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segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

"Aldeia de um homem só..."

"Desapareceu tudo...
saíram todos,
faleceram os meus pais...
fiquei eu"

O último habitante de Casas da Serra, aldeia na serra do Barroso, em Boticas.



A casa do último habitante fica mesmo em frente, o estábulo faz parte da construção de granito. Está frio e vento; a chuva em breve será neve; por entre carreiros finos do chão que parece forrado de pedra que o tempo gastou, escorre acelerada a água da chuva que desliza da encosta. O cenário, ainda que de abandono, porque sabemos que mais ninguém ali mora, é o que Torga descreve, em parte, em Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes): "Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite."

Leia aqui a história deste homem que será, mutatis mutandis, a história de muitas mulheres e homens por este Portugal fora, cujas aldeias vão ficando cada dia mais desertas.

Oiçamos, entretanto, o saudoso Roberto Leal que canta a sua Aldeia:




E leiamos este belo poema de António Gedeão: 


Minha Aldeia

Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.

Valências de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que emergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.



Minha Aldeia é todo o mundo
Todo o mundo me pertence.

Boa semana, meus amigos.

Abraços.



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Leia aqui o artigo, no DN
Poema de António Gedeão - aqui

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A roda do poder

Pequeno poder? Grande poder? Penso que esta distinção não existe. Todo o poder é poder. Todo o poder tem a importância que lhe é dada por quem está na mó de baixo e reconhece no outro o poder de o afectar de algum modo. 

Logo de entrada aparece o favor que ao ser concedido cria desde logo uma relação de dependência. E não será preciso pensar-se em favores do tamanho do mundo. Bastará passar o processo que vinha no fim da lista para um lugar mais simpático. A consulta médica que não podia ser para hoje, mas que depois de bem conversado até passa a ser possível. O colega que precisa que o outro lhe pique o ponto. O funcionário que passa o amigo ou conhecido para o princípio de uma fila de atendimento, seja de emprego, de subsídios, serviços sociais, no aeroporto, seja o que for. São situações que na maior parte das vezes irão prejudicar de algum modo uma outra pessoa. 



E, paralelamente, a coisa vai aumentando na escala social. Chegam-nos notícias de grandes decisores, aqueles que têm a faca e o queijo na mão e que controlam a sociedade em toda a sua dimensão, fazendo sua a coisa pública. Ele é o tráfico de influências, ele é os grandes favores, os desvios e a má gestão beneficiando-se a si próprios e a amigos e clientela, um Deus nos acuda. A célebre cunha continua tão activa e necessária como o ar que respiramos.

Mas o poder não se esgota nisso. Temos o poder psicológico, de controlo sobre o outro nos mais ínfimos pormenores, que não é coisa pouca para quem o sofre. E isto pode verificar-se em casa, com a ascendência de um cônjuge sobre o outro, sobre os filhos, sobre os velhos. Pode verificar-se no trabalho, com os maus chefes, os colegas invejosos, emprateleirando quem lhes não caia no goto. E na sociedade em geral quanto ao que é diferente, a quem está em minoria, seja por deficiência física, por motivos raciais, religiosos, por orientação sexual.


Ocorre-me desejar que este ano de 2017, (já vai no seu 5º mês), nos traga mais tolerância, mais altruísmo e mais amor ao próximo; não prejudicar uns em benefício de outros, havendo divisão equitativa de oportunidades.


Utopia? Talvez não. Bastaria que o quiséssemos todos.

Para já, centremo-nos nisto: Maio é o mês de Maria, o mês do Coração e, também, o mês em que acaba o prazo para a entrega do IRS. 

Um bom dia a todos os que por aqui passarem.

=====

Imagem Pixabay
  

domingo, 8 de junho de 2014

"Fruta Feia" - a nossa fruta

A nossa maçã, a nossa laranja, a nossa pêra: É assim que a dona de uma loja de bairro, aqui perto de casa, se refere à fruta produzida e colhida por pequenos produtores, nos terrenos circundantes. Dispõe os caixotes à porta e cola neles papéis escritos à mão onde indica os preços que não chegam a um euro. 

Ainda não há muito tempo li que havia pessoas a aproveitar e a canalizar para o consumo fruta produzida fora das regras draconianas da União Europeia, dando-lhe a designação de "Fruta Feia".

