segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

"Cada homem está dividido entre os homens que poderia ser" - Paul Nizan

Se minha mãe, comigo no ventre, fosse morar em Londres, Paris ou Roma, eu seria a mesma criança, o mesmo jovem, o mesmo homem, a mesma pessoa? Supondo que os dons, o estro, os atributos são tramas de algum signo ou destino, haveria outras saídas e entradas que não as que me levaram a este comboio rolando em círculo, partindo e chegando aos mesmos sítios?
Esta cidade, estes ruídos, estas ruas, este café donde te escrevo, que têm a ver com os versos que as vozes me ditam, com os ais de que nenhum bardo me deu as rimas?
O Cruzeiro e a Ursa, o mar e a selva, o leão e a lontra, que tem isso a ver com os meus flatos de alma?
O Inglês, o Francês, o Italiano, o Português são idiomas, não são lágrimas ou suspiros. Quiçá venha uma língua universal. Provavelmente, continuaremos a soletrar as mesmas letras, a conjugar os mesmos verbos. Fatais viajantes entre o ser e o ter, entre o to be or not to be.

in Derivações do Brumário
Pg. 136


Já falei aqui de Germano Almeida, prémio Camões 2018. Hoje trago Arménio Vieira, prémio Camões de 2009, em Derivações do Brumário, onde revela um conhecimento aprofundado da cultura dita clássica e com isso o autor joga em textos curtos e mordazes com diversas personagens, fazendo-os desfilar em situações do nosso tempo.

Com efeito, na contra-capa lê-se:
"A fértil imaginação do autor, a par de uma notável erudição e ainda a capacidade de usar um grande número de passes originários dos magos do surreal, fazem deste poeta uma figura extraordinária no universo da moderna literatura em português.

Segundo Manuel Veiga, linguista, Arménio Vieira é um autor dissidente em relação à temática do terra-longismo, da mamãe-terra, da chuva-madrasta e braba, do mar prisão-liberdade, da seca-malfadada, da fome-ingrata e da ´lei´ que manda fincar os pés no chão, porquanto os tempos são outros. Falando do "Eleito do Sol", livro do mesmo autor, refere que muito mais do que as dez ilhas ou parte de um Continente, Cabo Verde, hoje, está e faz parte do Universo. Daí que O Eleito … pretenda ser o ´sol´ que ilumina o Mundo; e fazendo Cabo Verde parte do Universo, necessariamente também será bafejado pelos raios deste mesmo "sol". aqui

Mas o desconcerto desse mesmo mundo é evidente, neste Quiproquo:

Há uma torneira sempre a dar horas
há um relógio a pingar no lavabos

há um candelabro que morde na isca
há um descalabro de peixe no tecto

Há um boticário pronto para a guerra
há um soldado vendendo remédios
há um veneno (tão mau) que não mata
há um antídoto para o suicídio de um poeta

Senhor, Senhor, que digo eu (?)
que ando vestido pelo avesso
e furto chapéu e roubo sapatos
e sigo descalço e vou descoberto.


E de si, Arménio Vieira diz isto:

SOU UM POETA. Apenas ISSO.*


"Aqui, Arménio Vieira - Conde da Sátira crioula . Video RTP
Nota: A citação no título do post é o título do texto ora transcrito.

===

Meus amigos

Desejo-vos uma bela semana. Peço desculpas pela ausência.
Visito-vos em breve.

Abraço

====
Poema: aqui
*Divagações do Brumário

5 comentários:

  1. Bom dia de paz, querida amiga Olinda!
    Se... Na vida, estamos a mercê de alguns "ses"...
    Estamos aos avessos de como fomos feitos para sermos, muitas vezes.
    Volte para nós quando puder e esperamos sua presença valiosa e carinhosa.
    Tenha dias abençoados, minha amiga!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

    ResponderEliminar
  2. Gostei de ler Arménio Vieira, aqui, onde sempre vou aprendendo tantas coisas, minha Amiga Olinda. Obrigada.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  3. Nunca li nada de Arménio Vieira.

    Isabel Sá  
    Brilhos da Moda

    ResponderEliminar
  4. andar vestido pelo avesso, sem se cobrir de ridículo
    não é para todos, afoito-me a dizer...

    pelo menos, será necessário ter consciência de que somos, malgré nous même, eterno viajantes entre "o ser e o ter"

    Grande Autor, minha amiga
    Gostei muito de conhecer

    abraço

    ResponderEliminar
  5. Gostei deste excerto.
    Sou muito ignorante. Não me lembro sequer de ter ouvido ou lido o nome dele.
    Bom 2009 foi um ano em que quase não dei por nada, presa entre o nascimento da neta, a morte de meu pai, o agravamento final da doença da minha mãe e a descoberto do cancro e tratamentos do marido.
    Abraço

    ResponderEliminar