quarta-feira, 10 de junho de 2020

Depus a máscara e vi-me ao espelho

Interessantes os tempos que correm e a forma como aceitamos coisas que dantes nos incomodavam. Quem usasse uma máscara antes da pandemia era objecto de discriminação, de olhares desconfiados, de medo de aproximação. Interpunha-se entre nós e o portador da máscara uma distância nunca considerada suficiente. 

Agora o que nos diferencia é a consistência da máscara, a qualidade da máscara, o pendant que faz com a roupa que trazemos, a cor lisa ou estampada, o corte e o porte. E o olhar reprovador que lançamos a quem não se apresente com qualquer tira de pano, de preferência vistoso, que tape a boca e o nariz. 

A moda já aí está. O espelho devolve-nos um ar composto e confiante. Álvaro de Campos antecipou-se:

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.
E volto à personalidade como a um terminus de linha.


Também o mito aí está.
Sem máscara ficamos nus. Mostramos fraquezas e fragilidades.
Resultado: transformamo-nos na máscara, somos a máscara, como diz o poeta.

Já não será preciso esconder o sorriso amarelo perante situações embaraçosas, nem mandar pôr o dente da frente que nos falta. Até numa entrevista de emprego poderemos negar-nos a tirar a máscara a bem da saúde própria e pública, escondendo assim as nossas misérias. E será considerada postura digna de grandes encómios.

Hoje, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Sempre considerei este dia sobrecarregado em termos de comemorações e de mitos. 

Na verdade, vivemos de mitos que nos sustêm, algo construído em dado momento, tendo em vista necessidades políticas concretas e que se estende no tempo como 
esteio que nos dá segurança e sentido patriótico.
Criam o elo necessário entre 
os cidadãos e a História pátria... 
Assim,
 A cada tempo a sua máscara.



=====
18-8-1934
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 61.
aqui

17 comentários:

  1. E, na minha opinião, a máscara veio para ficar, como veio, por exemplo, o telemóvel

    Tenha um dia feliz

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  2. Gostei de ler e de encontrar José Afonso, meu professor.


    Bons feriados e abraço

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  3. Tão lindo tudo aqui...Acostumamos a nos ver de máscaras e agora é um sinal de respeito conosco e com os demais e deve ser mantido ,creio, por um longo tempo. Estranhamos os que se recusam a usá-la como nosso "maravilhoso" presidentinho... beijos, bom feriado aí! chica

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  4. Bom dia de festa e paz, querida amiga Olinda!
    Uma gracinha começar o dia ouvindo uma música do estilo, graciosa e leve. Desperta serenidade e alegria interior. Bem ao seu estilo.
    Quanto ao poema, realmente é profético, ainda que possa ser que ele estivesse também fazendo referência às máscaras que o ser humano usa, em ocasiões, e, às vezes quase sempre, para se por diante dos demais.
    Adorei sua comemoração. Parabéns! De uma delicadeza ímpar.
    Tenha um lindo dia, amiga!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

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  5. A Máscara vão ser o adereço que iremos usar (sempre) penso eu!
    -

    Deambulando na frescura das manhãs...


    Beijos e uma excelente noite! :)

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  6. Olá, Olinda, pois também estive pensando várias vezes nisso, no uso das máscaras. Agora quem não usa máscara é olhado com espanto e com desdém. Já virou moda, também!
    Há pouco um rapaz com essas máscaras da pandemia entrou na Rede Globo de televisão e fez refém uma jornalista! Com essa nossas máscaras. Vai acontecer de tudo, amiga, veremos coisas do Arco! Elas não dão mais medo e nem desconfiança.
    Gostei muito do texto e do poema.
    Hoje Dia de Portugal, parabéns aos nossos irmãos!
    Beijo, querida amiga, muita saúde!

    "Sem máscara ficamos nus. Mostramos fraquezas e fragilidades.
    Resultado: transformamo-nos na máscara, somos a máscara, como diz o poeta."