Neste site, da cooperativa que entretanto foi criada, a 18 de Novembro de 2013, pode ler-se: Todas as semanas trabalhamos directamente com os produtores, recolhendo nas suas hortas e pomares os produtos pequenos, grandes ou disformes que estes não conseguem escoar e com os quais preparamos cestas de tamanhos diferentes com frutas e hortaliças da época para entregar aos associados da Fruta Feia CRL.




Pois bem, a "Fruta Feia" já é notícia fora de portas. Nos Estados Unidos o The New York Times refere este projecto, um desafia à ditadura de Bruxelas que vai ao ponto de regulamentar o tamanho, a cor e a forma dos alimentos que os cidadãos comem, como bem sabemos. Resultado:desperdício de 89 milhões de toneladas de alimentos. É obra! Será que vi bem?

Refere-se também aqui que Portugal é pioneiro nesta actividade, sendo motivo de inspiração nas Nações Unidas (FAO). Um seu representante declarou à RenascençaSão experiências positivas que devem ser partilhadas a nível mundial para a criação de uma plataforma sólida de combate ao desperdício.

Felizmente, cada dia que passa verifica-se que mais e mais pessoas têm consciência de que é necessário tomar nas mãos as rédeas do próprio destino. O povo é que tem razão: no poupar é que está o ganho. Há mais movimentos neste sentido como, por exemplo, Zero Desperdício e Re-Food que recolhem alimentos em restaurantes, alimentos esses que de outro modo iriam para lixo.

Nós, os leigos, estamos fartos de dizer que é tempo de a União Europeia proceder a uma revisão das suas estratégias. E se tem que começar por algum lado que o faça já em relação à agricultura e às pescas, áreas em que a aplicação de quotas e excessos nas normalizações não parece ter servido os cidadãos europeus. Entretanto, a sociedade civil procura soluções e penso que, com imaginação, lá vai chegando. 

Deixo aqui este slogan e a composição da última cesta: 


Gente bonita come fruta feia
Composição da cesta de 02.06.2014 (Casa Independente) e de 03.06.2014 (Ateneu Comercial de Lisboa):
  • Mirtilo 
  • Pêra-rocha
  • Maçã fuji
  • Alho francês
  • Couve lombardo
  • Cenoura
  • Tomate
  • Agrião (só para cestas grandes)

Desejo-vos um bom domingo.:)


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Só o poder limita o poder - disse ele

Poderes com a mesma força institucional independentes uns dos outros. O homem que veicula esta ideia nem pensava em termos de democracia tal como a entendemos hoje. O que sabia era que o poder absoluto, vigente no Sec.XVIII, teria de ser controlado. 

Nas suas 'Cartas Persas' critica a sociedade, as instituições políticas, os abusos do Estado e da Igreja, ridicularizando os valores de uma civilização que se considerava superior a outras. E em 'O Espírito das Leis', ele, Montesquieu, vai cimentando as suas convicções na busca do fio condutor do seu raciocínio: Muitas vezes comecei, e muitas vezes abandonei esta obra; mil vezes lancei aos ventos as folhas que havia escrito; sentia todos os dias as mãos paternas caírem; seguia o meu objecto sem formar objectivo; não conhecia nem as regras, nem as excepções; só encontrava a verdade para perdê-la. Mas quando descobri os meus princípios tudo o que procurava veio a mim; e, durante vinte anos, vi a minha obra começar, crescer, avançar e terminar. Se esta obra tiver sucesso, devê-lo-ei e muito à majestade do meu assunto (sujet); no entanto, não creio ter carecido totalmente de génio. Quando vi o que tantos grandes homens, em França, Inglaterra e Alemanha, escreveram antes de mim, fiquei admirado; mas não perdi a coragem.




E encontra-o, encontra o fio condutor que procurava. Para limitar o poder nada melhor do que o poder. E isto seria o início da  arquitectura ideal que passaria a reger as leis fundamentais das democracias ocidentais. O poder legislativo, o poder executivo, o poder judicial. O conceito ou teoria dos três poderes. Todos independentes uns dos outros. Cada um com as suas próprias regras, tendo como pano de fundo a Constituição. Será isto tão linear? Seria se o ser humano não procurasse envolver tudo em teias complicadas. 

A Constituição Portuguesa faz jus à teoria dos três poderes: o legislativo, o executivo, o judicial, ou seja, a Assembleia da República, o Governo, os Tribunais. São os órgãos da República. Mas há um quarto órgão que, em momentos de crise, se agiganta: o Presidente da República. Todos eles têm as suas competências discriminadas na Lei Fundamental. Pelas competências atribuídas à Assembleia da República notamos a força deste órgão e por aí se vê claramente porque é que o nosso regime é parlamentar e a sua responsabilidade, especialmente, na feitura e aprovação das leis. Leis que não dêem azo a interpretações dúbias, convenhamos.

