um dos auto-demitidos da
vida e que cultivava o ódio à acção como uma flor de estufa.
E é disto, da
consciência disto, que surge a resistência, que não tem tempos mortos, nem
ocasiões propícias. E talvez com ela surja, como hipótese, a sempre desejada
beleza do texto, no seu suposto, frágil, absoluto.
Mas como pode resistir
o pobre do poema?
Pela simples razão da
sua existência. Não tem outros alicerces. Existência igual a resistência. Se
isso, além de se traduzir numa convulsão, inovação, seja o que for, em termos
textuais, ganhar também peso na balança da realidade social, da política, do
mundo, será já outra história acumulada. Um conjunto de palavras não é nenhuma
bomba, o mais que pode ser é um panfleto, um manifesto, uma denúncia, e isto em
casos extremos de inflamação contestatária. O pobre do poema, o meu, sempre
desconfiou dos travestimentos da fuga em direcção ao nada. Se acaso o deixarem ainda
circular, e mais dia menos dia possivelmente não deixam, ele na sua mesquinha,
ridícula expressão de singularidade ameaçada, afirmará que resiste contra a sua
própria negação. Que no fundo não é mais que a negação da liberdade e da vida.
Porque a história da
poesia foi sempre o resistir. Em primeiro lugar, ao próprio acto
conformado de resistir textualmente. Depois, ao de resistir ao pai, à mãe, à
pátria, ao ferro de engomar padronizado das formas, conteúdos e teorias. O de
resistir ao poder da palavra que rebaixa e aprisiona. O de resistir ao
definitivo reino do consumismo global, não já ao das coisas, mas também o das
almas, do espírito, da singularidade do ser. O de resistir às mais sofisticadas
redes de repescar o que vai da mente até aos corpos: o tutano dessa viva e
desalterada criatura que é o homem, em processo inexorável de
desnaturação.
E para terminar, peço
aos jovens, que passais os dias de hoje a poetar, que olheis essa aventura ou
gesta do grande capital contemporâneo. Nunca o sinistro económico se alçou tão
despudoramente soberano sobre as nossas cabeças: novas, velhas, pobres,
remediadas, mais ou menos inocentes. Aí, nessa aventura, por certo original na
forma de destruir economias, países e pessoas, podeis descobrir a epopeia que falta
aos tempos do presente mundial. De que estais (estamos) à
espera?
Peniche,
Janeiro de 2012
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Igualmente interessantes são as respostas dos outros poetas. Assim, convido-vos, meus amigos, a acederem ao link associado à palavra inquérito no início do presente post. Creio que gostarão de entrar nesse universo mental, privilegiado, que é o da criação poética e a sua incidência no mundo real, no que a estes poetas diz respeito.
Para provocar a vossa curiosidade insiro aqui estas palavras de Manuel António Pina, entretanto falecido:
(...)
"Como pode
resistir a poesia?", pergunta-se: dizendo, por exemplo, coisas como
"a Terra é azul como uma laranja", "os pássaros são os primeiros
pensamentos da manhã", "a filha da manhã, Aurora de róseos
dedos", "tapeçaria de homens" (uma batalha), etc.. "E a
quê?": ao jornalismo, à televisão, à publicidade, ao linguajar da prosa de
entretenimento e a todos os tipos de linguajares e idiolectos que parasitam e
empobrecem a língua: o politiquês, o economês, o eduquês, a língua de pau do
Direito e das ciências sociais, a língua de manteiga dos negócios e da
diplomacia, concebida para enganar, e por aí adiante.
Assim sucedendo, a
poesia já é forma de resistência "política" e "social".
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