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  7. Querida Amiga, sempre conhecemos pessoas com máscaras e sabiamos exactamente quando as usavam, mesmos nas as vendo no rosto e, creio que é a essas que Fernando Pessoa se refere. Costumo dizer que os óculos escuros nem sempre são usados por causa do sol, mas, sim, para esconderem os olhos que reflectem o que lhes vai na alma e hoje pensei na combinação da máscara com esse tipo de óculos; ficaremos totalmente irreconheciveis Conheço uma senhora que diz que quando vê alguém ao longe e não a quer cumprimentar, coloca os óculos escuros e assim não se sabe para onde olha. Óculos escuros e máscara preta, vai ser muito estranho, querida Olinda, mas vamos ver muita gente assim, agora no verão. Já não saio de casa sem máscara , apesar de ainda sair muito pouco, mas já estou preparada para a considerar uma peça de vestuário. Gostei muito deste poema e adorei essa história do dente; não tinha pensado nisso, mas vai ser uma grande vantagem, na verdade! Amiga, hoje fiquei o dia todo em casa até me esqueci de que era dia de Portugal; Sábado é feriado aqui em Famalicão pois é dia de Santo António, mas este ano não se realizaram as famosas festas Antoninas que costumam durar uma semana inteira. O verão vai ser muito mais triste, pois todos os festejos populares foram cancelados e , além da tristeza vamos ter todos os problemas econômicos dai resultantes. Muita gente está a ser afectada por tudo isto e não sei como vão conseguir levar a vida com dignidade. Amiga, obrigada pelo belo momento e desejo que estejam todos bem. Usemos a máscara, pois ela não pesa e nem sequer podemos considerá-la um problema; problema é não ter o que comer e viver em casebres sem as minimas condições. Um abraço muito fote e a minha sincera amizade
    Emilia

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  8. Este seu post é notável. Ligar a máscara do Covid-19 à máscara do Pessoa é uma ideia brilhante.
    Querida amiga OLinda, continuação de boa semana.
    Abraço.

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  9. "a cada tempo a sua máscara", já que sem ela "ficamos nus"...
    porque assim é, façamos então da máscara uma obra de arte
    e guardemos dela "o corte e o porte"...

    e, se possível, "a criança que não muda" de que fala Álvaro Campos

    Excelente post, amiga Olinda
    inteligênncia, ironia qb, subtileza, sensibilidade
    verdadeira arte de "dizer-se" num belo texto

    abraço


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  10. A máscara faz parte da vida em sociedade, seja material ou imaterial!

    Abraço

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  11. E olhamos de soslaio quem não a usa. Já há cem anos se usaram máscaras por motivos idênticos.
    E sobre máscaras temos tanto para dizer! A arte da máscara é fascinante e vem de tempos muito remotos. Já as que Fernando Pessoa refere fazem fricções.
    Este tema está muito bem explorado, minha amiga Olinda! " A cada tempo a sua máscara."

    Grande abraço.

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  12. Excelente Post.
    A pandemia veio e o uso da máscara foi instituído e aproveitado.
    Pobres de espírito (e mais coisas) lá se vão escondendo atrás de máscaras (institucionais) para manterem as suas verdades nas palavras e acções. Como diz o Poeta "[...] Depus a máscara e tornei a pô-la.
    Assim é melhor,
    Assim sou a máscara.
    E volto à personalidade como a um terminus de linha."

    Grato por este trabalho. Parabéns.


    Beijo
    SOL

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  13. A cada tempo a sua máscara, é verdade. A cada pessoa a máscara que se lhe ajusta. Até a moda já se está a adaptar. E é assim que somos a máscara que usamos como diz Pessoa. Gostei de ouvir aqui o Zeca.
    Um bom fim de semana, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

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  14. Gostei de ler. E de ouvir o inesquecível Zeca.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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  15. "A cada tempo a sua máscara."
    A cada um a sua máscara. A ver se esta agora é moda que pega e fica ou não. Máscaras que tapam máscaras, assim está melhor: tudo quase por igual.

    Gostei muito desta publicação.

    Boa semana!
    Beijinhos.

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  16. De como o perigoso virou moda ou de como se sentir personagem de filme.
    Um filme de terror, um mascarar de sentimentos que nos afligem.
    Vamos mascarados lutando pela vida.
    Bela postagem e partilha amiga.
    Meu terno abraço de paz.
    Cuide-se para uma nova manhã.
    Beijo no coração.

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