Muito confusa é a situação política que hoje se vive. Encontrei neste poema de António Gedeão o eco disso mesmo:


Desencontro

Que língua estrangeira é esta
que me roça a flor do ouvido,
um vozear sem sentido
que nenhum sentido empresta?
Sussuro de vago tom,
reminiscência de esfinge,
voz que se julga, ou se finge
sentindo, e é apenas som.

Contracenamos por gestos,
por sorrisos, por olhares,
rodeios protocolares,
cumprimentos indigestos,
firmes aperto de mão,
passeios de braço dado,
mas por som articulado,
por palavras, isso não.
Antes morrer atolado
na mais negra solidão.


Entreguemo-nos à reflexão, nem que seja por momentos. Que as palavras tenham sentido e os actos sejam o reflexo delas. Não queiramos morrer atolados na mais negra solidão. Empreguemos o nosso raciocínio na boa gestão das nossas diferenças.

E hoje, meus amigos, o dia nasceu claro e luminoso. Claro e luminoso? Bem, foi o que escrevi sem pensar... Gosto de adjectivos e, por vezes, abuso um bocado sobrepondo-os. Ou será que não estão sobrepostos? Talvez haja do claro ao luminoso uma escala em crescendo e é nisso que o meu espírito aposta. Aproveitemos e façamos milagres, pois a vida já de si é um milagre. :) 

****

Montesquieu 
(Charles-Louis de Secondatbarão de La Brède e de Montesquieu)
L'esprit des lois
Nota: Na referência a "Alemanha" há que ter em conta que a unificação alemã só se verificará, oficialmente, em 1871.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Quase Memórias: Esta é a minha Verdade!

Hoje mais do que nunca o trabalho do historiador se mostra exigente. Com a sua capacidade de lançar olhares de conjunto, privilegiando o todo para o decompor em partes, é nessa tarefa que se deverá concentrar. Qualquer que seja o género de História que pretenda desenvolver, regional ou geral, é sua obrigação deixar portas abertas, pistas que outros possam seguir no sentido de se tentar compreender e completar ciclos que parecem isolados mas que na realidade se interpenetram.

Isto para dizer que todos os dados, todas as memórias, todos os documentos são imprescindíveis como material de análise histórica. Esta obra de António de Almeida Santos, Quase Memórias, é um instrumento importante, aliado a tantos outros, para se compreender uma época que continua a causar-nos perplexidade.

Trata-se de um trabalho minucioso baseado na documentação produzida em todo o processo de independência das ex-colónias, conversações, tratados e também na sua visão pessoal, introduzindo a sua própria interpretação, as suas vivências e experiências.

    

"Longa como as estradas da Galileia foi esta digressão pelo estertor do colonialismo e pelo dossier da descolonização. A partir de agora, este livro deixa de ser meu. Não faço a menor ideia de como possa ser acolhido pela opinião pública portuguesa. Talvez agrade a alguns. Desagradará necessariamente a muitos, tão amargas são algumas das recordações que evoca. Mas, quem se põe a remexer na história, não pode satisfazer-se só com uma parte dela. Não pode deixar de tentar ser exaustivo, objectivo e verdadeiro. Esta é a minha verdade sobre o estertor do colonialismo e sobre o dossier da descolonização; sobre os mais salientes acidentes do processo revolucionário posterior a Abril que lhe determinaram o tempo, o modo e o resultado final. Deixo ligados a tudo isso inolvidáveis momentos da minha vida. Nem todos agradáveis. Apesar disso, foi reconfortante recordá-los."



Esta é a mensagem impressa na contra-capa da referida obra, composta de dois volumes, editada em Setembro de 2006. Normalmente, escrevo a lápis a data em que adquiro os livros e neste consta 2006/10/27, o que demonstra o meu interesse por esta matéria. É um livro que não se consegue ler de uma assentada. É para ser lido com tempo e, assim sendo, levei o meu tempo a fazê-lo. O 1º Volume traz o subtítulo: Do Colonialismo e da Descolonização. E o 2º : Da Descolonização de cada Território em Particular.

Estamos, de novo, a atravessar tempos que exigem de nós reflexão e grande sentido de responsabilidade. Isso, tanto no que diz respeito aos problemas nacionais como em relação a Europa, espaço onde nos encontramos inseridos. E, não há dúvida, esta Europa necessita urgentemente de ser repensada, regressando ao momento em que foi idealizada e reavaliando os seus objectivos.

Quanto ao panorama nacional, passa-se uma situação bastante interessante. No que se refere às eleições europeias de há três dias, os resultados por cá, no chão nacional, estão completamente obliterados. Já não se sabe bem quem as ganhou e quem as perdeu... Já não se sabe se houve uma vitória histórica... ou uma derrota histórica. E na liça temos mais um lidador. Que os mais altos interesses da pátria se alevantem.   


Nota: Por motivos vários, só hoje me foi possível fazer este post referente a esta obra de Almeida Santos, prometido há já um mêsAs duas imagens são do 1º e 2º volumes.    


quarta-feira, 16 de abril de 2014

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos - sociais, políticos, culturais? Como pode a poesia resistir e a quê?

Estas perguntas foram colocadas num inquérito a poetas do Brasil, Espanha e Portugal. Do nosso lado são 23 os inquiridos, com muitos nomes sonoros, já conhecidos nossos: 

A.M.Pires Cabral; Adília Lopes; Alberto Pimenta; Armando Silva Carvalho; Daniel Jonas; Diogo Vaz Pinto; Fernando Guimarães; Fernando Pinto do Amaral; Gastão Cruz; Herberto Helder; Inês Lourenço; José Luís Barreto Guimarães; José Emílio-Nelson; José Miguel Silva; José Tolentino Mendonça; Luís Quintais; Manuel António Pina; Manuel de Freitas; Manuel Gusmão; Margarida Vale de Gato; Nuno Júdice; Rui Lage; Vasco Graça Moura.

De entre as respostas escolho a de Armando da Silva Carvalho por um motivo: ele vai buscar Bernardo Soares para documentar o seu discurso, o qual, por sua vez, inspirou um trabalho intitulado, "O Riso Agudo dos Cínicos": Desassossego e Ironia, em Armando Silva Carvalho, da autoria de Joana Matos Frias, Universidade do Porto, em que a autora, a partir de uma reflexão sobre a resposta do poeta à questão “A poesia é uma forma de resistência?” e sobre o seu dictum “O texto não faz nem refaz o mundo”, procura reconstituir na sua obra poética, desde o inaugural Lírica Consumível (1965), os princípios elementares que presidem ao exercício da “expressão desassossegada”, da retórica da ironia e da textualidade paródica que têm singularizado o discurso do poeta no panorama da literatura portuguesa contemporânea.

Da resposta ao inquérito, de Armando da Silva Carvalho, deixo aqui este excerto: 


A RESISTÊNCIA COM BERNARDO SOARES

(...)

A vossa pergunta optou por relativizar a resistência: ela será mais uma atitude a concorrer no trabalho poético. Ou seja, os contextos e a sua diversidade podem levar o autor ( por razões de ética, civismo, ou simplesmente cultura) a subordinar-se a um valor suposta e temporariamente mais alto: a resistência.

E no entanto, o menos que me posso pedir enquanto faço versos, me atolo no magma verbal ou nos dias que escorrem por mim e à minha frente, é que não me faltem aquelas das palavras que sempre me acompanharam na expressão desassossegada da escrita e provocada pela experiência do ser e do existir, pela visão absurda do meu mundo, dos outros, de todos; pela partilha do mal pela ausência do bem, do justo pelo injusto (sem nunca chegar a saber, no fundo, dos dois, afinal o quem é quem no texto), pela impotência frente ao terror, à carnificina, à estupidez imposta a nível mundial e tantos outros lugares cativos e sabidos neste palco global, nesta corrida cada vez mais acelerada a caminho da catástrofe.
    
 E tudo, enquanto vou ficando cada vez mais a sós comigo, guiado pela intuição, essa bússola nos descampados da alma, no dizer de Bernardo Soares, um dos auto-demitidos da vida e que cultivava o ódio à acção como uma flor de estufa.

E é disto, da consciência disto, que surge a resistência, que não tem tempos mortos, nem ocasiões propícias. E talvez com ela surja, como hipótese, a sempre desejada beleza do texto, no seu suposto, frágil, absoluto.

Mas como pode resistir o pobre do poema?

Pela simples razão da sua existência. Não tem outros alicerces. Existência igual a resistência. Se isso, além de se traduzir numa convulsão, inovação, seja o que for, em termos textuais, ganhar também peso na balança da realidade social, da política, do mundo, será já outra história acumulada. Um conjunto de palavras não é nenhuma bomba, o mais que pode ser é um panfleto, um manifesto, uma denúncia, e isto em casos extremos de inflamação contestatária. O pobre do poema, o meu, sempre desconfiou dos travestimentos da fuga em direcção ao nada. Se acaso o deixarem ainda circular, e mais dia menos dia possivelmente não deixam, ele na sua mesquinha, ridícula expressão de singularidade ameaçada, afirmará que resiste contra a sua própria negação. Que no fundo não é mais que a negação da liberdade e da vida.

Porque a história da poesia foi sempre o resistir. Em primeiro lugar, ao próprio acto conformado de resistir textualmente. Depois, ao de resistir ao pai, à mãe, à pátria, ao ferro de engomar padronizado das formas, conteúdos e teorias. O de resistir ao poder da palavra que rebaixa e aprisiona. O de resistir ao definitivo reino do consumismo global, não já ao das coisas, mas também o das almas, do espírito, da singularidade do ser. O de resistir às mais sofisticadas redes de repescar o que vai da mente até aos corpos: o tutano dessa viva e desalterada criatura que é o homem, em processo inexorável de desnaturação. 

E para terminar, peço aos jovens, que passais os dias de hoje a poetar, que olheis essa aventura ou gesta do grande capital contemporâneo. Nunca o sinistro económico se alçou tão despudoramente soberano sobre as nossas cabeças: novas, velhas, pobres, remediadas, mais ou menos inocentes. Aí, nessa aventura, por certo original na forma de destruir economias, países e pessoas, podeis descobrir a epopeia que falta aos tempos do presente mundial. De que estais (estamos) à espera?   

Peniche, Janeiro de 2012


****

Igualmente interessantes são as respostas dos outros poetas. Assim, convido-vos, meus amigos, a acederem ao link associado à palavra inquérito no início do presente post. Creio que gostarão de entrar nesse universo mental, privilegiado, que é o da criação poética e a sua incidência no mundo real, no que a estes poetas diz respeito.

Para provocar a vossa curiosidade insiro aqui estas palavras de Manuel António Pina, entretanto falecido:

(...)


"Como pode resistir a poesia?", pergunta-se: dizendo, por exemplo, coisas como "a Terra é azul como uma laranja", "os pássaros são os primeiros pensamentos da manhã", "a filha da manhã, Aurora de róseos dedos", "tapeçaria de homens" (uma batalha), etc.. "E a quê?": ao jornalismo, à televisão, à publicidade, ao linguajar da prosa de entretenimento e a todos os tipos de linguajares e idiolectos que parasitam e empobrecem a língua: o politiquês, o economês, o eduquês, a língua de pau do Direito e das ciências sociais, a língua de manteiga dos negócios e da diplomacia, concebida para enganar, e por aí adiante.


Assim sucedendo, a poesia já é forma de resistência "política" e "social".

****



domingo, 23 de dezembro de 2012

Palavras já ditas...



O Natal, a história do Menino e sua Mãe tem sido contada e cantada por poetas e prosadores, de grande inspiração, ao longo dos tempos. Parece tudo dito, mas agora, mais do que nunca, palavras como amor, solidariedade e amizade, devem ser ditas e reditas, há que repeti-las e dar-lhes uma nova amplitude, carregando-as de significações novas e actuantes, aplicando-as na esfera dos nossos dias.  

Da mesma forma que a Terra vai seguindo o seu ciclo de renovação, também em nós deverá brotar, incessantemente, essa música mágica, a das palavras saborosas, doces como o mel, estuantes de vida, prontas a saltar de boca em boca, soando aos nossos ouvidas em melodias luminosas. As oportunidades para isso correm atrás de nós. Só teremos que prestar atenção.


Há uma obra imensa a decorrer, a de cuidarmos uns dos outros. Deus quer, o homem sonha e a obra nasce, disse o Poeta. Como vêem, esta expressão completamente retirada do próprio contexto tem, no entanto, o condão de poder ser adaptada àquilo que nós quisermos, como incentivo para a persecução de objectivos maiores.

Neste sucinto balanço de palavras já ditas, não posso esquecer o poema de Ary dos Santos que nos refere que o Natal é quando um homem quiser. Nele estão reunidos todos os votos, todos os bons desejos, todo o amor, toda a solidariedade e toda a verdade sobre as necessidades a suprir, no que diz respeito ao nosso semelhante. E como numa declaração universal ele repetirá, até ao fim dos tempos:

ÉS MEU IRMÃO, AMIGO, ÉS MEU IRMÃO! 






Caros amigos, desejo-vos um BOM NATAL, junto às vossas famílias. Agradeço a vossa companhia e as excelentes palavras de apreço e amizade que me têm trazido.

Abraços.

:)

*****
Imagens disponibilizadas pelos bloggers:
Maria Alice CerqueiraSmareisAndradarte
Obrigada.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Receita para salvar o mundo...ou apenas ser feliz

Já devem ter reparado que este tema, mundo, está a tornar-se demasiado recorrente neste espaço.Tenham paciência, por mais umas linhas. O pior é que desta vez é crise e mundo, mundo e crise. Isto não ajuda nada. Mas lá para o fim apresento propostas irrecusáveis ... plus ou moins

Achei interessantíssimo o desabafo deste poeta, desabafo que poderíamos subscrever na íntegra e acrescentar-lhe ainda mais alguns pormenores. Como o próprio refere, não se lembra se é uma receita para salvar o mundo ou apenas ser feliz, mas que não apresenta grandes resultados. Valerá como exercício, digo eu. 


Queixas de um utente

Pago os meus impostos, separo o lixo, 
já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à minha família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar  água fresca no prato
do gato, tento ser correto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
Me disse ser esta receita a indicada
Para salvar o mundo ou apenas
Ser feliz. Seja como for,
Não estou a ver resultado nenhum.




Crítica social mordaz e oportuna, o poema faz-nos sorrir e se, por um lado, encontramos pontos coincidentes com o dia-a-dia de muita gente, por outro, convida-nos a pensar em milhentas de coisas que poderíamos fazer para alegrar os nossos dias. Poderemos elaborar uma extensa lista delas. Acredito que ainda temos escapatória. O conceito de felicidade é bastante relativo. Ela poderá estar em pormenores que, à primeira vista, parecerão insignificantes para alguns de nós, mas de grande relevância para tantos outros.

Sem grande esforço encontrei uma lista com tudo ou quase tudo, tesourinhos que nos levarão a acreditar que a vida merece ser vivida, sorvendo todos os momentos. Claro que teremos de adaptar o que é adaptável, retirando umas coisitas ou acrescentando outras, conforme a maneira de ser de cada um, e desejando com veemência algumas outras, como o aumento do salário e o dia de pagamento, passe o materialismo. Aqui vão algumas destas propostas:


As coisas boas da vida são simples

Sapatos velhos, de couro;

Comida de mãe;

Abraço de filho;

Aumento de salário;

Colo de avó;

Calcinha velha;

Sutiens novos;

........
Caminhar à noite;

Virar para o canto na hora de acordar;

Travesseiro cheiroso;

Havaianas, as legítimas;

Cobertor do tempo de criança;





 




O primeiro beijo;

Café com rosca;

Pão com mortadela;

Coca-cola, de garrafinha;

Calça jeans nº 38

Jô Soares;

Namoro novo;

Amigo de infância;

Saudade boa;

Noite de sono;

Penúltimo capítulo de novela das 8h;

Casa limpa;

Noite de sono bem perdida;

Banheiro grande;

Café da manhã  em hotel;

Sol no inverno;

Espreguiçar;





 




…….
Espelho camarada;

Colcha de retalhos;

Roupa preta;

Cabelo escovado;

Namorado romântico;

Enxoval de bebê;

Sexo com amor;

Segundo encontro;

Telefonema no dia seguinte;

Fazer amor de manhãzinha;

Carne de porco;

Beijo na boca;











Paquerar um amigo;

Dia de pagamento;

Promoção daquela marca cara de sapatos;

Amizade nova;

Viagem para a praia;

Acordar para trabalhar e se lembrar que é domingo;

Anel de compromisso;

……..
Bronzeado Gabriela Cravo e Canela;

…….
Perder aqueles 2 quilinhos!





Depois de terminado este post, li por acaso, uma entrevista de Mia Couto, na revista Visão da última semana, e retive estas suas palavras:

Das várias vezes que tenho vindo a Portugal sempre me falam da crise..Mas agora as pessoas incorporaram esse sentimento - como se a crise fosse uma casa e já estivessem a morar nela, o que me perturbou.


Tratemos, pois, de sacudir esta coisa antes que ela se transforme numa segunda pele...



Queixas de um utente, de:José Miguel Silva
Excerto de:As coisas boas da vida são simples: Fabiane Ponce, em O Pensador.
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